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Grafite é resistência: artista indígena, Auá Mendes colore a paisagem urbana para protestar e trazer à tona os sonhos de seus ancestrais

Marcela Marcos - 10 set 2024
Auá Mendes posa junto a uma de suas obras, na fachada do centro Itaú Cultural, em São Paulo.
Marcela Marcos - 10 set 2024
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A artista Auá Mendes, 25, nasceu e cresceu no que ela chama de “contexto ribeirinho, um meio-termo entre aldeia e cidade”, no Amazonas. 

Ela morou em uma casa de madeira, com os pais, ambos indígenas, e os irmãos. A mãe, paraense, por ter perdido familiares muito cedo em meio à violência do garimpo, desconhece a própria etnia. Já o pai vem de Autazes, na região metropolitana de Manaus, e é da etnia mura.

A afinidade de Auá com a arte vem da infância. Na escola, ela ficava responsável por desenhar as letras de cartazes das confraternizações em sala de aula. 

Aos 10 anos, após a separação dos pais, foi morar no centro da cidade e, em um dos colégios pelos quais passou, fez uma prova e conseguiu avançar de série, motivo pelo qual entrou na faculdade – de design gráfico – ainda com 16 anos. 

Foi durante as aulas de História da Arte que ela decidiu sua profissão. 

“Meu professor, o Turenko, era muito observador e começou a perceber que, quando eu não gostava da aula, eu ficava desenhando no meu caderno. Passei a mostrar para ele o que eu já tinha feito em casa: papeizinhos desenhados, fotografias, algumas telas. Foi ele quem me incentivou a viver de arte”

Enquanto cursava design na Faculdade Metropolitana de Manaus, ela começou a se aproximar do mundo do grafite:

“Meus primeiros contatos com grafite foram durante as festas da faculdade, porque eu acabei conhecendo artistas indígenas de Manaus.” 

NO AUGE DA PANDEMIA, SEM CONHECER NINGUÉM EM BELÉM, ELA TEVE DE SE VIRAR PARA SOBREVIVER NA CIDADE

Em 2017, Auá grafitou na rua, pela primeira vez. A inspiração inicial foi o trabalho do grafiteiro Olhinho. “Ele nunca mostra o rosto, mas eu queria ser reconhecida pelo meu. Então, tentei ilustrar um que se parecesse comigo. Não deu muito certo.”

Três anos depois, ela foi convidada pela Secretaria de Cultura de Salvador para participar de um evento de grafiteiros por lá. Para seguir o trajeto, foi de barco até Belém, no Pará, onde pegou um ônibus para seguir viagem. 

Só que, na volta, Auá acabou retida na capital paraense, porque o período coincidiu com o início da pandemia de Covid-19 e a necessidade de isolamento social. 

“Comecei a usar as redes sociais para sobreviver e pedir grana para a galera. Passava madrugadas fazendo artes no computador e, quando divulgava, também passava meu Pix e um vídeo contando que estava numa cidade diferente, sem trabalho, sem conhecer ninguém”

Auá conta que a ajuda vinha principalmente dos coletivos indígenas locais. Até que, durante as divulgações, ela foi “notada”, como diz, pelas revistas Elle e Vogue. 

As entrevistas concedidas às publicações reverberaram em São Paulo, chegando a um estúdio de arquitetura, que convidou a artista para assinar três obras na capital paulista, onde ela passou a morar.

AUÁ TRANSFORMA PRÉDIOS EM OBRAS DE ARTE COLORINDO CIDADES COM O IMAGINÁRIO DOS POVOS INDÍGENAS

Instalada em São Paulo, Auá trabalhou no Museu das Culturas Indígenas e pintou uma empena como parte do Museu de Arte de Rua, no projeto Os Encantados Protegem, que foi contemplado em um edital da prefeitura.

Ixé Maku, obra criada para a Bienal das Amazônias, em Belém.

“Eu tinha feito assistência para a Nazura, uma artista maravilhosa. É graças a ela que hoje consigo pintar prédios.” Nesse projeto da prefeitura, em um prédio no bairro do Bixiga, região central de São Paulo, Auá conta que passou um aperto: 

“Eu só tinha dez dias para entregar. Tive crise de pânico no andaime, foi tenso, mas, todo dia, quando eu passo ali, fico emocionada”

A ancestralidade indígena transborda na obra de Auá. No fim do ano passado, por exemplo, ela assinou sua primeira empena individual de Belém, durante a Bienal das Amazônias. Batizada de Ixé Maku, a obra representa animais como seres encantados, seguindo a crença dos ancestrais mura. 

No geral, duas cores predominam em seus murais, plenas de sentido:

“Para mim, o azul simboliza a proteção, pela forma como enxergo seres encantados. Meu povo, mura, tem uma ligação forte com os sonhos, e eu vejo os sonhos em formas azuladas. Já o vermelho remete ao urucum”

Da idealização à finalização de um mural, ela avalia cada detalhe. Mas já houve casos em que o resultado final saiu do seu controle: “Gosto muito de representar as serpentes, por exemplo, mas já aconteceu de acharem que cobra remete ao pecado e não autorizarem.” 

Paralelamente ao grafite, Auá trabalha para marcas — como Converse, Nike, Vivo, TokStok e Nubank — em projetos de ilustração. “Tento sempre mostrar um pouco da realidade na perspectiva originária, tanto nas plataformas digitais quanto manualmente.”

EM SÃO PAULO, ATÉ CONHECER “AS PESSOAS CERTAS”, ELA PRECISOU LIDAR COM O PRECONCEITO E AS MÁS COMPANHIAS

Recentemente, Auá fez uma intervenção na fachada do centro Itaú Cultural, na Avenida Paulista. Na obra, batizada de Sesá pirári: olhos abertos, o azul também predomina.

Quando reflete sobre os caminhos que a levaram a viver na capital paulista, tão distante – e tão diferente – de Manaus, sua cidade natal, a muralista sublinha que foi onde conseguiu ser, “de fato, remunerada”. 

Os primeiros anos em São Paulo, porém, foram duros, cercados de más companhias:

“As pessoas achavam que eu era um tipo de xamã que resolveria seus problemas, quando, na verdade, [elas] eram drogadas, depressivas. Fui me sentindo sozinha e também comecei a beber, quase todos os dias…. Aos poucos, fui conhecendo as pessoas certas, que me abriram os olhos”

Entre as “pessoas certas” que a ajudaram em sua jornada, ela cita seu atual companheiro. Mulher trans, ela também precisou superar o preconceito: o ambiente do grafite, segundo Auá, é muito machista. 

Contra o ódio e a violência, ela intensificou sua veia ativista, que já pulsava desde os tempos da formação do coletivo Aquela Crew, que Auá tinha criado junto a outros grafiteiros LGBTQIAP+ de Manaus. 

AUÁ SONHA EM GANHAR O MUNDO PARA TRAZER DE VOLTA AO BRASIL EXEMPLOS DE SABEDORIA

O ativismo está na raiz do tipo de manifestação artística que Auá encabeça.

“O grafite vem da perspectiva do picho, do Vandal, que remete a algo feito sem permissão; no muralismo, é diferente, a gente tem estrutura, tem patrocínio. Mas, quando estou na rua grafitando com meus colegas, eu protesto por meio deles sobre a minha própria realidade”

Em viagens recentes pelo Peru e pelo Chile, ela teve contato com os movimentos indígenas dos dois países e reconheceu, nas lutas deles contra o fascismo, muitas discussões que também acontecem no Brasil. 

Um dos objetivos da artista é ampliar o olhar que se tem sobre a representação dos povos originários, principalmente quando retratados por artistas não-indígenas, que não percebem a diversidade cultural e linguística desses povos no país.

“Ainda vejo muitas ilustrações nas quais somos representados de pele amendoada, com cocar de pena, num imaginário antigo, como nos livros… Não conseguem imaginar que as etnias são diferentes”

Entre os planos, além de fazer um mestrado, Auá quer conhecer, de perto, os movimentos indígenas da Nova Zelândia e do Canadá – dois países que, na visão dela, já resolveram questões ainda discutidas por aqui, como acesso a direitos e reparação histórica e financeira dessa população. 

“Quero aprender com eles, para ajudar o movimento indígena no Brasil – e trazer essa sabedoria.”

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