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A finitude é o ponto de partida do festival inFINITO, que vê a morte como oportunidade (de negócio, inclusive)

Verônica Fraidenraich - 3 set 2019
Tom Almeida, ativista do bem-morrer e idealizador do CineClube da Morte e do Festival inFINITO.
Verônica Fraidenraich - 3 set 2019
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Enquanto o Vale do Silício gasta fortunas tentando encontrar uma solução científica para o desejo ancestral de driblar a morte (a Calico, companhia de biotecnologia criada pelo Google em 2013, “já recebeu aportes de quase US$ 2 bilhões” segundo a Folha de S.Paulo), existe vida na direção contrária. Um evento-chave da onda que discute a finitude a partir de uma perspectiva mais suave, humanizada, é o End Well — a próxima edição da conferência será em dezembro, em San Francisco, na Califórnia.

Em 2017, Tom Almeida estava lá. Publicitário de formação, ele começou a se sentir atraído pelo tema após vivenciar três mortes próximas em pouco tempo. No End Well, assistiu in loco à palestra de BJ Miller. Exemplo de sobrevivência (perdeu um braço e as duas pernas em um acidente aos 19), Miller é médico especialista em cuidados paliativos — a prática que propõe, por exemplo, suspender um tratamento invasivo para reduzir o sofrimento e proporcionar um fim digno quando não há chance de cura.

“Como diz BJ Miller, morrer não é uma questão médica, é uma questão humana. Podemos ter protagonismo e voz ativa no final de vida, nosso ou de algum familiar”

Tom, por sua vez, é consultor de desenvolvimento pessoal e ativista do bem-morrer. Junto com Ana Cláudia Quintana Arantes, médica em cuidados paliativos (e autora de A morte é um dia que vale a pena viver), ele idealizou em 2017 o CineClube da Morte, projeto mensal no Cine Belas Artes. Sua iniciativa mais recente é o Festival inFINITO. De hoje a domingo, 8 de setembro, a segunda edição do evento ocupará a Unibes Cultural abordando o “mercado da morte” pelo viés da qualidade de vida.

No Brasil, esse mercado ainda é pequeno, mas, além dos profissionais de cuidados paliativos, surgem funções como a de cuidadores, advogados de testamentos vitais e doulas da morte, que dão apoio ao doente nos últimos momentos. O tema floresce aqui e ali: do podcast Finitude ao blog Morte Sem Tabu, passando por Bom Sucesso, novela das 7 da Globo, em que a personagem de Grazi Massafera decide viver intensamente após um diagnóstico errado.

Veja também: “Bem-estar não é só viver com saúde, é ter uma morte tranquila”

Hoje, dia 3, o CineClube da Morte abre o festival com o documentário A Partida Final, candidato ao Oscar 2019. O evento é dividido em ciclos (amadurecimento, adoecimento, terminalidade, morte e luto) e traz mais de 40 atividades, entre palestras, workshops, painéis, música, teatro e cinema — e até um jantar no Otel, em companhia de Tom, para falar da finitude “de forma leve e descontraída”.

As atividades culturais têm entrada gratuita (confira a programação); as demais custam de R$ 130 a R$ 420, valor do workshop “Contemplação do Fim da Vida”, com Roy Remer, diretor do Zen Hospice Center, em San Francisco, que abordará desde reações emocionais até considerações práticas no processo de morrer. Roy também dará palestras sobre voluntariado e os hospices, espécie de hospedaria que acolhe pacientes no fim da vida.

Em 2015, o Quality of Death Index, ranking da revista The Economist, avaliou a qualidade de vida de pacientes terminais em 80 países, segundo 20 indicadores divididos em cinco categorias. O Brasil ficou em 42º lugar. Não é exatamente um bom país para se morrer. Parece sensato, portanto, promover um encontro sobre como fazer uma “passagem” mais tranquila.

“É até contraditório, porque é uma coisa tão natural”, diz Tom, 49 anos, “mas ter coragem de falar e propor projetos [sobre a morte] é uma baita inovação”. Leia a seguir a entrevista com o idealizador do festival inFINITO:

 

Como surgiu a ideia de realizar um evento para falar sobre a morte?
Perdi minha mãe em 2016. Depois de um ano, perdi meu primo, com 41. E, em 2018, faleceu o meu pai. Em cada uma dessas experiências, me relacionei de forma diferente com a morte. Minha mãe foi entubada e sedada e eu não participei das tomadas de decisão. Já com meu primo e meu pai, sim. Não deixei, por exemplo, que levassem meu pai à UTI e pedi mais morfina para aliviar a dor.

Como essa temática já estava me chamando, em 2017 fui para um evento nos Estados Unidos, o End Well, e assisti à palestra do BJ Miller, já tinha assistido ao seu TED Talk.

Vi esse movimento acontecendo — de refletir sobre a morte por diferentes perspectivas. E pensei: ‘Preciso fazer parte disso, porque se não acontecer agora, o Brasil vai continuar 30 anos atrasado’

Falar da morte é algo novo no mundo, mas o movimento de cuidados paliativos já existe há 30 anos nos EUA. No fim do evento, saí me apresentando para os palestrantes, a organizadora, contando sobre o Brasil… Convidei pessoas sem saber o que eu iria fazer, como iria acomodá-los. Mas já no ano seguinte trouxe alguns para a primeira edição do festival.

Em que você trabalhava antes de se envolver com essa temática? E é possível viver disso — “viver da morte”?
Trabalhei em marketing por quase 12 anos, na Unilever. Depois, durante sete anos, tive uma agência de comunicação, ainda dentro desse universo de marcas, multinacionais. Até que veio a crise dos 40. Eu comecei a questionar que impacto eu estava criando no mundo e como estava usando meus talentos.

Fiz um sabático, fui estudar desenvolvimento humano, ainda achando que seguiria no universo de multinacionais. Estudei nos Estados Unidos sobre liderança, escuta, como trabalhar com grupos. No meio dessa transição, chegou a morte. Hoje, uso minha história profissional e pessoal nessa temática. Estou criando um festival e uma marca, [enquanto] uso minha expertise de desenvolvimento humano para me relacionar com grupos, faço palestras, conversas e workshops.

E sim, vivo disso. Mas ainda tenho pouco apoio, é algo que me move muito mais pelo propósito do que pela questão financeira. Tudo é muito recente, mas tenho uma perspectiva grande, e conto com o apoio do Instituto Olga Rabinovich para que as coisas aconteçam.

Você diz que repensar a morte pode trazer oportunidades de negócios. De que tipo?
Pode trazer oportunidades tanto de desenvolvimento pessoal quanto de negócios. Há aplicativos que conectam pessoas terminais a pessoas saudáveis, para que estas vivam um sonho daquelas. Há podcasts, documentários, cuidadores, doulas da morte, profissionais de cuidados paliativos, tem uma grande oportunidade aí.

E como está esse mercado no Brasil?
Ainda é pequeno, para os corajosos. Mas tem bastante oportunidade de empregos. Quando dou palestras para alunos de medicina, falo sobre isso. No Brasil, são pouquíssimos profissionais. Por exemplo, médicos de cuidados paliativos, [são] em torno de 3 mil a 3 500 pessoas para uma população de mais de 200 milhões.

Qual o perfil do público que participa do evento?
É um público em formação, inclui médicos, enfermeiros, psicólogos, fisioterapeutas… Pessoas vivendo o processo de morte de alguém ou o seu próprio, e outras que tiveram uma perda e estão de luto. É um público que “tem a morte por perto”, seja porque trabalha com isso, seja porque está vivendo isso, como paciente ou familiar. É um grupo diverso de idades, objetivos e aspirações, o que enriquece as conversas.

E qual é o clima nas palestras? As pessoas choram, dão risadas…?
É instigante, a gente provoca as pessoas, então tem emoção, lágrimas, mas elas também celebram a vida.

A foto que fazemos no encerramento do evento é sempre das pessoas com um baita sorriso no rosto. O festival é o espaço onde a gente pode se emocionar, praticar nossa vulnerabilidade, falando de coisas importantes

A gente acessa a emoção — não a tristeza, necessariamente.

As pessoas ainda resistem ao tema? E as empresas? Têm receio de associar sua marca?
Sim, muito. Poucas marcas querem se associar. Acho que é um processo. Se não fosse um tabu, eu não estava criando este projeto, não haveria necessidade. Espero que uma hora o movimento inFINITO não exista mais. Ele existe só pela necessidade de tornar essa questão mais acessível.

Por isso que o festival tem tantas ofertas e convites diferentes: cinema, jantar, café, palestras, conversa online. Porque cada pessoa se identifica com a experiência que quer viver. Pode ter medo do assunto, mas gosta de cinema, então resolve ir ao cineclube. Se o tema é indigesto, preparo diferentes “receitas”. Costumo dizer que se alguém não quer a morte de uma forma, tem daquela outra.

Como mudar de comportamento diante da morte?
A essência das reuniões e encontros que a gente promove é falar sobre a vida – a partir da perspectiva da finitude é que temos consciência da vida. Muitas vezes, a dor da perda de alguém é muito grande, mas fica ainda maior por pendências, coisas não ditas, arrependimentos, dúvidas.

O meu convite é que as pessoas se perguntem o que podem antecipar: em relação às conversas, a coisas que querem fazer na vida, para que vivam a morte do tamanho que ela é – porque ela já é grande o suficiente –, e não de uma forma ainda maior.

Criar consciência é um processo, venho trabalhando isso em mim, que exige uma prática contínua de meditação, reflexão e conversas.

Por mais que as pessoas possam achar, incluir esse assunto no cotidiano não é mórbido, porque coloca luz na vida e nos faz refletir sobre como honrar esse tempo que temos, já que não há garantia de que viveremos até os 95 anos

Se eu tiver consciência de que tenho mais 30 dias de vida, o que gostaria de mudar? E se eu tivesse só 24 horas? A gente fica prolongando, achando que vai poder fazer algo depois. É uma reflexão que parece cedo até o momento em que já é tarde.

A mensagem é aproveitar o ‘hoje’ ao máximo?
Não é isso, mas sim: o que é importante? Não é um convite a viva la vida loca, mas é ter consciência das escolhas. A finitude nos traz perspectiva para a qualidade da vida que a gente tem e nos faz questionar se a vida que temos está sendo bem vivida. Costumo perguntar: “Você vai estar ‘vivo’ se morrer amanhã?” Quantas pessoas estão vivendo “adormecidos”, aguardando o fim de semana, alguma coisa acontecer, e não vivendo o hoje?

Nas palestras,  pergunto: “Como você quer ser lembrado quando morrer?” e “O que você está construindo para chegar nesse lugar?”. Se você quer ser lembrado como alguém amoroso, mas é mau humorado, briga com todo mundo e trabalha 24 horas por dia, as pessoas não vão lembrar de você dessa forma [positiva]. Então, é preciso reajustar a rota para que sua vida se reflita no seu legado.

O que você diz a alguém próximo da morte?
Não tenho uma frase. Estou mais focado no que posso oferecer de escuta, de abraço, de ver o que fazer para que aquele momento seja menos doloroso. Muitas vezes, é só estar com a pessoa, não tem que fazer ou falar nada. Ou vai lá e fala “eu te amo”, “sou seu amigo”, leva uma fruta, uma sopa. Isso é estar presente.

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