Rocio Marin e Hugo Cardeña são apaixonados por cachorros, como você pode perceber na foto acima. Prova disso é que o casal, que chegou há pouco mais de três meses a São Paulo, trouxe de Madrid duas labradoras, uma shitzu e um “mestiço” (mais conhecido como vira-lata por aqui). Todavia, mais do que ter o carinho dos amigos de estimação, os espanhóis sabem do imenso potencial que animais possuem para mudar – e melhorar muito – a qualidade de vida de pessoas com deficiências físicas e mentais. É por esta razão que eles estão abrindo no Brasil uma sede da Fundação Bocalan.
A entidade, criada na Espanha há 20 anos, é hoje uma referência mundial no treinamento e adestramento de cães de assistência e formação de instrutores para este trabalho. A Bocalan está presente em países como Argentina, Guatemala, México, Colômbia, Peru, Estados Unidos, Austrália e Japão. Agora, chega ao Brasil pelas mãos de Hugo e Rocio.
Jornalista de formação, Rocio sempre atuou na área de comunicação. Veio para São Paulo para cuidar da região latinoamericana do Spotify, empresa de streaming de música digital, onde está há quatro anos. Mas paralelamente, durante toda a sua carreira, ela dedicou muito tempo ao voluntariado. “Estive em Honduras, prestando auxílio a comunidades carentes, e me envolvi com diversas organizações não-governamentais oferecendo meu conhecimento como jornalista”, conta.
No meio da crise econômica que se abateu sobre o mundo, mas especialmente em países como a Espanha, Hugo tentava encontrar uma nova profissão. Até então tinha se virado com o que aparecia: design, serviços de encanador. “Nós dois queríamos encontrar algo novo com que pudéssemos nos envolver. Como trabalho com comunicação, desejava fazer algo totalmente diferente fora do escritório”, diz ela.
O contato do casal com a Fundação Bocalan aconteceu quando o pai de Rocio foi diagnosticado com Alzheimer. “Comecei a procurar alguma forma de ajudá-lo, algum tipo de terapia para tornar a vida dele melhor”, recorda. A ligação com a entidade foi imediata.
Diferentemente de outras instituições que adestram animais, a espanhola não treina cães guias, aqueles que os cegos usam. Já havia na Espanha outra organização bastante conhecida e eficiente neste segmento, então a Bocalan se especializou em áreas de assistência terapêutica e motivacional para melhorar a qualidade de vida de cadeirantes, crianças com autismo, surdos e pacientes com diabetes (o cão alerta quando a pessoa tem uma crise de hipoglicemia).
Labrador e golden retriever são as raças escolhidas pela Bocalan para o adestramento. São extremamente dóceis (e gulosos), o que é ótimo para o treinamento. Se o cão obedece ao comando, é premiado com uma saborosa recompensa. “Geneticamente estes animais são mais acostumados a usar a boca para levar e trazer objetos”, explica Rocio. No caso dos surdos, entretanto, os vira-latas são os mais indicados. “São mais atentos e sensíveis a ruídos comparado a outras raças”, afirma Hugo.
Na Espanha, a fundação seleciona os cachorros para treinamento quando ainda são filhotes. É necessário ser estável tanto física como mentalmente para se tornar um cão de assistência. No primeiro ano de vida, o animal vive na casa de uma família voluntária, tendo uma vida normal. No ano seguinte, é entregue a Bocalan e passa por um treinamento intenso durante oito a dez meses.
Nesses dois anos de acompanhamento, a entidade investe aproximadamente 50 mil reais em cada cachorro, um custo bastante alto. Com o treinamento finalizado, é hora de entregar o animal para seu novo dono: gratuitamente. Isso mesmo, as famílias das pessoas que recebem o cão de assistência não pagam nada por ele. Só se comprometem a ter condições de cuidar bem dele dali por diante (a Bocalan faz visitas periódicas para acompanhar cachorros e pacientes).
MUITO MAIS QUE O MELHOR AMIGO DO HOMEM
Mas na prática, no dia a dia, como esses animais ajudam as pessoas? Crianças com autismo, por exemplo, quando têm um surto, podem sair correndo pelas ruas, deixando os pais totalmente desesperados. Preso à criança através de um colete com coleira, o cão irá sentar e seu peso impedirá que o pequeno se mova. Nestes momentos, o animal também é treinado para lamber a criança e desta forma trazê-la à realidade novamente. Portadores de autismo possuem ainda sono bastante agitado. Ter um companheiro canino faz com que eles consigam dormir de maneira mais profunda e tranquila.
No caso dos surdos, os cães são ensinados a sinalizar barulhos e ruídos (toques de telefones, campainhas da porta, apito da chaleira, buzinas) e até quando o nome do dono é chamado na rua. Quando são utilizados para dar o que é chamado de “alerta médico”, os animais de assistência recebem treinamento para estar atentos a qualquer indício de um possível mal-estar. Diabéticos que apresentam nível de açúcar muito baixo no sangue, sentem-se fracos, tontos e podem desmaiar repentinamente. Rapidamente, o cão percebe o problema e busca ajuda de um adulto.
Nestes 20 anos de atuação internacional, a organização já entregou 150 cães de assistência para cadeirantes e mais de 50 para crianças autistas. Numa conta rápida, chega-se então ao valor de 10 milhões de reais gastos apenas com os treinamentos. Como a Bocalan conseguiu este dinheiro sendo uma fundação? “Patrocínios e doações”, responde o casal espanhol. Outra fonte de renda importante da instituição são as sessões de terapia assistida com cães e os cursos de formação de instrutores e treinadores.
Tanto Hugo como Rocio são adestradores caninos e técnicos para terapia, certificados pela Bocalan (ele já tinha trabalhado com cães particulares anteriormente). Com a mudança para o Brasil, que aconteceu graças à abertura de uma vaga no Spotify Brasil para Rocio, o casal vislumbrou a oportunidade de trazer ao país o treinamento com animais. Em pouco tempo nas redes sociais, já conquistaram mais apoiadores do que imaginavam. A página da Bocalan Brasil no Facebook entrou no ar há uma semana e ultrapassou os 1 000 fãs. Quem são eles? Muita gente interessada em ter um cão de assistência na família ou aqueles que simplesmente curtiram a empolgante iniciativa social que chega ao país.
A atuação em São Paulo ainda está sendo estruturada. Em breve, a página da entidade deve estar online no endereço www.bocalanbrasil.com. Daqui a dois meses, em setembro, será realizado um seminário na capital paulista com a presença do presidente internacional da fundação e de outros instrutores estrangeiros. O objetivo é mostrar como funciona a Bocalan e atrair interessados no projeto brasileiro.
Rocio e Hugo já começaram a conversar com ONG’s que doam animais abandonados e logo pretendem entrar em contato com possíveis patrocinadores e apoiadores. “Precisamos de ajuda em todas as áreas. Desde pessoas que queiram levar os animais para suas casas para socializá-los, como veterinários, psicólogos e educadores que participem em programas de terapia. Todo mundo tem seu lugar dentro de um projeto deste tipo. Queremos construir uma grande família Bocalan no Brasil”, diz Rocio.
A ideia deles é, depois de consolidar a Bocalan em São Paulo, levá-la para outros estados. “Queremos ser uma organização aqui tão grande como na Espanha ou no Chile”, planejam. Em cada país em que ingressa, a entidade se adapta à realidade local. Hugo cita, por exemplo, o trabalho que vem sendo realizado na Colômbia. Em Medellín, os cães fazem parte de um programa de terapia com crianças em risco social (que foram abusadas sexualmente ou enfrentam graves problemas familiares). Ele diz:
“Já está comprovado que a presença do cachorro junto ao menor que sofreu abuso sexual ou enfrenta graves problemas familiares torna a experiência menos traumática”
No Brasil, a intenção é atender cadeirantes, crianças autistas, surdos e jovens em desvantagem social, principalmente aqueles que moram em favelas. O casal espanhol sabe que enfrentará alguns, se não muitos, desafios. Um deles será negociar um marco legal que permita a entrada e o fácil acesso de cães de assistência em qualquer tipo de estabelecimento, seja ele público ou privado.
A presença e a ajuda de um animal adestrado na rotina diária de um pessoa com problemas pode transformar a maneira como ela encara o presente e o futuro. Rocio me mostra um vídeo de Sergio Manzanas. Quando tinha 20 anos, o jovem espanhol saltou numa piscina e bateu a cabeça. Ficou paraplégico e com limitações motoras severas nos membros superiores. A reabilitação foi difícil e longa. Deprimido, ele passava todo tempo em casa. Até que recebeu Jarta, um cão de assistência da Bocalan. Hoje, Jarta abre portas e gavetas para o dono, o ajuda a se vestir. É essencial para sua socialização. Sergio costuma brincar que depois que ganhou o amigo, até a paquera ficou mais fácil. Elas sempre chegam para bater um papo, atraídas pelo peludo que reabriu as portas da vida para ele.
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