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O Las Magrelas não é só bar, nem só bicicletaria. É a soma disso às paixões de Talita Noguchi: ativismo e feminismo. E dá certo

Phydia de Athayde - 4 set 2014 Talita e Rodo no Las Magrelas
Talita e Rodo, na oficina de bicicletas do Las Magrelas
Phydia de Athayde - 4 set 2014
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Se procurasse em sua caixa de ferramentas, a paulistana Talita Noguchi não encontraria nenhum dos itens aparentemente necessários para estar à frente de um empreendimento especial, ligado a um universo que ela ama e, além disso tudo, financeiramente sustentável. Ainda assim, o Las Magrelas, uma mistura de bar e bicicletaria, foi inaugurado há um ano e meio com enorme agitação — pense em 2.000 pessoas em festa, fechando a rua — e desde então, caixa e rodas de bicicleta seguem girando sem erro.

Aos 28 anos, sem curso superior (largou Direito e História), Talita apoia o seu projeto em dois pilares: cicloativismo e feminismo. É como se a inquietação natural de quem já não está satisfeito com algo na sociedade se somasse à coragem necessária para colocar um projeto inovador de pé. Ou como se o Las Magrelas só pudesse existir como consequência das escolhas individuais e coletivas de um certo grupo de pessoas, e não só de Talita, em um certo momento, em um certo local.

Ela e seu sócio e amigo Rafael Rodolfo Chacon, o Rodo, vêm de uma vivência de quase uma década no cicloativismo — grupos que organizam pedaladas coletivas, oficinas comunitárias, e que pressionam o poder público por melhorias nas vias e pelo cumprimento das leis relacionadas à bicicleta. Neste período, além de conhecerem muita gente com ideias parecidas, ambos dois decidiram trabalhar como vendedores de bicicleta, para ficarem mais próximos do seu propósito de vida. Não bastou.

COMO INVENTAR O SEU EMPREGO

“A bicicleta sempre foi um instrumento muito libertador, um objeto de paixão, mas os espaços onde trabalhávamos não completavam nossos desejos de ativismo, de cicloativismo, de outras entradas na sociedade”, diz Talita. “Por isso, decidimos abrir nosso próprio negócio, onde pudéssemos trabalhar com bicicleta e, ao mesmo tempo, com vários tipos e níveis de ativismo. Não tínhamos 1 real.”

Eles vislumbram um cenário, o ponto em que a paixão se fundiria milagrosamente à grana gerando felicidade, e não de intimidaram pela falta de capital. “Sentamos para planejar. Começamos a pesquisar mercado, valores, o quanto precisaríamos. Depois de seis meses tínhamos o projeto pronto e fomos correr atrás de dinheiro”, conta Talita. Em vez de apresentar a ideia a investidores estranhos ao universo da bike, eles acionaram a própria rede. Dispararam emails para os conhecidos do cicloativismo, explicando o que precisavam e se oferecendo para mostrar detalhes a quem se interessasse. Levou algum tempo, mas deu certo. Dez pessoas toparam financiar o projeto.

“Não é como no financiamento coletivo, em que há prêmios, no nosso caso o retorno é financeiro. Temos 3 anos para devolver os valores investidos, acrescidos de 50%, e fizemos contratos baseados neste acordo”, diz Talita. Inicialmente, a prospecção buscava levantar 180 mil reais, e essa estratégia rendeu pouco mais da metade, 100 mil. “Era menos do que planejamos, mas a gente se olhou e falou: vamos!”

bikes Las Magrelas

Primeiras bicicletas, ainda nas caixas, chegando ao sobrado recém pintado na Vila Madalena.

O Las Magrelas, mistura de bar e bicicletaria, abriu em fevereiro de 2013 e à época era formado por três sócios. Além de Talita e Rodo, responsáveis pela mecânica, a chef de cozinha Joana Rocha, que cuidou do bar durante o primeiro ano até deixar a sociedade e se tornar uma colaboradora permanente. Mas não dá para contar a história do Lasma, como o projeto é chamado carinhosamente pelos frequentadores, sem mencionar outra turma que divide o mesmo sobrado: o pessoal d’oGangorra. Eles são uma rede de pessoas ligadas em ativismo e mobilidade urbana, e que usa o segundo andar como espaço de co-working e laboratório permanente de projetos, palestras, workshops e oficinas.

O imóvel fica na rua Mourato Coelho, epicentro da boêmia Vila Madalena. Da rua, o que se vê é uma oficina de bicicleta ocupando a garagem da antiga casinha, pintada de preto e branco, com formas geométricas, e sem letreiro. Mas nem pense em estacionar seu carro em frente: um cavalete de metal serve de bicicletário público e vive cheio de magrelas, bicicletas de visitantes, de amigos, de quem trabalha na casa, de quem está passando pelo bairro. Uma escada lateral leva ao pequeno terraço, ao bar e… bem, a um mundo de iniciativas e narrativas de histórias de muitas pessoas envolvidas.

Como Talita gosta de dizer, nada aqui é só dela. “Essa casa foi coletivamente construída. Temos muito a agradecer aos outros. A gente não tinha dinheiro para a reforma e reunimos 60 pessoas, que passaram um final de semana inteiro trabalhando aqui, arrumando tudo, porque acreditavam no projeto. A gente vem do cicloativismo, a gente pensa na sociedade e a gente deve muito à sociedade. Começamos já estourando porque as pessoas queriam que a gente estourasse, sabe?”

A gigantesca festa que fechou a rua no dia da inauguração materializa a visão dos sócios a respeito do negócio. Eles veem os entusiastas da bicicleta como uma família, e acreditavam que essa família receberia bem um espaço de encontro e convivência. Esse é o diferencial do projeto Las Magrelas. “Por que um bar e uma bicicletaria? O bar vem no intuito da pessoa ter onde sentar, onde beber e onde ter ideias para poder sair daqui para o mundo. Não é só a bicicleta, é o que pode surgir a partir disso. Temos um recorte muito específico”, diz Talita.

“Um bar não pode ser só um bar. Quando você orienta o lugar, dá uma cara pra ele, ele passa a fazer sentido. As pessoas sabem que vão vir aqui para encontrar pessoas e ideias diferentes. Trabalhar com nichos politizados é isso: a gente se fortalece, e quer ver o outro crescer. Não é só a minha história, são várias histórias”

Ainda que não os tenha visitado pessoalmente, alguns espaços de convivência ligados ao universo da bicicleta inspiraram o Lasma. Em Londres, o No Hands foi uma referência, e nos Estados Unidos a Velo Cult também. Nenhum deles, porém, tem a identificação com o feminismo que, segundo Talita, também ajuda a impulsionar o negócio. “Essa casa tem seis donos, e quatro são mulheres. Quando se fala isso em nichos feministas, tem mulheres que fazem questão de vir consumir aqui para fortalecer uma empresa como essa. As irmãs fortalecem as irmãs. Trabalhar com nichos politizados é isso: a gente se fortalece, e quer ver o outro crescer. Não é só a minha história, são várias histórias”, conta Talita, que se tornou ativista do feminismo após ser expulsa de casa aos 17 anos por ser homossexual.

LUCRO COM PROPÓSITO

O viés ideológico está presente nas mais simples decisões comerciais do Lasma, desde a escolha dos fornecedores. E, ao contrário do que possa parecer à distância, essas escolhas dão dinheiro.

Não vá ao Las Magrelas em busca da cerveja mais barata da rua. A casa optou por trabalhar com pequenas cervejarias nacionais. Para dar força e vazão às pequenas causas. Na geladeira há diversos tipos de longnecks 3 Lobos (17 reais) e Eisenbahn (10 reais). Exceção a esta oferta é a Heineken (6 reais), solução encontrada para quando a demanda é mais alta e por volume. “Um bar não pode ser só um bar. Quando você orienta o lugar, dá uma cara pra ele, ele passa a fazer sentido. As pessoas sabem que vão vir aqui para encontrar pessoas e ideias diferentes. Com a bebida é a mesma coisa”, diz Talita. E a ideologia fecha o caixa. Apesar do menor giro, o lucro com as cervejas artesanais já se equipara ao obtido com a oferta de Heineken.

Las Magrelas à noite

Nas festas do Las Magrelas, dezenas de bicicletas ocupam a frente do imóvel

Quando sonhou abrir um bar e bicicletaria, Talita se projetava na oficina, cercada de ferramentas, parafusos e bicicletas para consertar. Isso mudou há exatos seis meses, quando a Joana, sobrecarregada com as demandas do bar, abriu mão da sociedade. Ficaram Rodo e Talita. Rodo tentou assumir o balcão mas, apesar do esforço, não aguentou 10 dias na função. Talita então abandonou a oficina para se dedicar ao bar, onde encontraria desafios e caminhos novos. “Eu não conseguia cuidar da cozinha, porque meu sonho era montar roda e não fazer comida, né? Mas a gente conseguiu uma coisa muito legal, que é um esquema não hierárquico, horizontal. Às sextas e sábados um chef vem fazer hambúrguer artesanal, o Akira Kojima, e a gente tem um acordo de divisão de gastos e lucro. Às terças acontece a mesma coisa, com a minha ex-sócia, que é o Jô Bistrô. Foi a solução que arranjei, porque não ia cozinhar. Nos outros dias, estou me virando: eu faço tostex!”, diz, dando risada.

Muito além do tostex, ela ampliou o cardápio do espaço ao intensificar a agenda ativista com exibição de filmes, exposições de foto e apoio a iniciativas, ora cicloativistas, ora feministas, como o Girls Rock Camp. “Fomos o espaço de arrecadação delas, um projeto incrível em que mulheres ensinam meninas a tocar instrumentos de rock. Durante uma semana, tinha show aqui todas as noites. Elas consumiam muito, sabe? Ganhei dinheiro para caramba. Quando você acredita em outros projetos, outros projetos acreditam em você”, diz Talita.

O tíquete médio do bar é de cerca de 30 reais, nos finais de semana a casa recebe cerca de 200 pessoas. Isso, somado às entradas da oficina, rendeu ao o Las Magrelas um faturamento bruto de 250 mil reais no primeiro ano. Está dentro do planejado e para 2014 os números seguem no azul. É interessante ouvir a proprietária falar sobre a expectativa para o segundo ano. “As metas do bar e da bicicletaria são menos financeiras e mais ideológicas, sempre. A meta que tenho para o bar é conseguir ter, todos os dias da semana, discussões sobre algum tema. Já tivemos sobre Espaços Autônomos, já falamos de Violência Obstétrica, mas quero que isso se torne, ao longo dos próximos anos, cada vez mais claro. Queremos ser um espaço que abraça realmente várias discussões e debates.”

Bar Las Magrelas

No Las Magrelas, um pouquinho de tudo no balcão do bar

O projeto Las Magrelas está inserido em um grande networking. Em Porto Alegre existe a Vulp, que também é um café e bicicletaria com vocação ativista. Talita e Aline Cavalcante (d’oGangorra) deram uma palestra no Fórum Mundial de Bicicleta sobre como montar um empreendimento como o Las Magrelas + oGangorra. “A gente tem interesse que as pessoas possam fazer isso, porque é super necessário, tanto no meio ativista como em qualquer mundo”, diz Talita.

“CONCORRENTE” NÃO ESTÁ NO DICIONÁRIO

Ela tem a mesma postura ao falar da concorrência. No último ano, pipocaram pelo bairro outras tantas iniciativas voltadas para o público ligado às bikes. “Chamar de concorrência é muito competitivo, é olhar o outro como inimigo, quando na verdade é o contrário. Se existir uma rua só de bike, isso vai criar nichos e todo mundo interessado em bike vai para lá. Cria-se um movimento, um fluxo”, diz Talita. Os empreendedores desses estabelecimentos se conhecem. “Na verdade, a gente se ajuda. O que é difícil para mim, é difícil para eles também. Trocamos dicas. Acredito numa vivência mais amigável, mais coletiva, em que o sucesso do outro traz mais sucesso pra mim.”

A algumas quadras do Lasma fica o Kof, que serve café e pequenas refeições na rua Artur de Azevedo. Perto da estação Pinheiros do metrô existe a Aro 27, uma loja de peças para bike, que serve almoço e tem até ducha para o ciclista. Também no bairro, na rua Francisco Leitão, o Bike Café, além de servir a bebida, vende bicicletas. “Se você gosta de bicicleta e está visitando São Paulo, em um mesmo dia pode almoçar no Aro 27, beber um café no Kof e terminar a noite aqui. Eu não vendo café, eles não fazem mecânica de bicicleta. Eu sempre recomendo aos clientes que conheçam os outros lugares”, conta ela.

Ver alguém na rua pedalando uma bicicleta que o Lasma montou enche os olhos de Talita. Há um mês, o espaço abrigou um evento que resume bem a essência do projeto. “Tivemos uma festa de hardcore lésbico feminista aqui. Casa cheia, cheia, cheia, a galera se divertindo muito. Eu olhava aquilo… É óbvio que estou tendo lucro, mas poder abrir o espaço e para aquela galera toda, que se divertia respeitando o espaço e sendo muito feliz… Tem muitos momentos assim, em que olho do balcão pra galera e falo: puta, foda! Da hora. Foi por isso que eu fiz isso aqui”, diz Talita.

draft card - Las Magrelas

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