O escritor Carlos Henrique Schroeder, de 38 anos, define a si mesmo como “um militante do conto”. Assumir tal postura não é uma tarefa fácil aqui no Brasil, país em que o mercado editorial precisa se reinventar e as grandes editoras desprezam narrativas breves. Neste cenário, ele lançou o Formas Breves, selo editorial que publica, exclusivamente em formato digital, um conto inédito por semana por R$ 1,99.
Desde o lançamento do selo, em fevereiro deste ano, Schroeder e seus autores têm desbancado best-sellers que sempre figuram nas listas dos mais vendidos. É Davi derrotando Golias no mundo digital. A editora não revela números de vendas, mas é comum encontrar seus títulos entre os “top 10” da Amazon, por exemplo. É o caso de Franziska, de Claudia Grechi Steiner; A otária, de Marcia Tiburi e de Um mistério nos Electric Lady Studios, de Cadão Volpato, entre outros.
Averrós, conto de José Luiz Passos, escritor vencedor do Prêmio Portugal Telecom de Literatura 2013, foi o primeiro e-book do selo, publicado em 3 de fevereiro deste ano – exatos sete meses depois do início da décima primeira edição da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, lugar onde a editora e-galáxia, do Formas Breves, começou. Mas antes da Flip, houve uma adolescência recheada de literatura.
ANTES DO COMEÇO
Aos 13 anos, Carlos foi incentivado pela oma – como os descendentes de alemães chamam as avós – a escrever uma história sobre a Guerra do Vietnã. Quando não estava escrevendo, estava lendo: passou sua juventude com o nariz enfiado nas obras de grandes mestres do conto. Trocava qualquer brincadeira de criança para ficar imerso em livros, “sorvendo todos os contos do Maupassant [Guy de Maupassant, escritor francês da segunda metade do século XIX], os maravilhosos contos russos, a contundência dos americanos, a série Mar de Histórias [antologia do conto mundial em 10 volumes, editada por Paulo Rónai e Aurélio Buarque de Holanda entre 1943 e os anos 1990].”
O que era paixão tornou-se ofício: há pelo menos quinze anos ele estuda as narrativas breves. “Cada vez mais me embrenho numa floresta escura, mas quero que mais gente entre comigo nela”, diz ele. Assim, em 2011, um ano depois de seu livro de contos As certezas e as palavras vencer o Prêmio Clarice Lispector da Fundação Biblioteca Nacional, Carlos fundou o Festival Nacional do Conto, evento literário anual que já homenageou escritores como Luiz Vilela e Sérgio Sant’Anna. Dois anos depois, veio o Formas Breves.
COMO TUDO COMEÇOU
“A ideia da Formas Breves, assim como do Festival Nacional do Conto, é colocar o conto em pauta, mostrar que o Brasil deve parar com esse complexo de vira-latas”, diz Carlos. “Um país que tem contistas vivos e em atividade como Dalton Trevisan, Luiz Vilela, Sérgio Sant’Anna, Hélio Pólvora e Rubem Fonseca é obviamente o país do conto. E os chefões do mercado editorial querem transformar o país num carrossel de romancistas. Piada.”
Naquela Flip, Tiago Ferro, cofundador da e-galáxia, plataforma de publicação independente de e-books que produziu 70 títulos em um ano de existência, se aproximou de Carlos. Ele e os sócios Mika Matsuzake e Antonio Carlos Espilotro queriam que o autor de As certezas e as palavras dirigisse uma coleção. “Sugeri que fosse uma de contos e com periodicidade programada”, conta.
Para o mercado, a decisão de trabalhar com contos é, de fato, um ponto fora da curva. Tiago reflete sobre isso: “As editoras torcem o nariz, dizem que não vende. A questão não é se vende ou não, mas o quanto elas querem que venda. O mercado tradicional é extremamente polarizado, com poucas redes de livrarias e poucos agentes. As editoras ficam em busca de um best-seller e isso diminui a diversidade”.
“Gostamos de misturar jovens autores com nomes celebrados (…) Somos um projeto independente, de uma editora independente, sem patrocínios ou subsídios do governo, e publicamos o que queremos: o que importa é a qualidade”, diz Carlos
Carlos e os sócios conversavam sobre lançar um selo editorial justamente no momento em que o mercado de livros passava pelo período mais amargo da última década. De acordo com a Fipe, as editoras brasileiras haviam fechado 2012 com faturamento de 4,98 bilhões de reais – descontada a inflação no período, houve queda de 2,64%. A mesma pesquisa revelou que livros digitais não representavam muito às editoras – 0,1% do que faturavam com os livros impressos.
FAZER O QUE SE ACREDITA
A partir da proposta de Ferro na Flip, surgiram perguntas cujas respostas serviriam de pilares para o Formas Breves. “Perguntas como ‘que tal uma coleção em que qualquer pessoa com acesso à internet pudesse comprar um conto e ler em qualquer lugar?’ e ‘que tal um preço simbólico, tipo R$ 2, o preço de um picolé?’”, conta Carlos. Delineava-se, então, o princípio da Formas Breves:
1. Portabilidade
O Formas Breves, como os livros digitais de maneira geral, permite que o leitor aprecie literatura onde quiser, em diversos devices – Kindle, Kobo, computador pessoal, tablet… E o mercado tende a crescer. “Em 2014, deverão ser vendidos mais de 70 milhões de dispositivos móveis onde é possível ler livros, de acordo com a IDC Brasil”, diz Carlos.
2. Qualidade
O rol de autores publicados pelo Formas Breves é composto de nomes célebres da literatura contemporânea (como Ricardo Lísias, Carola Saavedra, Andréa Del Fuego, Marcelino Freire e tantos outros) e de promessas – o que une tais nomes é a qualidade dos escritos. “Gostamos de misturar jovens autores com nomes celebrados (…) Somos um projeto independente, de uma editora independente, sem patrocínios ou subsídios do governo, e publicamos o que queremos: o que importa é a qualidade.”
3. Preço baixo
Cada conto custa R$ 1,99, “o preço de um picolé”.
Sobretudo, o projeto é movido pela paixão. Ferro diz que “a gente acredita no gênero conto e na literatura brasileira. Não houve um grande planejamento para a criação do selo. Não pensamos nos riscos – nosso objetivo nunca foi ter lucro com ele, mas sim abrir um espaço”. Pode não haver lucro, mas também não ficam no prejuízo: Ferro garante que “o selo não fecha no vermelho”.
Sem o desejo desenfreado pelo faturamento, não havia muito a perder – até porque Ferro acredita que “no digital, não existe a mesma preocupação em querer hegemonia, pelo menos não na produção: a injeção de capital é muito menor”. E assim, desde 3 de fevereiro de 2014, toda segunda-feira o Formas Breves coloca no ar um conto novo nas principais lojas virtuais do país, como Amazon, Apple, Saraiva, Cultura, Google Play e Iba. “São contos que, por sete vezes, chegaram ao top 10 de vendas da loja da Apple, na categoria ficção, na frente de best-sellers melosos. Isso foi demais!”, comemora Carlos.
O Facebook desempenha um papel fundamental no projeto, que dispensa publicidade paga. Isso desde o princípio.
Sete, não. Oito. Enquanto escrevo este texto na manhã segunda-feira, 8 de setembro, Ricardo Lísias, autor do conto Delegado Tobias, o trigésimo segundo título do Formas Breves, celebra no Facebook a posição de número 1 no top 10 da Amazon. O Facebook desempenha um papel fundamental no projeto, que dispensa publicidade paga. Isso desde o princípio. “Começamos com um barulho danado nas redes sociais e muita gente ajudando a divulgar: muitos escritores bacanas participando desde o princípio. Acho que como foi a primeira coleção de contos a estar nas principais lojas de e-books do país e com uma programação regrada, as pessoas abraçaram a causa”, diz Carlos.
ROTINA DE EMPREENDEDOR
Carlos acorda antes das seis da manhã. Uma hora depois, já está no escritório. Até às nove, coloca a leitura em dia. E então, começa a teclar. Trabalha feito maluco e sabe que escrever é a arte de cortar palavras. O tempo é curto para tanto trabalho; mais ainda quando se tem dois filhos pequenos. Ainda assim, arruma tempo para vislumbrar o futuro do Formas Breves. É possível que o selo ganhe corpo e deixe de ser simplesmente um selo. É provável que o Formas Breves se transforme em uma editora de contos. “Estamos estudando e avaliando o cenário. Será um grande passo: uma editora digital especializada em contos.”
Para isso, Carlos aposta na popularização do hábito de leitura de e-books. “Em breve os mais reticentes também olharão com outros olhos para o digital. O mais interessante é que no mercado digital as pequenas e médias editoras competem em pé de igualdade com as grandes, coisa que não acontece nas livrarias, onde os livros das pequenas mal aparecem”, diz ele.
Tal hábito parece bem próximo de se tornar realidade. De acordo com pesquisa conjunta da CBL e do Snel, o faturamento do mercado editorial brasileiro com os e-books saltou de 3,8 milhões de reais em 2012, período em que foram comercializadas 235.315 unidades, para 12,7 milhões no ano passado, quando foram vendidas 889.146. O crescimento deve ser ainda mais significativo neste ano: segundo projeção do Global E-book Report, a venda de livros digitais deve chegar a 2,5% do total do faturamento do mercado editorial brasileiro em 2014.
Enquanto os “mais reticentes” daqui mantêm o olhar cético, Ferro indica haver um diálogo sobre lançar alguns dos títulos do selo em castelhano. “O interesse pela literatura brasileira tem sido grande”, diz ele. Os leitores espanhóis possivelmente encontrarão o Formas Breves em breve. Com o perdão da repetição: que seja mesmo!
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