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“Minha vida sofreu uma reviravolta quando decidi parar de tomar a pílula e comecei a entender meu ciclo menstrual”

Silvana Guerreiro - 17 maio 2024
Silvana Guerreiro, idealizadora da Educadora Menstrual.
Silvana Guerreiro - 17 maio 2024
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Até início de 2017, minha vida se resumia em questionar muito, me comparar, trabalhar sem um objetivo definido (a não ser o de fazer dinheiro), vivenciar crises de baixa autoestima e correr.

Esta última atividade era o que me fazia respirar e esquecer um pouco das minhas aflições emocionais. Já questionar sempre serviu de combustível para nunca desistir e confiar no que sinto.

E diante disso, em março daquele ano, resolvi valorizar o meu “sentir” e decidi que era hora de parar de tomar o contraceptivo hormonal, depois de 11 anos de uso ininterrupto

“Apenas” quis deixar de tomar. Eu não tinha consciência nenhuma sobre a influência do ciclo menstrual na vida das pessoas que menstruam, a não ser aquelas negativas, construídas a partir dos estigmas e que ouvimos desde muito cedo. (O apenas, entre aspas, é justamente porque minha vida sofreu uma reviravolta a partir do momento que tomei essa decisão.)

CRESCI NUMA FAMÍLIA DISFUNCIONAL E MESMO ASSIM APRENDI A DEFENDER OS DIREITOS DAS MULHERES

Mãe do Francisco, filha de Nanã, virginiana inquieta e irmã mais nova de sete (sendo cinco mulheres vivas, um irmão que já fez a passagem e um embrião que não chegou nascer), quando tinha 4 ou 5 anos, minha irmã conta que intervi numa discussão entre meu pai e minha mãe, pois minha irmã estava chorando no quarto, com medo, e senti que era importante defendê-la.

Pelo menos, acho que foi isso que me motivou, porque eu não lembro direito desse dia, mas minha irmã fala sobre esse episódio com muito amor e admiração.

Compartilho isso para explicar que, desde cedo, vivenciei experiências traumáticas com violência doméstica e cresci com um senso de justiça muito forte, principalmente no que diz respeito aos direitos das mulheres.

De uma família disfuncional, não recebi orientações que me dessem base para desenvolver autonomia e poder de escolha. Mesmo assim, fui desenvolvendo esse senso de justiça, por conta própria, olhando para diversas questões  com as quais eu não concordava 

Fui reprimida, castigada, chamada de “criança que dá muito trabalho” e isso só me fortaleceu. O que não me privou de uma relação abusiva dos 14 anos aos 25, somadas à gestão e ao parto de um filho que fez a passagem aos três dias de vida, o Francisco.

Um portal entre a Silvana de antes e a Silvana que estava por vir. Só um parênteses aqui: sou tão grata a estas Silvanas.

AO CONTRÁRIO DE MUITA GENTE, NÃO TIVE UMA EXPERIÊNCIA RUIM COM A MENSTRUAÇÃO

Menstruei aos 11 anos e não tive dificuldade com essa questão. Também não recebi orientações e informações de qualidade das pessoas que cuidaram de mim.

Fui injusta agora. Recebi, sim, orientações positivas — e foi de um homem, pasmem. Quando menstruei pela primeira vez, estava na casa da minha irmã, com o meu cunhado

Ela não estava. Então, contei para ele, que imediatamente parou o que estava fazendo para sentar e conversar comigo (um fofo!).

Pegou um absorvente e uma calcinha da minha irmã, sem tabu nenhum, me orientou como colar aquilo na calcinha e me perguntou como eu estava me sentindo, se havia dor.

Respondi que tudo bem e sem dor. E ele disse: “Então, volte a brincar se tiver vontade”.

Faço parte de um percentual extremamente pequeno de pessoas que tiveram uma experiência positiva com a menarca e acredito profundamente que isso influenciou e muito a minha relação com a menstruação no decorrer da vida.

PASSEI A ESTUDAR O CICLO MENSTRUAL E QUERER ENTENDER MEU CORPO SEM OS EFEITOS DOS HORMÔNIOS DA PÍLULA

Já a Silvana adulta teve que lidar com as dores que os traumas vivenciados na infância desenvolveram. A baixa autoestima foi a pior dessas consequências.

Mas quando deixei de utilizar o contraceptivo hormonal, em 2017, comecei perceber a potência que existia em mim e isso foi muito significativo.

Passei a estudar o ciclo menstrual, entender a influência que a oscilação hormonal tem sobre o comportamento das mulheres, comecei a me questionar sobre diversos desses impactos e a dar mais voz para as coisas que eu sentia, como por exemplo, a sensação de não caber no universo corporativo da forma  como estava

Formada em educação física, eu atuava em uma associação do terceiro setor, vinculada à uma empresa, coordenando a área de atividades recreativas e esportivas dos funcionários.

Sentia, no entanto, que tinha muito mais a oferecer do que ficar replicando o que há décadas as mulheres vêm fazendo: se moldando para caber, se submetendo a questões abusivas no ambiente de trabalho, romantizando excessos, se linearizando e se distanciando da sua natureza cíclica para atender uma demanda social que as adoece.

Eu precisava deixar vir algo que estava vibrando dentro de mim para cuidar dessas mulheres e plantar uma semente de mudança na cultura organizacional.

DECIDI PEDIR DEMISSÃO E PASSEI POR UM MOMENTO DE AUTODESCOBERTA ATÉ COMEÇAR UM CURSO DE TERAPIA MENSTRUAL

Em 2018, tive uma intuição, um sentir, muito forte sobre qual caminho seguir. Era um dia tranquilo, típico dia de outono, segundo da minha menstruação e poder ficar em casa foi tudo de bom.

Netflix, cobertinha, uma beliscada em algo para comer e, em um desses momentos, me veio um choro forte, profundo. Eu me sentia bem, não havia angústia me incomodando.

Passado choro, fiquei meio confusa, estática. Coloquei as mãos no meu ventre e me perguntei o que aquele choro queria me dizer. E assim me veio a frase: “Deixa ir, não te pertence mais, deixa fluir”.

Na hora, entendi que era a vida que eu estava levando que precisava ser deixada para trás e, imediatamente, tomei a decisão de pedir as contas do meu trabalho para iniciar uma nova caminhada.

E assim eu fiz, sem saber para onde ir e o que fazer. Sabia apenas que ia descobrir ao longo do processo. Pedi as contas, aluguei meu apartamento para um casal amigo, me mudei de São Paulo para uma cidade mais próxima da natureza em busca de encontrar o que aquele sentir me sinalizou

Confesso que a caminhada foi árdua. Foram praticamente dois anos de um olhar exclusivamente para dentro antes de começar a idealizar a Educadora Menstrual.

Choros, terapias, trabalho espiritual, algumas pessoas importantes ajudando e muita coragem fizeram (e fazem) parte desta jornada.

Comecei, então, uma capacitação em Terapia Menstrual, processo que estuda as particularidades de cada fase desse ciclo, os padrões que elas apresentam, seus arquétipos e como usá-los de forma integrativa no processo de cura de uma mulher (ou de uma pessoa que menstrua). 

É uma formação diferenciada, quase mística, mas de um lindo entendimento sobre o corpo, sobre a história da mulher (inclusive sobre a apropriação dos nossos corpos pelo patriarcado) e sobre a potência que carregamos.

Essa experiência mudou minha vida, mas ainda tinha algo forte que me incomodava e que não permitia que eu me desenvolvesse como terapeuta.

ENTENDI QUE ERA UMA EDUCADORA MENSTRUAL E FUI PESQUISAR MAIS A FUNDO ESTE TEMA, ATÉ ENTÃO COM POUCOS REFERÊNCIAS DISPONÍVEIS

Em março de 2020, tive outro sentir e a ficha caiu: entendi que eu era uma educadora, não uma terapeuta.

E assim nasceu, enfim, a Educadora Menstrual. Nasceu, literalmente, porque quando me reconheci como “educadora menstrual”, joguei este termo  no Google e não apareceu nada…

Entendi que estava no caminho certo. Daí em diante, tudo ficou mais claro, mas não menos desafiador. Primeiro, uma pandemia estava começando. E depois, não havia material de fácil acesso como há hoje para pesquisar sobre o tema, criar ações, entender quais seriam meus potenciais clientes e o impacto que poderia gerar para eles.

Ainda hoje é desafiador. Mas atualmente a pauta está nas mídias, nas políticas públicas, nas pesquisas, em relatórios, em recomendações de órgãos que desenvolvem trabalhos de combate à desigualdade de gênero e social.

Naquele momento, era quase nada de informação. Tive que me debruçar sobre o tema e começar a levantar minha própria base de dados.

Aos poucos, fui conhecendo mulheres e pequenas ações acontecendo em outros cantos do país, cada uma desenvolvendo seu próprio conhecimento, traçando seu próprio caminho

Fomos corajosas de olhar para este tema e trabalhar de forma disruptiva, abrindo caminhos para as que foram chegando e para as que chegarão.

De certa forma, nos unimos — mesmo distantes fisicamente — e apoiamos umas às outras. Hoje, todas desenvolvem trabalhos importantíssimos.

QUANDO ME DESCOBRI EMPREENDEDORA SOCIAL

Pandemia, o mundo em choque, e eu tive o privilégio de poder parar e desenvolver a Educadora Menstrual.

Para mim, não fazia sentido só desenvolver um negócio como outro qualquer e logo conheci e comecei a estudar o conceito de empreendedorismo social e me encantei. Passei a me ver como uma empreendedora social.

Aos poucos, fui ofertando oficinas sobre autoconhecimento do ciclo menstrual. Em uma delas, uma professora da rede pública de ensino que participava do evento ficou impactada com o trabalho e me convidou para levá-lo a algumas turmas da escola onde ela lecionava.

Mesmo com a pandemia, conseguimos realizar as atividades de forma remota e assim nasceu o Projeto EmanCicla, nosso trabalho social que leva gratuitamente para as adolescentes da rede pública de ensino e mulheres em vulnerabilidade social as mesmas atividades que vendemos para escolas privadas, empresas e organizações

Para todas as vendas que fazemos, direcionamos 30% do valor em favor do projeto, possibilitando desenvolver as atividades de forma gratuita para quem não tem condições de pagar.

A ACELERAÇÃO DO PROJETO LEGADO ESTÁ AJUDANDO A IMPULSIONAR NOSSO ALCANCE

Aos poucos, nosso trabalho foi ganhando credibilidade. E hoje, apesar de ainda não ter uma estrutura financeira que banque tudo o que o negócio precisa, a visão e o planejamento estão estruturados. Sei como e onde quero chegar.

Isso se fez possível depois que passei pelo Projeto Legado, do Instituto Legado de Empreendedorismo Social, um programa de aceleração de organizações e negócios sociais.

Uma das rodas de conversa realizadas pelo projeto com alunas da rede pública de ensino.

A experiência potencializou a Educadora Menstrual com novos aprendizados e, ao final dessa imersão, fomos uma das iniciativas premiadas em 2023.

O investimento financeiro da premiação possibilitará atender este ano pouco mais de 200 adolescentes da Escola Yolanda, da rede pública de ensino de Cananeia (SP), com oficinas, rodas de conversa, distribuição de cartilhas informativas e uma formação de multiplicadoras do trabalho na escola

O aporte ainda permitirá o desenvolvimento do nosso site, possibilitando a entrega de conteúdos com mais qualidade e facilidade.

Hoje prestamos serviço para a iniciativa privada, com foco em empresas que levam a atividades para suas funcionárias (como a We Payments e a Veracità Assessoria Analítica, que já foram clientes), escolas particulares que buscam atender a demanda de suas alunas e unidades do Sesc, com foco no público frequentador.

Além disso, fazemos a captação de investimento financeiro, com investidoras e investidores que acreditam e apoiam a causa do Projeto EmanCicla.

NAS EMPRESAS, NOSSA META COM A EDUCAÇÃO MENSTRUAL É CRIAR UM AMBIENTE MAIS EMPÁTICO E ACOLHEDOR

Começar abordar esse tema dentro do ambiente corporativo foi uma grande conquista.

As atividades que desenvolvo para as empresas variam de acordo com o que me pedem. Pode ser uma palestra, uma conversa em que o público pode interagir ou até mesmo uma oficina específica.

Se a empresa quiser, os homens participam também, o que é bem interessante. Afinal, este tema não diz respeito apenas a uma questão de gênero, ela é social. Pois o que há de negativo sobre o tema é justamente o que a sociedade patriarcal colocou.

Vejo que a importância deste trabalho de educação e saúde menstrual no ambiente de trabalho vai muito além de uma questão de produtividade.

É em primeiro lugar uma maneira de contribuir para saúde e bem-estar das funcionárias, levando consciência das mudanças que ocorrem ao longo do ciclo menstrual.

Em segundo lugar, é uma forma de proporcionar um ambiente inclusivo, acolhedor e uma cultura organizacional consciente e empática, dialogando com colegas e gestores para combater os estigmas e o tabu da menstruação

Por fim, estas ações tendem a gerar nas funcionárias um sentimento de apoio, de serem compreendidas, contribuindo para que lidem melhor com os desafios e aproveitem suas potencialidades para uma produtividade mais consciente e satisfatória, o que naturalmente melhora o clima organizacional. Além de, claro, ser um trabalho de base para a equidade de gênero.

PRETENDO AMPLIAR A EQUIPE PARA PODER GERAR MAIS IMPACTO POSITIVO

O maior desafio hoje, por incrível que pareça, não é o tabu. Ele é uma oportunidade.

A falta de uma equipe — mesmo que pequena — é o grande desafio. Não consigo atender mais demandas por ter que ainda fazer muita coisa sozinha.

Estou trabalhando para mudar esta realidade e, em breve, ter uma equipe com outras educadoras, o que possibilitará aumentar o nosso número de vendas e, consequentemente, o impacto social positivo que proporcionamos

Num futuro próximo, quero trazer para o mundo o Instituto Educação Menstrual. Será uma organização social que trabalhará para que todas as meninas, mulheres e pessoas que menstruam tenham acesso à informações verdadeiras sobre o corpo e o ciclo menstrual.

Silvana em evento da Educadora Menstrual no Sesc Registro (SP).

Também será nossa meta fomentar políticas públicas voltadas para a educação menstrual nas escolas e locais de acolhimento social, fazendo com que desde cedo pessoas que menstruam possam questionar suas experiências pessoais e desenvolver autonomia, impactando de forma positiva o seu desenvolvimento.

O objetivo é que elas entendam que podem fazer tudo, inclusive menstruar — e menstruadas

E que vejam a experiência do ciclo menstrual como uma oportunidade de acessar seu potencial e não, um castigo, como a sociedade patriarcal quis nos impor.

 

Silvana Guerreiro é educadora física, terapeuta menstrual, gestora de projetos e empreendedora social à frente da
Educadora Menstrual.

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