A moral estabelece um conjunto de valores, princípios, crenças e regras que orientam as pessoas em relação ao que é certo ou errado, justo ou injusto, bom ou mau, ético e antiético, constituindo normas sociais de solidariedade e respeito pelos outros e pelo meio ambiente.
No entanto, sua importância em relação às leis vigentes numa sociedade é relativa e pode depender do contexto específico em que se aplica.
A acessibilidade está ligada à inclusão social daqueles com deficiência física, assim como o respeito à diversidade, incluindo raça, credo ou orientação sexual. Para garantir que esses direitos sejam protegidos e efetivados devemos botar fé na evolução sociocultural ou basta confiarmos na perspectiva legal, colocando crença na competência e sensibilidade dos legisladores?
Para muitos a pergunta pode até parecer descabida, mas o assunto merece uma discussão mais abrangente. E é o que mostro a seguir a partir da minha experiência como cadeirante.
Em 2017, me interessei por um apartamento que era um sonho para mim. As áreas comuns não eram completamente acessíveis e, antes de seguir com a compra, ainda pensei: “Será que devo mesmo comprá-lo por conta disso?”.
O apartamento era passível de todas as adaptações necessárias e a localização, o tamanho e a vista eram tudo que eu sonhava para meu novo lar.
A acessibilidade em algumas áreas comuns era um ponto de atenção, mesmo sendo coisas relativamente simples. Numa ocasião, ainda antes de fazer a compra, encontrei uma pessoa muito simpática na portaria, com quem conversei e me contou como era bom morar ali.
Falou também das questões de acessibilidade, mas não mostrou grandes preocupações com o tema. Disse que seriam coisas fáceis de serem adaptadas e que isso seria uma obrigação do condomínio. Falou até da necessidade de conserto das calçadas
Então, o que era uma preocupação deixou de ser e fui atrás da realização deste grande sonho. Até a vaga na garagem era perfeita para mim. Tudo conspirou a favor.
Assim que comprei o apartamento, conversei com a síndica. Ela prontamente garantiu adaptações emergenciais que ajudaram muito, mas outros itens que precisariam de obras ficariam para depois, pois teriam que ser aprovados em assembleia. Mas segundo ela, não via grandes empecilhos.
O assunto nunca entrou efetivamente na pauta de uma assembleia. Sempre que trazido à tona por algum morador, era dito que seria priorizado e colocado para ser avaliado no próximo encontro.
Numa ocasião, dois anos depois de já estar morando no apartamento, cheguei a cair ao passar por um caminho que tem uma inclinação lateral mais acentuada que o normal. Fui auxiliado pela zeladora e por um vizinho e, ainda assim, continuei exercitando minha paciência na esperança de o prédio fazer tais melhorias
Terminou o mandato da síndica e as obras não foram feitas. Um novo síndico foi eleito e, na primeira conversa, ele se mostrou bastante interessado em deixar tudo acessível o quanto antes. Fiquei animado, mas alguns meses se passaram e nada foi feito.
O mais curioso é que passei a ser ignorado por ele. Faltou moral, principalmente em honrar com a sua palavra ou até para dar uma resposta, mesmo que desfavorável.
Resolvi entrar em contato com um membro do conselho administrativo que me respondeu indignado com o que estava acontecendo. Mostrou moral. Mas será que honraria com o discurso?
Honrou e logo as coisas começaram a andar, independentemente do sumiço do síndico. Fez com que o assunto fosse levado à prefeitura que, em seis meses, fez uma rampa na calçada em frente à portaria do prédio.
O órgão público, que é sempre criticado pela sua morosidade, fez a sua parte antes mesmo de qualquer obra ser iniciada no condomínio
Mais alguns meses e iniciaram as obras para colocar uma rampa no lugar das escadas que davam acesso à piscina. A obra começou “rapidamente” (oito meses depois do meu último pleito — e quatro anos e meio depois do meu primeiro pleito) por conta da energia aplicada por este homem do bem e de boa vontade.
Ele tomou as rédeas da situação, peitou a administração de modo que a obra fosse feita mesmo sem a aprovação em assembleia, por se tratar de uma questão de cunho legal, ou seja, por haver uma lei que obrigava os estabelecimentos públicos e privados a serem acessíveis.
E eu, mesmo quatro anos e meio depois de ter comprado o apartamento, ainda exercia minha paciência e complacência, sem apelar para o uso de qualquer lei, pois não queria nenhuma rugosidade com meus vizinhos.
Uma entidade privada, que poderia ser muito ágil, foi mais morosa que a prefeitura, que é inundada por burocracias e diversas outras prioridades.
Morosidades de lado, o chocante é que até hoje, oito meses depois do início das obras (dezesseis meses após o meu último pleito), a piscina não foi liberada para o uso, pois os corrimãos e grades de segurança não foram instalados.
Ainda na época das minhas conversas com o proativo membro do conselho, falei sobre a existência de um equipamento, uma espécie de cadeira elevatória, que leva aqueles com restrição de locomoção da beira da piscina até dentro da água e os trazem de volta.
Até consigo entrar na piscina sem maiores dificuldades. Simplesmente, me posiciono no lado mais fundo, coloco as duas rodas da frente bem próximas da borda e, lançando meu corpo para frente, dou uma espécie de mergulho.
Na minha idade atual, isso ainda é possível, mas quando estiver mais velho, este movimento não será mais recomendável. O maior problema é sair da piscina. Para isso, preciso de ajuda de pelo menos duas pessoas para voltar à cadeira.
Portanto, um equipamento elevatório seria ótimo. Não só para mim, mas também para idosos, por exemplo, ou mesmo gestantes, a fim de evitar qualquer risco de queda
Mandei várias referências de modelos nacionais e importados deste tipo de mecanismo, alguns fixos e outros móveis. No entanto, sua aquisição teria que ser levada para aprovação em assembleia, pois não parecia se tratar de uma questão obrigatória, com exigência legal.
Poder chegar à área da piscina já era o suficiente, conforme interpretação da lei, mesmo que eu (ou outros moradores com necessidades especiais) não pudesse entrar na água como todos os outros.
Tal interpretação da lei implica dizer que a autonomia não é um direito de todos. Não há constrangimento em alguém ser carregado para entrar ou sair da piscina, graças à falta de empatia daqueles que analisam as leis apenas como um respaldo para evitar penalidades. A moral e empatia não existem nestes casos. Aliás, acredito que dê para dizer que a empatia é filha da moral.
Nessas horas não se pensa que outros também poderiam se beneficiar do elevador, ou até mesmo virem a se beneficiar dele quando a idade chegar.
Ficar na beira da piscina vendo todos se divertirem já está ótimo. Para que eu precisaria entrar dentro d’água? Para poder brincar com meu filho (que tinha 9 anos quando mudei para o condomínio)? Um luxo desnecessário e supérfluo
É aí que vale um parêntese e faço um paralelo com a lei de cotas em que as empresas com mais de 100 funcionários estão submetidas. Elas são obrigadas a contratar os pertencentes ao grupo das minorias para estarem aderentes à legislação e evitarem multas.
No entanto, uma vez que estas pessoas estão no “time”, elas não são colocadas em projetos relevantes. Ou seja, não é permitido que “entrem na piscina”. E para mim isso acaba surtindo um efeito contrário ao objetivo principal desta determinação.
O que era para possibilitar a inclusão e a possibilidade de trazer estes “esquecidos” para o mercado de trabalho, acaba provocando ainda mais segregação. Seus colegas das “equipes oficiais”, ainda sem uma moral verdadeiramente aguçada (diferentemente de seus discursos), acabam, de uma forma velada, praticando o preconceito, tão nocivo para o desenvolvimento pleno de uma sociedade. Esse é o cerne do preconceito estrutural.
Seguindo com minha luta no condomínio, no final do ano, houve uma assembleia e um novo síndico foi eleito. Nunca havia passado pela minha cabeça participar do conselho, mas como era necessário eleger três novos membros, e por falta de candidatos, alguns condôminos sugeriram que eu entrasse, o que neguei a princípio. Mas após mais alguns insistirem no meu ingresso, acabei aceitando no calor do momento.
Também fazia parte das decisões previstas nesta assembleia a aprovação da compra do equipamento para piscina. Mas o que aconteceu?
Como estava sendo eleita uma nova administração, houve um movimento para que os demais itens da pauta fossem postergados, para serem aprovados juntamente com o orçamento que seria apresentado pelo síndico recém-eleito. Mais uma vez o assunto foi deixado de lado, e minha paciência renovada.
Como membro do conselho, pude perceber as dificuldades com fornecedores, entre outras coisas, para fazer com que as obras fossem concluídas.
Num episódio, já em fevereiro, encontrei um morador no térreo que fez o comentário: “Vamos ficar o verão sem a piscina” e eu respondi: “Verdade, isso é muito ruim. Ficar um verão sem acessar a piscina é péssimo. Imagine eu que já moro aqui há tantos anos e nunca pude usá-la”
Neste mesmo período encontrei uma outra pessoa na academia do prédio e conversamos a respeito da acessibilidade, entre outros itens pendentes na área da piscina, ainda em obras. Falei sobre o tipo de elevador e ela retrucou: “Imagina, você deveria entrar na piscina.” Ainda comentou, agora com um tom jocoso, mas fiquei na dúvida se estava sendo irônica: “Eu posso te pegar e te ajudar a entrar”.
Na hora, ela pegou o telefone e ligou para uma vizinha nossa para falar das pendências e disse: “E o Fabiano está aqui dizendo que nunca entrou na piscina desde que se mudou pra cá e eu disse que posso pegá-lo no colo e colocá-lo na água”. Percebi que de fato se tratava de sarcasmo, mas dei risada preferindo tratar o comentário apenas como uma brincadeira.
Segui adiante e participei de várias reuniões, me inteirei sobre os assuntos em andamento e coloquei energia para que tudo fosse concluído o quanto antes. Trocamos de fornecedores e atuamos na elaboração do novo orçamento para o ano considerando todas as demandas existentes.
Trouxe o item do equipamento à tona, com um certo constrangimento até, pois não queria que soasse como se eu estivesse “advogando em causa própria”.
No entanto, logo percebi o interesse dos novos conselheiros e do atual síndico em tratar o assunto como uma prioridade. Verbalizaram inclusive que isso deveria indiscutivelmente ser implantado pelo condomínio, ainda que não houvesse uma lei específica que exigisse. Falaram de uma obrigação moral.
O síndico, motivado em resolver o problema, entrou em contato com algumas empresas para levantar preços e se voluntariou a visitar um fabricante no interior de São Paulo. Tudo parecia caminhar bem e o convite para a próxima assembleia, junto com a pauta, foi enviado para os moradores.
Foi então que um novo problema apareceu. O síndico foi abordado por duas pessoas com a solicitação para que o item sobre a cadeira elevatória fosse removido da pauta. “Qual alegação para remoção?”, perguntou ele. A resposta de uma delas foi: “Isso não é nossa obrigação”.
O próprio funcionário da empresa administradora recebeu uma ligação exigindo que o tópico fosse excluído, já que não havia nenhuma lei que impusesse que o acesso se estendesse ao interior da piscina.
A lei realmente é vaga e dá margem a interpretações, pois diz que todos devem ter acesso a todas as áreas comuns, sem especificar o que são estas áreas. Mas independentemente da interpretação, acessar o interior da piscina é uma questão legal, que deveria estar na lei de acessibilidade, ou uma questão moral, que poderia ser solidariamente abraçada pelos coproprietários?
Mais uma vez o síndico foi contatado dizendo que o item deveria ser removido da pauta, pois os moradores se sentiriam constrangidos em votar desfavoravelmente na minha frente.
Um dos que pediu a remoção do item da pauta ainda comentou: “Se ele quer o equipamento, ele que compre. Se eu quisesse fazer uma doação, doaria para uma instituição de caridade”
Diante de um pensamento assim uma nova reflexão pode ser feita. Fiquei cadeirante há 21 anos, quando tinha 26 e levei um tiro ao ser assaltado. Foi um infortúnio da vida, como os que aconteceram com diversos amigos com deficiência física que fiz após minha lesão. Amigos que vieram a precisar de uma cadeira de rodas por conta de acidentes de carro e moto, mergulho, queda, AVC e por outros motivos que qualquer um está suscetível.
Será que estes contrários à colocação do equipamento, assim como seus familiares, são seres superiores que estão acima das imprevisíveis eventualidades que nós, demais mortais, estamos sujeitos?
Ciente destas solicitações, fui eu que me senti constrangido e solicitei que o síndico retirasse o item da pauta. Eu não queria que nenhum vizinho me olhasse como se eu tivesse sido exclusiva e caridosamente beneficiado por algo pago por ele, à sua revelia.
Neste contexto, diga-se de passagem, eu já pagava por coisas que eu mesmo não poderia usar, como muitos equipamentos não-acessíveis da academia do prédio
E para mim tudo bem, não há problema nenhum nisso, pois vivemos em sociedade. Mas o lema medieval dos mosqueteiros não mais se aplica, agora é “um por todos e nem todos por um”.
Exposta minha preocupação, o síndico falou que não poderia mais fazer a remoção, uma vez que a pauta já tinha sido oficializada.
Insisti e ele disse que seria possível, no início da assembleia, pedir que votassem para que o tópico fosse removido das deliberações do dia. No entanto, ele sugeriu que isso não fosse feito, pois era um direito meu e o julgamento de alguns poucos não deveria impedir que tantos outros opinassem.
Concordei, mas falamos em deixar essa votação para o final para que eu pudesse me ausentar, evitando qualquer tipo de constrangimento, conforme cogitado.
Na votação, o funcionário da administração começou dizendo que havia consultado a prefeitura e de fato não existia nenhuma obrigatoriedade para a instalação.
Disse também que para as novas edificações já havia o requisito, mas para aquelas construídas antes das novas normas, não havia a determinação legal para adaptações que possibilitassem o acesso ao interior da piscina.
Tomei a palavra e disse que não queria que ninguém entendesse aquilo como uma caridade e antes mesmo que pudesse continuar e falar que sairia da sala, alguns moradores já se manifestaram dizendo que este assunto nem deveria estar sendo discutido e que deveria ser aprovado logo.
Com burburinhos aprobatórios a votação se iniciou rapidamente. Havia poucos participantes na assembleia, como sempre, mas foram cinco votos favoráveis e três contrários, incluindo o da própria pessoa que conversei antes mesmo de ter comprado o apartamento, que teve naquele momento um ávido discurso favorável à acessibilidade
Hipocrisia? Falsa demagogia? Hiato entre discurso e moral prática.
Mais uma surpresa foi ver que o outro voto contra veio da mesma que disse que me colocaria na piscina com seus próprios braços.
Enfim, na ata ficou a aprovação da compra, considerando o financiamento da aquisição pelo BNDES, o que havia aparecido como uma possibilidade colocada pelo próprio fabricante do equipamento.
Mais uma surpresa aconteceu alguns dias depois. A primeira moradora contatou o síndico para dizer que impugnaria a assembleia, pois tal aprovação não poderia ter acontecido.
O síndico disse que a assembleia é soberana e perguntou com qual argumento poderia haver uma impugnação. “Com base em constrangimento”, respondeu ela, sugerindo novamente a incapacidade das pessoas de expressarem livremente suas opiniões.
Para ela, os cinco que votaram a favor se sentiram constrangidos em votar contra. Isso considerando que dois moradores de mais idade que estavam presentes disseram que o aparelho também seria útil para eles.
Eu não seria o único a usar o equipamento, mas ainda assim, havia a fúria de alguns contra algo que viabilizaria condições iguais de lazer a todos.
Como desfecho, o equipamento ainda não foi comprado. O síndico não conseguiu efetivar o financiamento junto ao BNDES (que parece não financiar equipamentos de qualquer tipo para condomínios).
E as taxas apresentadas por instituições financeiras privadas levaram o valor de aproximadamente R$ 7,50 por mês por apartamento (como erroneamente calculado, apresentado e formalizado em ata) para aproximadamente R$13,00, o que faz com que haja a necessidade de nova aprovação.
Em termos comparativos, o equivalente a aproximadamente um café vai para dois cafés mensais por apartamento, mas o valor foi o suficiente para levantar tantos desgastes. E o risco de não ser aprovado ainda existe.
Em suma, não pude brincar com meu filho na piscina durante sua infância, pois agora ele já é um adolescente de 13 anos. Quem sabe eu ainda consiga realizar este sonho antes dele entrar na fase adulta? Talvez, quem dirá, quando eu renunciar ao meu sonho de moradia e mudar para outro local
Apesar dos avanços sociais e da necessidade de novos modelos comportamentais, a moral nem sempre acompanha o ritmo das mudanças e muitas vezes até retrocede. Por isso, enfatizo a importância da legislação. E para as situações em que a lei não se aplica, nós, as minorias, continuaremos vulneráveis à moral de uma sociedade demagoga e segregadora.
É importante lembrar que a acessibilidade não é um favor, mas sim um direito, e cabe a todos nós trabalharmos para garantir que ele seja respeitado. Será que um dia poderemos viver num ambiente verdadeiramente inclusivo?
Fabiano D’Agostinho é formado em Tecnologia Elétrica pela Mackenzie, pós-graduado em Administração de Marketing pela FAAP, com extensão em Administração de Negócios e Gerenciamento de Projetos na UC Berkeley (USA). Tem passagem por empresas como Questus, AngênciaClick Isobar e Dentsu Aegis. Atualmente, é consultor de startups. Leia aqui seu outro relato para o Draft sobre como percorreu o Caminho de Santiago de cadeira de rodas.
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