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Método suíço de cuidado com bebês para a favela de Paraisópolis? Sim, é o Descobrir Brincando

Giovanna Riato - 9 abr 2018 Ana criou o Descobrir Brincando ao adaptar para a periferia os cuidados com a primeiríssima infância descobertos na Suíça.
Ana criou o Descobrir Brincando ao adaptar para a periferia os cuidados com a primeiríssima infância descobertos na Suíça.
Giovanna Riato - 9 abr 2018
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E se o começo da vida fosse capaz de definir como será toda a trajetória de uma pessoa? Não é exatamente assim, mas passa perto disso. Pelo menos segundo Ana Maria Bastos, 41, fundadora do Descobrir Brincando, um projeto desenhado com foco na primeiríssima infância, que vai do zero aos três anos. “Minha teoria de mudança é que, ao tratar dos adultos cuidadores, fortaleço o desenvolvimento integral da criança”, conta. Dessa forma, sua busca está em preparar melhor pais, parentes ou qualquer responsável para estimular a criança a alcançar seu potencial máximo. E mais: fazer isso nas periferias.

Para ela, é no começo da vida que a criança desenvolve a estrutura do cérebro, sua capacidade de se comunicar e de raciocinar. Aos dois anos, aponta, uma pessoa alcança o pico de atividade cerebral, com 700 novas conexões neuronais por segundo. Por isso, o conceito de estimular os pais cuidadores caberia bem em qualquer núcleo familiar, mas o negócio de Ana prioriza o impacto social e, portanto, desenvolve esse trabalho com as classes C e D da periferia da cidade de São Paulo. Ao longo do último ano, o principal projeto da empresa foi o programa Novo Olhar, desenvolvido em parceria com o Hospital Albert Einstein e com o apoio da Fundação Mapfre, na favela de Paraisópolis, zona sul da capital paulista.

Para ampliar o olhar dos adultos, o Descobrir Brincando aposta em resgatar memórias e reconectar as pessoas com a infância.

É uma série de seis encontros de quatro horas cada um para ensinar adultos (pais, familiares, educadores, profissionais da saúde ou quem quer que esteja envolvido com o cuidado da criança) a perceberem os bebês por outros ângulos, “enxergá-los como seres capazes”, com personalidade e grande necessidade de interagir e trocar. A imersão começa, justamente, com o resgate das memórias que os adultos têm da infância. De acordo com Ana, é esta percepção que faz com que eles se relacionem com os bebês de maneira completa.

“Além de ter o básico, que é comida e moradia, é importante deixar claro para os responsáveis que a criança não precisa tanto de recursos financeiros. O que faz diferença é o repertório apresentado a elas, a construção de um ambiente favorável, ter todas as necessidades físicas e afetivas atendidas. Na verdade, o adulto é a coisa mais importante”, diz.

PARA CRIANÇAS MAIS FELIZES, CUIDE DO ADULTO QUE CUIDA DELA

O modelo desenvolvido por ela é inspirado na abordagem Pikler-Lóczy, criada nos orfanatos de Budapeste, na Hungria, quando a cidade trabalhava para se reerguer após a Segunda Guerra. Ana conta que o conceito defende uma relação respeitosa entre adultos e bebês, que não segue a lógica do manda e obedece. “A criança de até três anos ainda não fala, mas ela se comunica o tempo todo. Se ela se assusta com alguma coisa e chora, a mãe tem a chance de explicar a ela o que aconteceu, de interagir, confortar e esclarecer.”

A pesquisa de Ana foi imersiva. Ela descobriu o método com o choque de realidade que só viver na prática proporciona. Formada em odontologia, se mudou para a Suíça com o marido, que teve uma oportunidade de trabalho no país, um dos mais avançados do mundo quando se fala em economia, bem-estar social e desenvolvimento humano. Em 2009, engravidou de seu primeiro filho, que nasceu por lá. “Me impressionou muito o cuidado e o suporte que eles dão à maternidade e à primeiríssima infância. Queriam que eu ficasse no hospital o máximo de tempo possível”, fala.

Depois, quando foi para casa, Ana recebeu a visita de uma profissional do sistema de saúde perguntando se ela precisava de alguma coisa, se queria ajuda com o bebê ou até preparar uma refeição e resolver alguma pendência para ela. Na hora de voltar ao trabalho, estava convencida de que teria que retomar o ritmo de antes do parto, mas foi surpreendida quando teve a chance de escolher quantos dias e horas por semana poderia trabalhar sem atrapalhar os cuidados com a criança. Foi nessa fase que colocou o filho em uma creche que usava a abordagem Pikler-Lócsy.

“Comecei a me perguntar se a forma como a Suíça trata a primeiríssima infância tinha a ver com a qualidade de vida e os bons índices do país”

Aos poucos, Ana se debruçou no assunto e encontrou uma série de evidências de que as pessoas que recebem mais estímulos e cuidados entre zero e três anos tendem a se tornar adultos mais bem-resolvidos. Ela lembra que é justamente essa a teoria de James Heckman, economista que acumula um prêmio Nobel e defende que investir no começo da vida é a forma mais simples e barata de melhorar a sociedade.

Segundo o pesquisador, estas iniciativas reduzem, mais tarde, índices de gravidez na adolescência e evasão escolar. Heckman lembra que países mais pobres enfrentam problemas como subnutrição, violência e falta de suporte para os pais, o que, consequentemente, impede que as crianças alcancem o máximo de seu potencial cognitivo.

Com isso em mente, Ana se mudou em 2011 para a África do Sul por causa de mais uma oportunidade profissional do marido. Ali nasceu Nina, a caçula da família. “Senti a diferença entre cuidar de uma criança por mim mesma e com total suporte do sistema de saúde do governo.” Ela já não tinha mais visto de trabalho e se dedicou completamente à maternidade e a pesquisar e entender o desenvolvimento dos bebês. “O meu interesse se tornou mais profissional, não era mais um estudo só por causa da minha família”, diz.

ADAPTANDO CONHECIMENTO: UMA SOLUÇÃO COM FOCO NA PERIFERIA

Quando chegou a hora de voltar ao Brasil, em 2013, Ana sentiu aquele desassossego de que não poderia simplesmente retomar a vida de onde parou e voltar ao consultório odontológico. “Já cheguei decidida a trazer para cá a experiência que tive em um formato que coubesse na nossa realidade”, diz. Primeiro ela pensou em montar um espaço de brincar e chegou até a investir para trazer alguns brinquedos da África do Sul.

Antes de ir em frente com o plano, no entanto, voltou para a sala de aula e foi fazer pós-graduação em Educação Infantil no Instituto Singularidades. “Bati muito a cabeça antes de entender o que iria fazer”, conta. Ela estava convencida de que o caminho mais interessante era desenvolver um trabalho voltado para as classes C e D que, na visão dela, enfrentam as maiores dificuldades. Ainda assim, não sabia muito bem por onde começar.

Segundo Ana, as diferenças no começo da vida acentuam desigualdades que duram para sempre, como conta:

“Aos três anos, uma criança nascida em família com menor grau de instrução fala apenas metade das palavras das que vêm de família mais escolarizada”

Para ela, o caminho é criar um ambiente favorável ao desenvolvimento. “As mães mais pobres enfrentam desafios enormes. Muitas vezes criam os filhos sozinhas e hoje, por causa da violência, já não é tão fácil deixar as crianças aos cuidados dos vizinhos para sair para trabalhar, como acontecia normalmente. As vagas nas creches são disputadas e, em muitos casos, a criança passa o dia todo em casa vendo televisão, sem qualquer estímulo”, diz.

Assim, o plano de chegar às classes menos privilegiadas parecia o de maior impacto. Só faltava encontrar um caminho para alcançar esse público. A princípio, Ana tentou fazer isso sozinha: conversou com a funcionária que trabalha na sua casa, pegou algumas dicas e foi com a cara e a coragem ao Jardim São Marcos entender como poderia ajudar as famílias. A experiência, mesmo cheia de boas intensões, foi um completo fracasso, diz. “Tentei conversar com as pessoas e o clima era de desconfiança. Ninguém entendia o que eu queria, por que estava lá.”

A empreitada terminou sem avanço no projeto, mas ajudou Ana a perceber que precisaria entrar nas comunidades por um canal já estabelecido. Ela foi a eventos e conversou com uma série de pessoas, mas encontrou o que precisava no consultório da pediatra dos filhos. O marido da médica atendia crianças em Paraisópolis como parte de um projeto do Hospital Albert Einstein que funcionava ali há mais de 10 anos e fez a ponte que a Ana precisava.

Ana chegou à periferia com o programa Novo Olhar, do Descobrir Brincando, por meio de uma parceria com o hospital Albert Einstein.

A essa altura, Ana já tinha convicção de que o Descobrir Brincando não poderia monetizar em cima do próprio público. Se ela queria chegar às classes menos favorecidas economicamente, era preciso ter uma entidade ou empresa disposta a bancar o programa. Em 2015, levou essa ideia aos Einstein que, segundo ela, adorou o projeto, mas não tinha dinheiro. “Combinamos de fazer um piloto. Eles me deram espaço, infraestrutura e divulgação na comunidade e eu desenvolvi o curso aos sábados”, lembra. A iniciativa foi essencial para mostrar que ela estava no caminho certo. “Nessa época o ambulatório do Einstein sofria com alto índice de absenteísmo, de pessoas que não voltavam. No programa tivemos um engajamento altíssimo, com todo mundo comprometido e interessado até o fim”, conta.

DEPOIS DE DOIS ANOS, RETORNO FINANCEIRO

Quase dois anos depois de abrir a empresa, o negócio começou a ter seus primeiros frutos. Ana passou a oferecer oficinas para famílias na rede Sesc, além de ser convidada para dar palestras e consultoria para algumas organizações pelo Brasil. “Eu não precisei fazer investimento inicial além do meu próprio trabalho. Sempre trabalhei de casa e sozinha, com alguns colaboradores para projetos específicos. Com isso, mantive o custo muito baixo e consegui ir em frente mesmo demorando para monetizar.” Mas  admite que ter o marido para segurar as pontas com as contas em casa foi essencial para o processo.

Em 2016, Ana participou de dois programas que a ajudaram a fazer conexões e ir em frente. O primeiro foi o Laboratório de Educação de Harvard. “Eles buscavam projetos sociais e fizeram um intenso processo seletivo. Entrei e era a única pessoa mais velha e que não tinha vindo da periferia”, lembra. O negócio de Ana passou ainda por um programa de aceleração da Artemísia, que reuniu 28 iniciativas de impacto social. “Fiquei entre os três destaques finais. É algo que te dá um respaldo”, diz. No fim daquele ano veio uma boa surpresa: o Einstein enfim tinha um patrocínio para colocar seu projeto para rodar por um ano a partir de 2017.

Ao fim do ciclo de um ano, Ana percebe uma série de vitórias na iniciativa em Paraisópolis. “No programa percebemos que as mães já conseguiam interagir com as crianças de outro ponto de partida, com um estímulo mais interessante.” O projeto está, nesse momento, em negociação para ser ou não renovado por mais um ano. “Estou torcendo”, diz Ana. Em 2017, a empresa alcançou uma patamar interessante de faturamento: foram 250 mil reais, montante que a empreendedora pretende aumentar ao longo deste ano. No cálculo de Ana, no entanto, não é só o balanço financeiro que importa. “Quanto maior o lucro, maior o impacto”, diz, lembrando que as ações do Descobrir Brincando já alcançaram 900 famílias e 1.200 educadores, ajudando no desenvolvimento de 24 mil crianças indiretamente.

Para 2018, com o negócio mais maduro, há também novos planos. No laboratório de Harvard, Ana entrou em contato com um método que usava jogos como ferramenta para ensinar conceitos científicos. Ao longo do ano passado, se apropriou da ideia e desenvolveu, ela mesma, alguns jogos de tabuleiro para ensinar adultos assuntos como neurociência e desenvolvimento da arquitetura cerebral. Sobre estratégias para expandir sua atuação, ela diz:

“Todo mundo sempre me perguntou como eu pretendia escalar o meu negócio e nunca tive essa resposta porque o que faço exige proximidade”

E prossegue: “Com os jogos, posso mudar isso, fazer venda direta pela internet, fornecer para que escolas particulares treinem educadores ou até para que órgãos públicos trabalhem com seus agentes”. Outra frente é o trabalho com empresas. Ana já começou a negociar com uma marca de fraldas.

“Imagina que demais seria treinar a liderança para que eles entendam a importância da primeiríssima infância? Isso daria um sentido muito maior para o trabalho: eles não vendem fraldas, vendem momento de interação e cuidado com o bebê”, diz. Claro que, na visão de Ana, este conhecimento poderia ser estendido por toda a companhia, chegando a cada funcionário da linha de produção, por exemplo, que poderia levar a nova abordagem para cuidar dos filhos em casa.

Ana pretende continuar trabalhando sozinha em várias frentes, mas afirma que conta com a melhor estratégia de crescimento: o efeito multiplicador de seu trabalho. As ideias podem até partir dela, mas ganham força quando são jogadas no mundo.

DRAFT CARD

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  • Projeto: Descobrir Brincando
  • O que faz: Treina adultos para ajudarem crianças na primeiríssima infância
  • Sócio(s): Ana Maria Bastos
  • Funcionários: Apenas a fundadora
  • Sede: São Paulo
  • Início das atividades: 2014
  • Investimento inicial: Não teve
  • Faturamento: R$ 250.000 (em 2017)
  • Contato: [email protected] e (11) 98153-0707
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