Anitta, MC Rebecca, Lexa, Naldo, Valesca Popozuda, Kevin O Chris. Mesmo que você não seja fã de funk, você deve estar familiarizado com a maioria desses nomes.
Além do ritmo musical, todos têm como ponto em comum, em suas trajetórias, a presença de uma mulher conhecida como uma das principais reveladoras de talentos do funk brasileiro.
A empresária carioca Kamilla Fialho, 40, hoje atua nos bastidores, mas iniciou sua carreira na frente das câmeras, como apresentadora do “Furacão 2000”, programa de TV que (a partir dos anos 1990) foi um dos principais disseminadores do funk no país.
Na TV, Kamilla conheceu Dennis DJ, com quem se casou. Informalmente, acabou ajudando na gestão da carreira do marido. Dali para empresariar oficialmente seu primeiro artista, o MC Sapão (1978-2019), foi um pulo.
Mesmo com quase 20 anos de estrada, Kamilla afirma que até hoje precisa lutar contra o machismo no mundo da música. Em sua agência, a K2L, 90% dos 75 funcionários são mulheres. “A empresa fica harmônica, leve, perfumada e linda”, diz.
No trato com os artistas, nem tudo são flores. Ela chegou a ter uma briga judicial pública com Anitta, que foi agenciada por Kamilla. O “divórcio” aconteceu em 2014.
Mais recentemente, a pandemia trouxe turbulência ao setor, cancelando shows e reduzindo em 80% as receitas da K2L. Kamilla precisou mudar de estratégia e ampliar o leque de atuação da sua empresa, passando a agenciar também influenciadores e a cuidar do marketing de marcas.
Outra novidade foi o lançamento do curso online Como Viver de Música, através do qual ela pretende passar parte da sua experiência de empresária para quem quer se lançar no ramo.
Em entrevista ao Draft, Kamilla Fialho fala sobre sua trajetória, a evolução e a potência da indústria do funk no Brasil.
Como você entrou no universo do funk?
Começou porque eu apresentava programas de televisão aqui no Rio. Programas pequenos, regionais, não tinham tanta expressão. Até que pintou a vaga para ser apresentadora do “Furacão 2000”. Fiz o teste e passei.
A partir daí começou meu contato com o funk. Lá conheci o pai da minha filha, o Dennis DJ, um grande representante do funk, e praticamente fiz mestrado e doutorado com ele. Foi quem me inseriu em tudo isso. Como mulher dele, já estava empresariando o Dennis e não sabia. Foi o primeiro de muitos que vieram depois.
Quais foram os desafios para passar de apresentadora a empresária?
Primeiro, tive que aprender a me comunicar. A galera tem uma comunicação própria, as gírias, um lugar de fala que não me pertencia. Por mais que morasse na Tijuca e frequentasse comunidades, não estava inserida no dia a dia.
A dificuldade, no primeiro momento, foi conseguir entender o que se passava, quais eram as dores das pessoas, para que pudesse somar e ajudar. Isso em relação aos artistas
No show business e na música, o principal obstáculo era ser mulher — e muito jovem. Não conseguia ser ouvida por todos os lados. Ou sofria machismo, ou então achavam que eu era muito novinha e não sabia o que estava falando. Fácil não foi, não.
O universo do funk em si é muito machista?
Sofro com isso até hoje. As coisas melhoraram, mas não mudaram totalmente. É importante bater nessa tecla o tempo todo, por mais que pareça “mimimi”, que seja chato e repetitivo. Quem não se importa faz questão de mudar de assunto, então a gente tem que fazer uma lavagem cerebral em relação a isso.
Minha empresa, a K2L, é majoritariamente feminina. As meninas, que estão trabalhando comigo há uns quatro anos, sofrem nas mesas de reunião o mesmo que eu venho sofrendo há 18. Isso me deixa indignada, são os mesmos problemas de sempre
É preciso um macho na mesa replicar o que você está falando para dizerem: “Agora eu entendi, Kamilla, você não estava se fazendo clara….”
O machismo, infelizmente, é uma das coisas que impedem que existam mais mulheres no show business. Na minha opinião, elas têm mais sensibilidade, facilidade para lidar com muitas coisas e são mais eficientes. Nada contra os homens — mas acredito que, nos bastidores, as mulheres performam melhor. Só que ela nem manda um currículo porque não se vê ali.
Minha missão espiritual e meu trabalho daqui para frente é bater nessa tecla. Quem sabe eu ainda consiga ver uma mudança radical nesse cenário antes de morrer.
Você tem lutado essa batalha dentro da própria K2L?
No início, contratava minhas amigas. É difícil chamar alguém para trabalhar dentro da música, principalmente no funk. Achavam que eu estava maluca, que nunca ia dar certo, era perigoso etc. Um negócio que é nosso, a gente tinha que estar cuidando melhor, mas ninguém cuida. Tentei contratar homens, mas vi que rendia muito mais com mulheres.
Por muito tempo, me fiz de “fragilizada” nas reuniões. Enquanto os homens achavam que dominavam tudo, eu estava manipulando o sistema, para ser muito sincera. Quando entendi que era esse o jogo, me perguntei: “É disso que eles precisam? Que eu me faça de frágil para que me escutem ou fechem um negócio? Então é isso que vou fazer”
Depois de uns dois anos, entendi que ter mulheres trabalhando para mim seria o foco. Hoje são 75 pessoas e 90% são mulheres. Os homens héteros do escritório, os machinhos, estão todos com muita vontade de mudar esse cenário, de colaborar. Somos antimachistas. A empresa fica harmônica, leve, perfumada e muito linda.
Existe um segredo para ter trabalhado com tanta gente, como Anitta, Kevin O Chris e MC Rebecca? É difícil trabalhar com gente tão conhecida?
A maioria não é conhecida quando chega, eles se tornam. Meu trabalho é revelar pessoas, eu não descubro. Dificilmente abordo um artista. Quando vejo, a pessoa já me mandou uma mensagem, “bate no coração” e aí quero trabalhar com ela.
Existe uma dificuldade grande, porque minha raiz é o funk, a música urbana. São pessoas que infelizmente não tiveram uma estrutura familiar, aquela coisa do berço que deveríamos todos ter, com educação e cultura. Então, num primeiro momento, elas acabam recebendo muita informação. É preciso aprender o que ainda não se conhecia, além das novidades
Fácil, não é. Costumo direcionar todos os meus artistas para a terapia. Como o artista tem pessoa jurídica e física no mesmo corpo, acredito que a terapia seja um segredinho para todos eles manterem o equilíbrio. Eu indico, mas não posso obrigar ninguém a fazer.
Quais as suas maiores realizações nesses quase 20 anos no ramo?
Eu me orgulho de ter participado da mudança do funk para o pop. Me sinto parte desse crossover que sempre acreditei que ia acontecer.
Quando vi que o funk era a música eletrônica brasileira, que seria enxergada lá fora como música até mais rápido que aqui no Brasil, tinha certeza que daria certo. Há 15 anos, as pessoas me chamavam de louca; esta semana, incluíram o funk numa categoria do Grammy. Parece realmente um sonho
Cada vez que algo assim acontece, me sinto realizada. Mas sou um tipo de mulher que, quando chega a algum lugar, já almejou tantos outros que só comemoro e sigo em frente. O céu realmente é o limite.
Por que você decidiu criar um curso que ensina como viver da música? O que sua trajetória pode acrescentar a outras pessoas?
Não existe uma faculdade para trabalhar com música, muito menos com funk. Hoje em dia, com o mercado digital, fica ainda mais louco.
Durante a pandemia, os artistas ficaram paralisados, sem saber o que fazer. Os que já faziam shows — e os que não faziam — não sabiam se lançavam disco ou não… Aí me dei conta de que muita gente fazia coisa errada por falta de conhecimento, exatamente como eu. Se para as pessoas hoje é tão difícil, imagina na época em que a internet ainda não era assim, não tinha informação para estudar.
No nosso meio, não sei por que as pessoas acham que tudo é concorrência. Ninguém entende que o coletivo é que manda. Os empresários da minha geração e os mais novinhos estão vindo com uma cultura de que “tudo é deles”, só eles sabem. Eu não concordo
Consegui criar um passo a passo ao longo desses anos: o que fazer primeiro quando se decide cantar, empresariar, escrever uma música ou produzir um artista… Na maioria das vezes, as pessoas vão para o décimo passo, que é gravar uma música e lançar um clipe. Só que aí o cara não escolheu prateleira [mercado], não sabe qual o discurso. Não sabe tudo que vem antes de a música estar pronta.
Por isso existem tantos artistas talentosíssimos, que cantam pra caramba, só que o estilo deles parece que não combina com a música. A conta não fecha. A cada dia que passa, estamos mais criteriosos com quem nos inspira e quem queremos seguir.
Eu quis passar tudo isso no curso, a importância do primeiro passo. Está bem completo. Tenho certeza de que ajudei muita gente a, no mínimo, parar de fazer besteira, gastar dinheiro à toa e não se frustrar.
O funk se profissionalizou?
Ele até tem vindo com mais profissionalismo, mas ainda acontece da mesma forma. Um cara da comunidade faz uma música que toca no baile; a música funciona e ele segue em frente. Só que quem está do lado dele é o irmão, o primo, o amigo. Não é uma pessoa que tem conhecimento daquilo.
Antes de fazer o curso pago, existe o gratuito. Vi que atingi muita gente que não teria grana para pagar. “Meu primo é MC, começou a cantar e fez um sucesso. Quanto cobro de cachê? Existe um contrato?” Se conseguir passar por todos os problemas e sobreviver, o que é muito difícil, a pessoa ainda gasta muita grana, perde fôlego — e acaba desistindo da carreira
Por mais que a gente esteja bem mais profissional, com escritórios como KondZilla, GR6, de onde essas pessoas vêm ainda falta um direcionamento. A pessoa pode virar empresário ou produtor — só precisa estudar, entender onde está entrando.
Como a pandemia afetou seu trabalho?
Foram dois anos difíceis, de sobrevivência. Dentro da K2L, criei um sistema em que somos um time de futebol, e o cantor é o nosso Neymar. Temos obrigação de fazer a bola chegar até ele.
Só que antes, trabalhando juntos, às vezes um já enxergava o problema do outro e resolvia ali mesmo. Do nada, todo mundo foi para casa, com internet ruim. Ninguém estava preparado. A gente fazia reunião de produção de um DVD com 30 pessoas num call; se uma delas perdesse a data do ensaio, na véspera [do show] podia faltar microfone… A comunicação foi ficando desesperadora — paralelamente a uma perda de 80% da receita.
Tive um 2019 brilhante, foi quando lancei o Kevin e a MC Rebecca. Em 2020, aconteceu isso [a pandemia]. Literalmente fizemos os cálculos de quanto precisávamos para fechar a conta todos os meses e não dispensar os colaboradores. Todo mundo teve que reduzir o que ganhava porque não dava para pagar
Esse foi o maior problema, a perda de receita. Os artistas ficaram muito mexidos. Tinha gente que trabalhava com isso há dez anos e nunca tinha ficado em casa no final de semana. A pessoa nem sabe o que fazer com esse tempo. Era muito difícil manter a inteligência emocional e o equilíbrio em dia, esse foi meu maior desafio.
Qual foi a saída para lidar com a situação?
Para fechar a conta, a gente ampliou para o setor de marcas e começou a trazer pessoas e serviços. Hoje, acredito que qualquer pessoa tem que ter um branding muito grande.
Vi que os influenciadores, assim como acontece na música, achavam que bastava ser influenciador. Recebe um pedido e faz um feed de três stories. Numa semana o cara ama água de coco, na seguinte ele é super a favor do Gatorade… Ele bombou na internet, mas o que quer deixar de legado? O que quer passar para os seguidores? Comecei a perceber que o mercado de influenciadores tinha muito disso, até entre os maiores.
A primeira com quem a gente trabalhou foi a Boca Rosa, que estava vindo de uma crise do Big Brother lá em 2020. Solucionamos a crise e comunicamos a Boca Rosa como ela é de verdade. As coisas mudaram completamente para ela, e vi que era possível replicar isso para outros influenciadores
Só porque você é influenciador, não quer dizer que está pronto para virar apresentador. Mas você pode estudar, pegar cursos específicos, se aprimorar e aí fazer um teste. Então, nos abrimos para esse mercado de influenciadores, atores e atrizes. Hoje temos Isabela Matte, Júlia Peixoto, Bruno de Luca, Marcello Melo Jr… Foi o que nos ajudou financeiramente.
Como funcionam os setores de consultoria e criação de produtos da K2L?
Antes, tudo estava dentro da K2L. A música, o mercado digital e as plataformas de comunicação, que reúnem redes sociais e streaming, duas coisas gigantes, estavam misturadas dentro de uma mesma empresa.
Aí, eu vi uma agência de marketing digital que estava crescendo muito. Chamei a fundadora [Fernanda Moreira Cruz], que tinha uns 19 anos, para fazer um match. “Você tem o que eu preciso, está muito antenada e é jovem; e eu tenho experiência.” Hoje, sou sócia da agência Highlight e já pude esvaziar um pouco a K2L.
Todo mundo queria vir para a K2L, só que era um serviço 360º, desde a roupa que o cara usa e o Imposto de Renda até o que ele fala na rede e a música que vai lançar… Criei um selo para cuidar só da parte fonográfica, e a K2L continua para os artistas que estão lá dentro, com o mesmo trabalho 360º
Hoje, se o cara vier só querendo distribuir suas músicas, eu tenho um selo. Vou fazer um trabalho de excelência, assim como fiz na K2L. E tenho a Highlight para o marketing digital. Então são três empresas [K2L 360º, Highlight e o selo Urban Pop], cada uma fazendo uma coisa — embora a K2L de fato faça tudo
Só que, para entrar na K2L é preciso um investimento alto, são muitas pessoas trabalhando. Alcançamos um espaço nesse mercado em que não posso mais errar. Quando a pessoa chega, digo que não vai ter outra chance, por bem ou por mal “tem que acontecer”.
Além de desafogar financeiramente, estamos conseguindo atender outros clientes, como produtos, marcas e serviços. Nem sabia se podia falar, porque ainda não anunciamos isso, aconteceu literalmente há um mês.
Vi amigos meus que, com a pandemia, ficaram mal, perderam o emprego, fecharam o negócio — e eu abri mais dois. Sei me virar bem nas crises. Sei me reinventar e, quando vejo, estou até melhor que antes.
Qual é o espaço que a K2L ocupa na música brasileira hoje? O que você espera para o futuro da empresa?
Acredito que fomos responsáveis pelo que aconteceu e está acontecendo com o funk, porque ainda temos muitos cases, como o Kevin O Chris, sobre quem nem preciso falar nada. Mas devemos ampliar mais para a música urbana como um todo.
Estou vendo um crescimento do trap e do rap tão grande quanto foi o do funk, e da mesma forma: sem estrutura nem profissionalismo. Já estou atenta a esse mercado com um outro olhar. Tanto que o nome do novo selo é Urban Pop, exatamente a música urbana que virou o pop do país.
Os brasileiros ainda têm dificuldade para entender isso, porque acham que o pop é aquela música internacional. Não: estou falando de atitude pop, gestão pop. O Thiaguinho faz pagode, mas é pop, está nos programas de TV, em todas as rádios.
Minha missão no funk foi cumprida, mas ela é eterna, vou continuar trabalhando com isso. Quando entro numa comunidade, escuto de uma criança que ela quer ser ou MC ou jogadora de futebol; antigamente, era só futebol. Outra coisa: quero me atentar mais para as minorias. Meu sonho é ter um selo para artistas LGBTQIA+, que nem pensam que podem fazer sucesso porque não se veem ocupando aquele espaço
Graças a Deus vieram as Pabllos [Vittar] e Gloria Grooves da vida, e as pessoas começaram a se empolgar, mas ainda falta uma injeçãozinha de Kamilla na vida delas. A ideia é pegar essas pessoas para trabalhar, criando um selo ou absorvendo um, para mostrar a real música popular brasileira, que vem dessa galera.
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