Felipe Jannuzzi e sua futura sócia, Gabriela Barreto, fizeram faculdade em São Carlos, no interior paulista. Fascinados com as dezenas de rótulos de cachaça espalhados pelas prateleiras dos bares que frequentavam, e impressionados com aquela miscelânea de títulos engraçados e cores distintas, eles se interessavam cada vez mais pelos sabores e pela história da bebida mais típica do Brasil. Levaria relativamente pouco tempo até perceberem que isso poderia ser, ao mesmo tempo, útil para a sociedade e sustentável financeiramente para eles.
O empreendimento deles é essencialmente digital, conectado, mas começou bem tradicional: o livro Vinho & Guerra, de Don e Petie Kladztrup, que narra a história da II Guerra Mundial sob a perspectiva dos pequenos produtores de vinho da França, provocou o estalo em Felipe: “Será que dá para contar a história do Brasil a partir de um produto tipicamente brasileiro?”.
Dava. E essa inspiração o fez ter vontade de sair da cidade e ir atrás dos alambiques e pequenos produtores de cachaça para registrar o que eles faziam e como faziam. Felipe era movido pela vontade de tornar o Brasil mais conhecido entre os brasileiros, já que somos, segundo suas palavras, “um país muito rico em cultura, mas com poucos patrimônios culturais”.
A internet, claro, é o lugar ideal para democratizar o acesso à informação. Especialista em cinema e hipermídia, Felipe sempre se interessou em explorar as mais diversas plataformas online. Já em São Paulo, passou a trabalhar em uma produtora de vídeo, mas não abandonou o sonho dos alambiques. Em julho de 2010, decidiu investir de verdade em seu projeto e criar o site Mapa da Cachaça — que seria premiado em 2012 pelo Ministério da Cultura como o melhor projeto de mapeamento cultural do Brasil.
“No começo, nós saíamos nas horas livres e visitávamos alambiques nos estados de São Paulo e Minas Gerais. Chegávamos lá, batíamos fotos, fazíamos vídeos e entrevistávamos o produtor. Logo percebemos que, através da cachaça, era possível entender tanto a história de uma região quanto sua evolução econômica”, explica Felipe: “Você diz muito de um local a partir dos litros de cachaça produzidos em um determinado período”.
Felipe e Gabriela, que têm 28 e 29 anos, desembolsaram R$ 500 para colocar o site no ar. O Estúdio Cardume, empresa de webdesign que dividia sala com o novo empreendimento montou o site. Assim como o pessoal do Cardume, Felipe e Gabriela passaram pela Casa da Cultura Digital, um dos primeiros coworkings de São Paulo. Algumas empresas se desligaram de lá e montaram um outro espaço, a Casa Maloca, em que não existe uma liderança, todas as companhias dividem as contas e podem partilhar clientes a depender do projeto.
Ao visitar os alambiques, Felipe e Gabriela começaram a fazer parcerias com os pequenos produtores, o que possibilitou a formação de uma extensa rede e deu origem ao principal atrativo do site: o guia da cachaça, uma espécie de Wikipédia da bebida, onde o próprio agricultor pode cadastrar o seu produto e fazer uma busca por outros tipos de pinga. É também onde produtores e interessados pela bebida se encontram.Todas as cachaças do Mapa são formalizadas, isto é, registradas no Ministério da Agricultura. Conectar essas pessoas, com informação de qualidade, é o valor e o segredo e o que sustenta o projeto.
“O Mapa da Cachaça é um projeto que vive de outros pequenos projetos dentro dele. Por exemplo, vamos lançar um CD de música brasileira relacionada à cachaça; Mariana Jorge, uma pesquisadora de design brasileiro, escreve resenhas sobre os rótulos, curiosos porque são uma das primeiras formas de manifestação do design nacional; temos projetos de receitas multimídia que utilizam a cachaça e também colaboradores que nos enviam contos e crônicas ligados ao universo da bebida”, conta Felipe.
Ele fala com paixão e demonstra muito conhecimento sobre o tema, apesar de ainda não ter percorrido todos os cantos do Brasil como gostaria. Há dois anos, Felipe se sustenta e dedica exclusivamente ao Mapa da Cachaça, enquanto a sócia Gabriela ainda se divide entre a empresa e a produtora audiovisual que os dois também coordenam. Mas o ideal comum ainda é o mesmo: promover o reconhecimento da cachaça como ingrediente fundamental da gastronomia brasileira. No site, eles listam suas diretrizes.
– Valorizar o consumo moderado e inteligente da cachaça (e de qualquer outra bebida alcoólica).
– Apresentar a cachaça como identidade cultural do povo brasileiro.
– Contribuir para a valorização e divulgação da memória brasileira falando de um produto com mais de 450 anos.
– Produzir textos, vídeos, fotos, eventos, sites que se constituam como fonte de informação histórica, social, cultural e técnica sobre cachaça.
– Ser um espaço para a valorização da cachaça de qualidade, sem preconceitos e sem o rabo preso com nenhuma marca.
– Fazer tudo isso com amigos, pessoas do bem, qualquer pessoa bem intencionada e com quem dá gosto de compartilhar um copinho da bendita.
Para alcançar tudo isso, Felipe se rodeia de especialistas: pesquisadores, chefs de cozinha, mixologistas, historiadores. Um exemplo é o Mapa de Aromas da Cachaça, que ele vem desenvolvendo juntamente à pesquisadora da USP de Piracicaba, Aline Bortoletto. À semelhança das rotas de aroma desenvolvidas para café e cerveja, eles criaram um sistema de classificação onde cada nota aromática presente nos diversos tipos de cachaça está associada a uma família de aromas.
“Se vamos a Paraty, por exemplo, percebemos que a cidade produz uma cachaça que não passa por madeira, com teor alcoólico mais elevado e um aroma de fermentação muito nítido, que vem do uso de fubá de milho. No século 16, as cachaças que saíam de lá iam abastecer as minas de ouro em Minas Gerais, e eram levadas em barricas de carvalho. Chegando ao destino, a cachaça estava amarelada e agregava os sabores do carvalho”, diz Felipe.
Em parceria com o Ibama, eles agora vão mapear as madeiras amazônicas utilizadas para envelhecer a cachaça. Muito além do carvalho: outros 20 tipos de madeiras brasileiras já foram identificados até agora nos sabores e aromas da bebida.
Isso explica um outro projeto que o Mapa da Cachaça começa a desenvolver, em parceria com o Ibama: o mapeamento das madeiras amazônicas utilizadas para envelhecer a bebida, o que vai muito além do carvalho: outros 20 tipos de madeiras brasileiras já foram identificados até agora nos sabores e aromas das cachaças.
Um outro plano de Felipe é a produção de um livro sobre suas viagens pelos alambiques brasileiros, também em parceria com a Aline Bortoletto. Na obra, ele descreveria uma média de 50 alambiques relativamente desconhecidos e as marcas que eles produzem. Para o empreendedor, este é o grande projeto do Mapa da Cachaça, um de seus objetivos principais de serviço ao consumidor e ao produtor.
O DESAFIO DE MANTER-SE FIEL AO PROPÓSITO
“Com o reconhecimento do projeto, passamos a ter vários colaboradores. Nossa postura é muito firme: queremos ser um selo de qualidade das marcas e não retratamos no site nada que tenha qualidade duvidosa”, afirma Felipe. Com esse sistema, ele assume já ter perdido oportunidades interessantíssimas financeiramente, mas que iam contra o ideal da empresa. E aí, aprenderam desde cedo a ser fiéis a suas próprias convicções. Por um lado, fecham algumas portas, mas por outro, conquistam pouco a pouco o respeito e o apoio do setor. Um trabalho que exige paciência, com resultados que surgem a longo prazo.
A exigência de qualidade também dá bons frutos. O Mapa da Cachaça ganhou um edital federal, no valor de 250 mil reais, para representar a gastronomia brasileira por meio da cachaça durante a Copa do Mundo. Foi um projeto estabelecido nas 12 cidades-sede e que demandou extenso trabalho da empresa de abril a agosto. As ações envolviam produção de um pequeno livro, vídeos exibidos em totens e eventos ligados à temática durante os meses de junho e julho.
Agora, a Prefeitura de Piracicaba acaba oferecer ao Mapa da Cachaça uma Moção de Aplausos, espécie de prêmio concedido a projetos que tenham um importante impacto social onde sejam implantados. Para isso, a parceria com a Universidade Federal da cidade é de fundamental importância. “Temos cada vez mais demanda. Participo de muitas conferências onde dou palestras, promovemos eventos fechados, degustações, e tudo isso são maneiras de trazer mais recursos para o projeto. Participamos de feiras gastronômicas, inventamos drinks incríveis e postamos vídeos tutoriais, fazemos de tudo”, diz Felipe.
A ideia de ser uma plataforma colaborativa – com especialistas, produtores, governo e entidades privadas – permeia toda a atuação do Mapa da Cachaça e está no centro do seu ideal de empreendedorismo criativo: buscar contribuições dos diversos níveis da sociedade para democratizar a informação. Assim, só de observar a coloração da bebida, um amante de cachaça vai saber dizer se a aguardente que está comprando por um preço mais elevado realmente envelheceu no jequitibá – isto é, ele terá capacidade de identificar possíveis falcatruas. Pode beber tranquilo!