“Eu já sei o que eu vou fazer quando sair daqui. Quero encontrar um trabalho como cozinheira”, diz uma detenta olhando para a câmera. Ela é uma das alunas do curso básico de culinária oferecido na Penitenciária Feminina de Sant’Ana, em São Paulo, pela Gastromotiva. O curso tem como um dos professores ninguém menos que o chef brasileiro Alex Atala, um dos mais renomados do mundo da gastronomia, que fez com que a história das presidiárias de Sant’Ana se tornasse conhecida pelos principais chefs do mundo.
O vídeo em questão foi apresentado em agosto no palco do MAD, um dos mais importantes simpósios de gastronomia da atualidade, que teve Atala como um dos curadores. Durante um mês, por meio de aulas práticas e teóricas, as detentas aprendem diversas habilidades, desde técnicas culinárias, como cortar legumes de forma profissional, até higiene pessoal e cidadania.
“O que queremos com o curso dentro do presídio, mais do que ensinar bases de cozinha, é dar coragem para as alunas saírem de lá com um objetivo, com um sonho”, afirma David Hertz, fundador da Gastromotiva, organização que tem como missão a transformação e a inclusão social por meio da gastronomia.
Criada em 2004, oferece cursos de qualificação profissional na área de gastronomia para pessoas em situação de vulnerabilidade social. A história da Gastromotiva é conhecida, reconhecida e premiada. David inovou ao oferecer não apenas formação gastronômica a quem tinha pouca oportunidade, mas por criar junto disso uma rede de restaurantes interessados nessa mão de obra. Isso há dez anos.
Para continuar mantendo o interesse dos parceiros, dos chefs e do mercado gastronômico, David diz ter uma arma muito potente nas mãos: as histórias. “A Gastromotiva é focada em pessoas, e não existe um universo mais rico que este. Atuo nisso há muito tempo, e me impressiona como sempre acontece uma história capaz de me emocionar como se fosse a primeira vez”, diz.
Ele dá como exemplo o caso da aluna que, para concluir seu curso, está desenvolvendo um projeto gastronômico com refugiados da Síria que estão chegando ao Brasil. “Ambos vivem uma situação de vulnerabilidade, mas se uniram para cozinhar.” A cozinha é, para ele, muito mais do que comer ou cozinhar. É uma forma de resgatar afetos (“toda comida é afetiva”), de criar valores.
“Um chef chegar e ensinar os alunos a cortar cebola em cinco minutos apenas cria cozinheiros capazes de cortar cebolas em cinco minutos. Não transforma a vida de ninguém. O que buscamos é que as pessoas possam ver na gastronomia uma forma de recobrarem sua autoestima, seu valor e seus objetivos”.
A ideia de levar o ensino de gastronomia aos centros de detenção surgiu em 2010, com o juiz Jayme Garcia dos Santos Júnior, assessor da corregedoria de São Paulo, que procurou Atala para a elaboração de um curso de cozinha dentro dos presídios. Pela experiência da Gastromotiva na formação profissional, o chef achou que seria importante agregar a organização ao projeto.
O movimento começou com um piloto no presídio masculino Adriano Marrey, no município de Guarulhos, em São Paulo, em março de 2011. “Enquanto Atala entrou com a articulação e Santos tentou aproximar o projeto do sistema e das políticas públicas prisionais, nós desenvolvemos a metodologia de capacitação”, diz David.
O que era apenas um piloto ganhou força em dezembro de 2013, quando o deputado Fernando Capez, por meio de emenda parlamentar, conseguiu a liberação de recursos para a realização do curso e formação da primeira turma, na Penitenciária Feminina da Capital. “Foi o projeto que fizemos com mais maturidade nesses 10 anos”, afirma David.
“Acho que pegamos o jeito de mobilizar as pessoas ao buscar essa educação horizontal, em que um aprende com o outro, em que se tem a valorização do talento pessoal. A comida tem um apelo emocional, é um motor de transformação.”
Há dez anos, a Gastromotiva teve seu embrião com David ensinando técnicas culinárias a jovens da favela do Jaguaré, quando ele era professor de gastronomia da universidade Anhembi Morumbi. A inovação, aqui, foi unir numa mesma iniciativa a capacitação e o emprego: David criou um buffet que fazia eventos e serviços de catering com a equipe de jovens treinados por ele.
Com a demanda de eventos crescendo, o projeto esbarrou na escala. E foi aí que Hertz resolveu focar no que se tornaria o motor do negócio: a formação. O objetivo era agregar jovens de baixa renda entre 18 e 35 anos para que eles pudessem ter conhecimento e conseguissem se inserir no mercado de trabalho. “Acabamos por focar no que éramos melhores”, conta Hertz, que trouxe sua experiência a frente das salas de aula para criar um curso profissionalizante.
FORMAÇÃO É PARA A VIDA, NÃO APENAS PARA O TRABALHO
Hoje a Gastromotiva treina os jovens para funções básicas nas cozinhas em um curso com 280 horas aula – cerca de 4 por dia. Para se formarem, eles têm de apresentar um projeto de ação em suas comunidades. “Desde o começo, queria transformar o mercado da gastronomia para torná-lo mais justo e mais sócio-responsável.”
Para garantir vagas de trabalho para os alunos, David fez parcerias com restaurantes e estabelecimentos comerciais que, em troca de poderem lançar mão de profissionais já bem capacitados, colaboram financeiramente com o projeto, pagando uma taxa mensal. Isso criou uma rede de restaurantes que sustenam a Gastromotiva.
O valor ajuda a bancar os custos de cada aluno (cerca de 4,5 mil reais), já que eles não desembolsam nada na formação. Este ano, devem se formar 600 jovens — a maioria empregados em restaurantes. A Gastromotiva tem cursos em São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador e, nos próximos meses, deve começar também em Curitiba, a cidade natal de David.
INCUBAR DE NEGÓCIOS GASTRONÔMICOS TAMBÉM É NEGÓCIO
A organização de David também atua em outros projetos, como o Mesa ao Vivo Rio, realizado dentro do Complexo do Alemão em parceria com a revista Prazeres da Mesa. Na segunda edição, selecionou negócios que já existiam na comunidade, mas que precisavam de melhor estrutura e visibilidade. “Pegamos desde restaurantes já abertos até cozinheiros amadores que faziam salgados para vender e incubamos esses negócios”, conta David. “No primeiro semestre trabalhamos a profissionalização da cozinha, implementamos regras de manipulação de alimentos. No segundo, nos dedicamos exclusivamente ao cardápio.”
No início deste ano, a Gastromotiva promoveu um jantar beneficente no Eleven Madison Park, eleito o quinto melhor restaurante do mundo pela revista inglesa Restaurant, para arrecadar fundos para formar duas turmas de aprendizes de cozinha no Complexo do Alemão. O jantar, que teve também um leilão de peças cedidas por artistas e personalidades brasileiras, reuniu 120 convidados e cerca de 100 mil dólares em doações.
“É impressionante olhar e ver onde chegamos e como as pessoas estão dispostas a ajudar a fundamentar a gastronomia social no mundo todo”
Mas ainda há muito o que fazer, segundo ele. “Nossa rede tem 62 estabelecimentos gastronômicos que contribuem com 15 % do custo dos projetos. O ideal seriam em torno de 100 estabelecimentos por cidade e ao menos três patrocinadores institucionais para atingirmos a nossa meta de mil alunos por ano. Hoje não temos nenhum.”
Por isso a ajuda que chefs e outros profissionais trazem à causa, tornando-a mais visível e respeitada, é tão importante. “Antes eu era um louco por trás de uma organização social. Hoje sou o louco da Gastromotiva, já é um avanço”, brinca, feliz com o projeto já ser bem mais conhecido. Feliz também com detenta do vídeo que, ao reaprender a cozinhar na prisão, lembrou dos pratos “cheios de sabor lá da Bahia, bem diferentes desses daqui de São Paulo” e, com a memória desse gosto, pretende refazer sua história, preparar receitas capazes de tocar outras pessoas. Afinal, é disso que a gastronomia é feita.
O mundo inteiro ainda vai conhecer o tucupi: o ingrediente é a estrela do portfólio da Manioca, empresa de alimentos amazônicos que compra matéria-prima de pequenos produtores, promovendo o desenvolvimento sustentável da região.
A fome e a insegurança alimentar rondam a vida de milhões de brasileiros. Enquanto isso, a cada dia toneladas de comida vão para o lixo. Saiba como três negócios sociais brigam para acabar de vez com esse desperdício.