Ignorar a merda não vai fazê-la sumir. Reconhecê-la pode torná-la menos incômoda em nossas vidas

Jean Boechat - 17 ago 2015Jean Boëchat: "A vida não é feita só de momentos bons. Mas a gente não aceita isso. O que torna os momentos ruins ainda piores".
Jean Boëchat: "A vida não é feita só de momentos bons. Mas a gente não aceita isso. O que torna os momentos ruins ainda piores". (Foto: Marcelo Prais.)
Jean Boechat - 17 ago 2015
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Por Jean Boëchat

 

Gostaria de falar da merda.

Nós precisamos falar da merda. Porque ela existe.

Ninguém gosta de estar na merda. As pessoas não gostam nem de falar sobre a merda. Na maioria das vezes, é melhor ficar de bico fechado sobre a merda. A gente finge que a merda não existe. Só que ao querer torná-la invisível só estamos admitindo o quanto ela nos incomoda e o quanto não sabemos lidar com ela.

Nobody loves you when you’re down and out/Nobody sees you when you’re on cloud nine (“Ninguém lhe ama quando você está para baixo e pobre/Ninguém lhe percebe quando você está extremamente feliz”, na canção de John Lennon.)

A gente foge das coisas que nos botam medo. Colamos em quem trilha o caminho de sucesso eternamente ensolarado (e falso) que desejamos para nós. E isolamos quem está triste. E nos afastamos de quem descarrilou, e nos desinteressamos de quem escolheu outro caminho.

Hoje, como diria uma amiga, “o mundo é flores”. Ela brinca com a concordância para discordar dessa ideia de que tudo são sorrisos, de que só há gente feliz e realizada para todo lado que você olha. Nas redes sociais isso é mais claro do que em qualquer outro lugar. Quase todo mundo ali é belo, radiante, colorido.

Não há espaço para o cinza. E o cinza não é um inimigo da cor. Às vezes é um respiro no gradiente que permite às demais cores serem ainda mais intensas. (O cinza também é uma cor.) Não há espaço para momentos de introspecção, para momentos de dúvida ou de cansaço ou mesmo de tristeza. No mundo da aprovação instantânea, vivemos a ditadura da euforia. Você está proibido de parar de mostrar os dentes.

Não estou aqui para celebrar a merda. Não estou aqui para glorificar a merda. Eu sei bem como é a merda. Sei bem como é estar na merda. E lhe digo: a merda é uma merda. Não sou fã nem amigo da merda.

Mas também não acho que essa mentira coletiva faça algum sentido. Alegria é uma coisa boa, mas não é humano esperar que ela preencha 100% dos espaços em nossas vidas. E nós precisamos ser mais humanos, nos admitir humanos. Nada é mais triste do que um alegria falsa, do que um clima de festa forçado.

O belíssimo filme “Divertida Mente”, Inside Out, da Pixar, trouxe para a luz a importância do entendimento de cada emoção e sentimento. Perceber o papel da tristeza em nossas vidas, compreender que a alegria infundada e alucinada não resolve tudo, de forma tão poética, bem humorada e divertida talvez tenha sido uma das maiores colaborações recentes da arte para a vida concreta das pessoas. Se você não viu, veja. Se você já viu, veja outras vezes. Os sentimentos precisam ser reconhecidos e respeitados. Todos eles nos formam e nos ajudam e devem ter seu lugar e sua vez dentro de nós.

O mundo superficial das redes sociais expressa a nossa dificuldade em lidar com isso. Aqui embaixo, na vida real, física, de carne e osso, a coisa pega ainda mais.

Falemos do mundo corporativo, onde boa parte de nós desenvolve suas carreiras. O ambiente executivo tem pavor da merda. Não há espaço para dor. Não há espaço para os altos e baixos da existência. Depressão é vista como um crime hediondo, uma palavra que você não ousa pronunciar e que a maioria das pessoas afoga em comprimidos de variadas cores e efeitos.

Todo mundo tem seus dias sem cor e seus desvãos da alma. Isso é humano. Mas ninguém fala sobre isso. Por vergonha. É preciso estar sempre pra cima. É preciso estar sempre animado. Não importa o terremoto, o tsunami ou a bomba atômica que estourem sobre a sua cabeça, ou que existam dentro de você.

A dor psíquica é proibida. Algumas emoções são vistas como fraqueza, como bobagem, como um elemento a ser banido. Como se não falar sobre a coisa – que existe dentro de todos nós – fosse fazer a coisa desaparecer.

Você é convidado, no mundo das empresas, a ser um super-homem e uma supermulher. Esse é o mito que nos move na vida profissional: cavaleiros solitários que passam incólumes por tudo, gente durona que não sente as coisas, que trata apenas de resolvê-las. As relações de trabalho não devem lhe afetar pessoalmente. E você não pode contaminar o ambiente como uma fruta podre. Mantenha as aparências. Mantenha o espírito exultante. O escritório dever ser como numa colônia de férias excitada por G.O.s (lembra dos “gentis organizadores”?).

Eis a vida adulta com ela se apresenta para nós. A gente tem contas pra pagar. A gente tem responsabilidades. Não podemos levar “nossos problemas de casa” para o trabalho. Como se a gente não fosse a “casa” dos nossos problemas…

Para algumas pessoas é tranquilo fingir, esconder, sublimar, criar uma personagem e atuar a partir daquela persona, cujas falas às vezes divergem completamente daquilo que estamos sentindo e pensando de fato. Para outra, é impossível manter todas as aparências por todo o tempo. (Graças a Deus!)

Quem se deixa entrever por trás da marca acaba sofrendo. O sistema não lida bem com verdades que destoem do coro geral. Como nos tempos de escolas, nas turmas de amigos, a tendência é quase sempre deixar para trás o que é triste – afinal, ninguém está a fim de “bad vibes” (se estou represando as minhas, por que esse cara não dá um jeito nas suas também?).

Há um jeito melhor de conviver com a merda?

Penso que ajuda admitirmos que ela existe. E que fazer de conta que ela não está ali só a torna mais poderosa.

Depois, nos admitirmos humanos vivendo entre humanos. Não somos perfeitos – então devemos tratar a imperfeição alheia com humildade e compaixão. Só a empatia – outro sentimento exclusivamente humano – pode ajudar. Tentar entender, se colocar no lugar do outro, ouvir – como é importante saber ouvir! –, admitir o outro, sem julgamentos, reaprender a vê-lo. Tudo isso pode diminuir a pressão. Não apenas sobre o outro, mas também sobre si mesmo – sim, você também pode ter um dia ruim, amigo. E eu não lhe abandonar por causa disso. Acolher é melhor do que excluir. Acolher o outro significa também ser acolhido. Excluir o outro é se excluir também.

Ao longo da minha carreira, vi muita gente ser excluída. O sistema expele de modo sumário e cruel peças que deixam de performar bem. Só que nós não somos peças. E o sistema não é algo externo – nós somos a engrenagem. Não somos apenas vítimas dela. Somos também seus pilotos. Então podemos influir no jeito com ela vai funcionar. Se as coisas estão tortas, temos participação nisso. E podemos ajudar a melhorar.

Lembro de um amigo, atravessando um momento ruim, com a vida encrencada em casa e com um problema de coluna que lhe causava dores crônicas, ser ejetado do mundo corporativo. Pouco tempo depois, eu mesmo, afundado na depressão que me trazia dores emocionais e físicas, também fui convidado a me retirar.

Naquele momento, a exclusão me fez muito mal. Mas, hoje, olhando para trás, acredito que, no fim das contas, me fez bem. Não ser aceito, vivendo o que eu vivia e sendo quem eu era naquele momento, só potencializava tudo o que podia haver de pior. Continuar ali, daquele jeito, não era nada bom. Sair abriu um novo caminho, uma nova perspectiva.

A experiência de cair e de levantar me ajudou a entender melhor o sistema. Me ajudou a fortalecer dentro de mim meus valores em relação ao mundo, ao trabalho, às pessoas, a mim mesmo. A gente aprende. Inclusive, e principalmente, com a dor. (Outra razão para admitirmos, sem noias, que ela é parte integrante em nossa vida e que cumpre uma função.) Hoje compreendo melhor meus desejos, minhas crenças, minhas particularidades.

A exclusão me fez trilhar um caminho diferente. Encontrei a oportunidade de aprender a usar o amor para lidar com dores muito maiores do que as minhas, me abrindo a outras pessoas, de forma positiva e otimista. Tal como meu trabalho com crianças com câncer e suas famílias, desenvolvido no Beaba, ONG da qual eu orgulhosamente faço parte. (Entra o merchan: colabore com a nossa cartilha “Beaba do Câncer”, clicando e doando aqui.)

Falei desse assunto pela primeira vez numa carta para mim mesmo, 10 anos atrás, num projeto do site Hypeness, publicada em março de 2014. Algumas pessoas me criticaram. Acharam que eu estava me expondo demais. Na era apenas um desabafo. Era a tentativa de capturar, entender e explicar a realidade que eu estava vivendo naquele momento. Justamente por isso, eu não poderia mentir para mim mesmo, ali, falando comigo mesmo. E compartilhar a sua verdade com os outros não poder ser algo ruim. Nem para você nem para os demais.

A depressão é uma doença. É importante dizer que ela não é uma tristeza banal, uma melancolia qualquer ou uma coisa apenas emocional. É um baita desequilíbrio no organismo, de aspectos químicos e energéticos. Não consigo entender exatamente o que me levou a ela, mas tenho a compreensão de diversos fatores, desde uma tendência familiar – um histórico que vem do bisavô – ao fato de a vida ter me colocado num caminho no qual fiz escolhas que não deram muita chance de olhar para mim mesmo, jogando muita sujeira para debaixo de um imenso tapete. Uma hora, a coisa acumula tanto e só aí a gente vê o estrago que isso faz.

Enquanto estive na merda, houve gente que passou pelo meu caminho e me aqueceu o coração. Gente que estendeu a mão. Ou apenas perguntava, todos os dias, como eu estava. Posso dizer que essas pessoas me salvaram.

Eu lutava para vencer a barreira que colocava para quem queria chegar perto. Quando eu digo “todos os dias” não é figura de linguagem. Há gente no mundo que já percebeu a importância de ser gente – antes de ser qualquer outra coisa. Elas têm minha gratidão. E elas me inspiram a perguntar, hoje, para outras pessoas, “todos os dias”, literalmente, “como você está?” Quem recebe, como eu recebi, tem a obrigação de oferecer também. Não tenho o direito de questionar quem não percebeu ou o tanto de gente que nem soube como chegar perto. Poucas coisas são tão difíceis na vida como lidar com o sofrimento do outro. Mas eu peço: insista. Com delicadeza, mas insista. Ninguém consegue sozinho. Eu não consegui.

A merda existe. Outros dias escuros e frios virão. Cada dia é único e deve ser vivido com toda a intensidade e paixão que ele merece – os bons e os não tão bons. O único tempo que existe é o presente. Ela é parte da vida. E a vida é real, é única, é fantástica com tudo de bom e de ruim que ela traz – inclusive a merda.

Reconhecer seu valor – da vida, não da merda – é o que pode ajudar a ultrapassar as piores fases de nossas vidas. Perder essa capacidade é morrer. E, na boa, eu não estou a fim disso.

 

Jean Boëchat, 42, o Jampa, é, jobiniamente falando, “um pobre amador apaixonado”. É também escritor, compositor e diretor de estratégia digital da agência Talent. É também voluntário do Beaba, ONG que busca desmistificar o câncer infantil de forma leve e otimista.

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