A infância e a adolescência de Raquell Guimarães em Juiz de Fora (MG) remetem a uma época distante. Entre as imagens que ela guarda com carinho está a do avarandado da casa da avó materna, onde tias e primas se reuniam para tricotar entre novelos de lã e conversas ao sol da tarde.
Com apenas 5 anos, ela aprendeu as primeiras lições de crochê, com a avó paterna. Os homens da família, ligados à indústria têxtil, também a ajudaram a estreitar laços com o universo dos tecidos, moldes e teares.
Ao escolher a profissão, Raquell teve poucas dúvidas: moda, curso que frequentou em São Paulo e no Rio de Janeiro. Nos trabalhos da faculdade, sempre que possível, adaptava tarefas ao tricô e ao crochê. “No Brasil, esse tipo de artesanato é considerado um passatempo ou uma renda extra”, diz.
A dificuldade em conseguir mão de obra comprometida e especializada, somada a um episódio marcante na chegada a São Paulo, deram origem a uma pequena revolução no pavilhão 1 da Penitenciária Professor Ariosvaldo de Campos Pires, em Linhares (MG).
Quando chegou à capital paulista, em 2000, uma confusão no metrô levou Raquell a se deparar com o já desativado Complexo Penitenciário do Carandiru, pertinho de uma das estações. Quem conversou com ela e a ajudou a tomar o sentido certo do trem foi a mãe de um detento, que levava uma televisão para ele. “Essa história me marcou para sempre e me ajudou a enxergar pessoas encarceradas com mais naturalidade”, afirma.
A primeira coleção da grife Doisélles, lançada oito anos depois, foi confeccionada por amigas e familiares da estilista. “Tentei montar uma cooperativa e fazer parcerias, mas como a forma que cada senhora tricota é diferente, não conseguiria manter o padrão. Sem contar que a maioria não quer fazer do artesanato seu único ganha-pão”, lembra Raquell.
O COMEÇO DE UM TRABALHO
A estilista então procurou a Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal de Juiz de Fora, que sugeriu que ela começasse um trabalho com vinte detentos. Era o início do projeto Flor de Lótus. Raquell ensinou os presos a tricotar segundo o padrão que precisava e, em troca, eles descontavam o trabalho da pena (um dia de liberdade para cada três trabalhados) e ganhavam um salário, metade depositada em uma poupança e a outra encaminhada à família.
Atualmente, o trabalho é realizado por 40 internos do Complexo Penitenciário Público-Privado de Ribeirão das Neves, a 30 quilômetros de Belo Horizonte, onde Raquell, 35 anos, vive com a família (ela tem um filho de 1 ano, José, e está grávida do segundo menino).
Para ela, o mais importante é o trabalho realizado do lado de fora da penitenciária. “Entre aqueles muros, praticamente todos querem se recuperar. O problema é o que os espera do lado de fora, como a discriminação da sociedade e o reencontro com o crime”, diz.
Raquell conta ainda que o índice de reincidência de quem já passou pelo projeto é zero. “Tenho os contatos da maioria e um dos participantes é meu braço direito na Doisélles hoje”. Ela também busca inserir ex-internos no mercado de trabalho por meio dos contatos que mantém com empresários.
O Flor de Lótus já atendeu 500 pessoas – Raquell também presta consultoria para iniciativas semelhantes em outros Estados, como o Pará – e foi destaque em jornais internacionais, como o francês Le Monde e o inglês The Guardian.
Ano passado, algumas peças compuseram o desfile da Iódice na São Paulo Fashion Week. O trabalho dela (e o dos detentos) pode ser conferido nas lojas das Doisélles em São Paulo, Nova York, São Francisco e Tóquio.
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