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Legado das Águas. Ou o que há de disruptivo na maior reserva privada de Mata Atlântica do país

Marina Audi - 10 nov 2016 O Legado das Águas, coberto de Mata Atlântica, é uma área de preservação que é também um campo de pesquisa e uma startup dentro da Votorantim.
O Legado das Águas, coberto de Mata Atlântica, é uma área de preservação que é também um campo de pesquisa e uma startup dentro da Votorantim.
Marina Audi - 10 nov 2016
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A primeira coisa que me veio à mente quando fui incumbida de escrever sobre o Legado das Águas foi: Uau, há uma floresta praticamente intocada a menos de 3 horas da capital paulista! E estará aberta para turismo a partir do ano que vem.

A área é de propriedade da Votorantim e, na contramão do que empresas tradicionais geralmente fazem, lá a missão é alicerçar a sustentabilidade econômica, ou seja, a ideia é que a floresta “nativa e em pé” se pague. A maior reserva particular de Mata Atlântica do país fica no sul do Estado de São Paulo e está cercada de Parques Estaduais, Parques Nacionais e Áreas de Preservação Natural.

Mas vamos partir do princípio. Na década de 1950, o empresário Antônio Ermírio de Moraes decidiu comprar terras no Vale do Ribeira, sul do Estado de São Paulo, próximas ao rio Juquiá, onde seriam instaladas sete hidrelétricas para gerar a energia que abasteceria a futura indústria de alumínio. Impedir o desmatamento das áreas ao redor das nascentes era, a seu ver, estratégico. Até 2011, os 31 ooo hectares de terra (que hoje são a Legado das Águas), vizinhas aos municípios de Juquiá, Miracatu e Tapiraí eram um problema gerencial, pois mantê-las era caro… bem caro.

QUANTO CUSTA MANTER UMA FLORESTA EM PÉ?

Para se ter ideia, em 2015, a Votorantim usou 7 milhões de reais em vigilância da área e nos programas de pesquisa e geração de receita na reserva. Na simples manutenção dos limites da floresta, há 20 pessoas trabalhando 24 horas por dia, os 365 dias por ano. Como base de comparação, em unidades de conservação públicas próximas, há somente dois funcionários esta mesma função.

Em verde claro é possível ver a reserva da Votorantim em meio aos parques públicos.

Em verde clarinho, bem no miolo, é possível ver a reserva da Votorantim, cercada de parques públicos.

O engenheiro David Canassa, 44, gerente geral de Sustentabilidade do Grupo Votorantim, é também o diretor da “startup” (assim, entre aspas, pois trata-se de um projeto interno da corporação) Legado das Águas. A Legado, ele conta, é resultado de um processo que começou há alguns anos. O departamento de Sustentabilidade da empresa foi criado somente em 2008. Três anos depois, em 2011, David e sua equipe iniciaram um estudo aprofundado de todas as terras que a companhia possuía país afora.

Descobriram que a área do Legado das Águas é coberta, em sua maior parte (75%), por mata conservada (o termo técnico é “em estado avançado de conservação”) — e que ela corresponde a 1,5% de toda a cobertura de Mata Atlântica que restou no Estado de São Paulo. Se você puxar pela memória, se lembrará de seu professor de Geografia a lhe ensinar que a Mata Atlântica brasileira contém sete das maiores bacias hidrográficas do País e que, originalmente, ela se estendia por 17 Estados brasileiros. Atualmente, ela se resume a apenas 7,5% da cobertura original. David fala do projeto:

“O Legado das Águas é onde a gente mostra que a economia clássica pode ser plataforma para a economia verde do futuro”

A grande questão dentro da Votorantim era: como provar que a floresta, em pé, pode gerar os recursos necessários para a sua própria manutenção? E outra. Como dar uma nova dimensão à proteção ambiental, de forma sustentável e econômica? Para responder a estes impasses, o time de David desenvolveu, durante um ano, o plano de negócios que propunha um novo modelo de área protegida privada, cujas atividades gerariam benefícios sociais, ambientais e econômicos.

UM PLANO DE NEGÓCIOS PARA UMA FLORESTA. ISSO MESMO.

“Não havia legislação específica para o que queríamos fazer. Fomos procurar as instâncias públicas para obter apoio e, em 2012, assinamos o Protocolo de Intenções com o estado de São Paulo”, diz David. Em paralelo, a Conservação Internacional desenvolveu o Plano de Gestão Estratégica para a Legado, com diretrizes de como atuar para alcançar o sucesso.

David Canassa é o diretor da "startup" verde da Votorantim.

David Canassa é o diretor da “startup verde” da Votorantim.

A rigor, o Legado das Águas integra uma área de negócios maior dentro da companhia chamada Reservas Votorantim, que se posiciona como gestora de ativos ambientais e procura replicar o modelo de gestão desses ativos. Isso tem dado certo. Frineia Rezende, 43, bióloga e gerente de Sustentabilidade da Reservas Votorantim, conta que já está em estágio final a institucionalização de uma nova reserva ambiental sustentável, nos mesmos moldes da Legado das Águas, mas ela ainda não pode divulgá-la.

Que modelo é esse, afinal? Diferentemente de uma RPPN (Reserva Particular de Patrimônio Natural), que é uma Unidade de Conservação particular da qual não se pode, sequer, extrair sementes de árvores para reprodução de espécies, na Reserva Privada há um zoneamento de manejo que divide a área em zonas, com permissões e usos distintos: corredor ecológico (one a proteção é integral), zona de recuperação, zona de uso sustentável, entre outros. Frineia conta que este modelo permite a flexibilidade que eles precisavam:

“Sem usar os recursos naturais não se consegue desenvolver um modelo de negócio. E, sem um modelo de negócio, não se consegue gerar receita para manter a própria área”

Estratégia definida, atualmente existem diferentes programas na Legado das Águas:

1) pesquisa científica (com a Associação Pró-Muriqui e o Instituto Pró-Carnívoros);
2) parcerias com Universidades (Esalq, USP e Unifesp);
3) estudos em biotecnologia em parceira com a Bio Bureau Biotecnologia;
4) o Viveiro de Mudas da Mata Atlântica;
5) projetos de Desenvolvimento Local de Cadeias Produtivas (que visam o empreendedorismo e a promoção do mercado de trabalho local);
6) compensação de Reserva Legal; e
7) abertura do local para Turismo Ecológico (a partir de 2017). 

Entre os acima, os que geram mais receita são o arrendamento de terras para empresas que precisam, por lei, compensar o impacto de suas atividades no meio ambiente (somente este ano, essa atividade demandou 400 hectares, dos 1 000 colocados à disposição, na Legado) e o Viveiro de Mudas, que tem plantas ornamentais e pretende popularizar espécies nativas da Mata Atlântica para uso em paisagismo e decoração. A Legado não divulga os valores, mas David prevê que em 2019 a operação passe a se pagar totalmente.

Segundo Frineia, um dos programas mais promissores, e mais carregado de inovação, é o de biotecnologia. Para dar uma ideia de como isso impactar o mundo, ela conta que o clássico perfume Chanel nº5 tem como fragrância principal o cedro rosa, uma espécie típica nacional, mas o Brasil nunca recebeu um centavo sequer por isso. O mesmo acontece com o Captopril, medicamento para controle de pressão arterial, feito com base no veneno da jararaca. Ela diz:

“Nossa biodiversidade tem um potencial gigantesco para gerar princípios ativos para medicamentos, fragrâncias e sabores para as indústrias cosmética e de alimentos”

Na Legado, a ideia é reproduzir geneticamente esses princípios ativos para não ter de tirá-los da natureza. E isso já começou com o programa Floresta Digital, que mapeou o genoma de 50 espécies da flora da região. “Ninguém faz nada sozinho. Se não fosse a gama de especialistas, pesquisadores, consultores e parceiros não teríamos chegado ao patamar que estamos”, diz Frineia.

Já os projetos de desenvolvimento científico, que receberam in loco 60 profissionais só este ano, dão suporte para a continuidade de proteção da área e aos modelos de uso sustentável dos recursos naturais, como também dão respaldo acadêmico às iniciativas ali propostas. “As pesquisas nos dão certeza sobre a saúde da floresta que temos. A presença de muriquis, onças-pardas e antas na reserva são bioindicadores. Temos de pensar nas métricas tradicionais e incorporar outras também”, afirma David.

COMO ASSIM UMA RESERVA PRIVADA?

A maior dificuldade da Legado das Águas, diz Frineia, é enfrentar a desconfiança das pessoas em geral, e também do terceiro setor, em relação ao modelo de reserva privada. “Muitas possibilidades de projetos não se concretizam porque há uma resistência a fazer parceira com uma empresa”, conta ela, que sempre convida os desconfiados a conhecer as iniciativas da empresa, divulgadas no canal do YouTube.

Empolgada com o trabalho que faz, ela não se conforma em estagnar no modelo tradicional de uso dos recursos naturais e afirma que há espaço para evoluir desde que haja diálogo para apresentar e disseminar novos caminhos:

“Precisamos urgentemente de modelos de desenvolvimento vinculados à conservação. A gente pode acessar os recursos que estão aí, desde que sustentavelmente”

Segundo estudos da Organização das Nações Unidas, a ONU, se nada mudar no padrão de consumo global, em 2025, dois terços da população do planeta poderão não ter acesso à água limpa. O legado da floresta em pé é a água, o legado das águas é a floresta, isso está claro. Sem isso, a gente não fica muito mais tempo por aqui.

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