“Quem quer ser muito rico não pode se espelhar, nem se inspirar, num negócio assim”, diz Bel Coelho, 37, já no fim da nossa conversa sobre o Clandestino. Em seguida, ela pede desculpas por ser tão direta mas, sejamos todos francos, o fato é que, para Bel, números estratosféricos e metas de crescimento absurdas não são nem de longe o mais importante de seu empreendimento. Ela mesma diz, afinal, o que realmente importa ali: “Se essa pessoa quer ser feliz, se sustentar, e ter uma vida boa, razoável, de classe média, normal. Aí é possível”.
Desde 2014, quando abriu seu restaurante na Vila Madalena, bairro boêmio de São Paulo, Bel vem provando que muito mais coisas são possíveis. Por exemplo, que desconstruir quase totalmente o modelo de negócio tradicional dos restaurantes pode dar certo. É o que ela faz no Clandestino. O lugar funciona somente uma semana por mês, de segunda a sábado, e oferece um cardápio pré-montado, o menu degustação, para apenas 24 pessoas por noite. Para ser uma delas, é preciso fazer reserva, momento no qual se determinam quantos lugares haverá em cada mesa e em que se esclarecem possíveis restrições alimentares. O pagamento também é feito antecipadamente. Custa 260 por pessoa, ou 380 se o jantar for harmonizado com bebidas alcoólicas.
Para saber em que semana do mês o Clandestino vai abrir, e qual será o menu da vez, é preciso seguir Bel nas redes sociais (já que o restaurante não tem Facebook nem Instagram próprios) ou estar cadastrado no e-mail marketing e receber o aviso. Este mês, de 22 a 27 de agosto, o Clandestino irá servir o menu Orixás (um grande sucesso de Bel, no qual cada prato é inspirado em uma entidade da religião afrobrasileira). Já não há vagas.
Oferecer a experiência gastronômica apenas uma semana por mês é, antes de tudo, uma questão de eficiência — aí está a inovação de Bel. Ao subverter a lógica e criar um serviço em data móvel (a semana em que ele será aberto só é definida um mês antes), ela evita vários problemas de um restaurante comum. Um deles é o desperdício de comida, já que a quantidade de pessoas por noite é fixa. Ela já sabe quantos pratos vai servir, então compra a quantidade exata de ingredientes e se livra de uma dor de cabeça:
“Um restaurante comum, para abrir todo dia, precisa comprar e ter tudo disponível. Isso é um gasto absurdo, sem contar a questão ambiental”
Em sua experiência anterior, num restaurante convencional, a taxa de perda de matéria-prima pode ser de cerca de 35%. Ao otimizar sua oferta de produtos e de mão de obra, Bel também escapa de outro desafio de qualquer restaurante: manter uma equipe grande, motivada e atuando com excelência. No Clandestino, Bel não precisa de funcionários fixos todos os dias, e sim de freelas. Além dela, só o sous-chef Wlisses (pronuncia-se Ulisses) Reis, seu “braço direito e esquerdo”, como ela diz, é fixo.
“A grande diferença é que estou crescendo organicamente. Não é como quando você abre um restaurante para 100 pessoas e, de cara, tem que bancar os custos para receber 100 pessoas”, diz. “Eu resolvi, por aprendizado, fazer o contrário. Fiz um investimento inicial na cozinha e depois ir evoluindo e melhorando coisas no salão e na cozinha, conforme o tamanho vai aumentando.”
Num espaço de 70 metros quadrados (contando a cozinha, que é aberta), trabalham apenas seis funcionários, em média, entre garçons, uma hostess e os chefs. Estes últimos servem e explicam os pratos diretamente aos comensais. O cardápio de cada edição do Clandestino é resultado das muitas pesquisas que Bel realiza sobre a culinária brasileira.
Bel se sente cada vez mais próxima da culinária nacional, apesar de ter estudado em escolas renomadas como o americano Culinary Institute of America (CIA) e o espanhol El Celler de Can Roca. Nem o playlist fica de fora da composição da experiência: é a chef que pensa e faz a seleção das músicas-ambiente, sempre inspiradas no menu.
GANHAR MUITO OU GANHAR BEM?
De onde vem a motivação para um empreender e quebrar padrões consagrados de mercado? Em uma palavra, autonomia. Este é um valor muito caro à Bel, que também tem vários projetos paralelos: ela é a apresentadora do programa Receita de Viagem, do canal a cabo TLC, ministra palestras e realiza extensas pesquisas gastronômicas constantemente. Além disso, a cozinha do Clandestino eventualmente também faz comida para eventos corporativos e casamentos, em catering ou no local. Ela conta que queria liberdade para fazer outros eventos fora de São Paulo, do Brasil, viajar, filmar:
“Busquei autonomia antes de qualquer coisa. Dinheiro não é o mais importante. Não me arrependo de nada. Sou muito mais feliz hoje”
Ela afirma ganhar menos, provavelmente, do que poderia se estivesse num esquema tradicional. “Acho que vou ganhar mais, em algum momento. Mas quando você busca autonomia e é de fato autônomo, demora para se estabelecer como estava no mercado tradicional”, diz. Não há pressa para construir um serviço e produto únicos. Refletindo sobre o valor do que oferece, ela conta que o Clandestino é o que de mais interessante ela poderia proporcionar: “É uma experiência gastronômica brasileira inspirada no que eu tenho de mais criativo e, também, inspirado em muita pesquisa”.
Os cardápios do Clandestino são servidos por pelo menos seis meses, dependendo da extensão da pesquisa necessária para desenvolver a nova proposta e, também, da relação de Bel com eles (por exemplo, o Orixás veio de uma vontade dela de resgatar o trabalho). A chef conta que acabam ocorrendo pequenas adaptações nos pratos, de acordo com a sazonalidade dos produtos: 80% deles são orgânicos e vêm de pequenos produtores.
Depois que o Orixás sair de cena, volta o menu Biomas — que deve permanecer até março do ano que vem. Trata-se de um cardápio fixo de 12 a 15 tempos (ou pratos), baseado nos biomas brasileiros, como a caatinga, a Amazônia, a Mata Atlântica, os pampas e o pantanal. Não se assuste com a quantidade de pratos: muitos são “bocadinhos” (como os das fotos) e Bel garante que come-se bem, menos do que numa churrascaria e sem exageros.
ELA JÁ TEVE DE FECHAR AS PORTAS. MAS QUIS CONTINUAR
Bel conta que o Clandestino acabou surgindo e se formando “organicamente”, conforme suas necessidades. A semente para ele nascera quando ela ainda tinha o Dui, elogiado restaurante de cozinha contemporânea, que funcionava no formato tradicional (abrir todos os dias) num imóvel nos Jardins, bairro nobre de São Paulo. Além de Bel, o Dui tinha outros quatro sócios e acabou fechando em 2013, entre outras razões, por conta dos custos altos. Ela conta que o término foi traumático, mas que só tinha uma coisa em mente: queria continuar.
A ideia para o Clandestino veio de uns jantares que ela fazia em casa para amigos, nos quais só cobrava os custos. “Era como se fosse um restaurante clandestino, que não era aberto para a rua e era sofisticado. Levei esse conceito da ‘clandestinidade’ para uma fórmula comercial”, conta. Ela diz que o negócio atual ainda carrega bastante dessa essência, porque é só feito com reserva e não é aberto para a rua.
O que inicialmente nasceu na casa da chef acabou migrando para o andar de cima do Dui, uma vez por semana em 2011, e, depois, criou asas e raízes próprias com o Clandestino. O início do novo empreendimento foi a fase mais tensa, pois coincidiu com a licença-maternidade de Bel, por conta da chegada de seu primeiro filho, Francisco, hoje com dois anos. Ela havia investido 100 mil reais na montagem da cozinha e salão, na Vila Madalena, fruto de economias pessoais (uma reforma recente consumiria outros 60 mil). O Clandestino tem como sócios o sous-chefs Wlisses Reis e o agente de cozinheiros Fábio Moreira.
Bel conta que não chegou a questionar seu modelo de negócios, porém admite que teve medo de não conseguir se sustentar. Ela não escapou da crise, que chegou para ela no formato de menos pessoas contratando eventos, mas conta que o Clandestino parece não sofrer tanto com a fase difícil: “Ele me surpreende, sempre”. Atualmente, o faturamento mensal do Clandestino é de cerca de 65 mil reais (cerca de 150 pessoas atendidas, a um tíquete médio de 380 reais).
SÓ O CONTROLE TRAZ A LIBERDADE
Ao refletir sobre sua condição de empreendedora, Bel diz que acaba conseguindo ter, ao mesmo tempo, mais controle das atribuições diárias do negócio e mais liberdade para criar e fazer as próprias escolhas. “Sou eu que faço as compras, eu que faço o financeiro, e isso me faz ter mais controle da operação. Tenho toda a noção do negócio, enxergo muito mais o que está acontecendo, isso para mim é muito diferente e positivo, pois há coisas que te escapam num restaurante grande e aberto o tempo todo”, diz.
Para Bel, fugir da rotina maçante e chata também é um dos diferenciais que o Clandestino lhe proporciona. Ela não nega ter problemas de manutenção, como os de um restaurante comum, e ainda por cima tem que gastar do mesmo jeito (por exemplo, com aluguel), mas diz que tudo isso a afeta numa escala menor. E reflete sobre o esquema tradicional da gastronomia:
“A rotina de um restaurante não é sacal só para o dono, é para o cozinheiro também. Fazer sempre, todo dia, a mesma coisa”
O Clandestino busca evitar isso. Mas não nos iludamos: “É cansativo, claro, às vezes até mais do que num restaurante convencional, mas é muito mais estimulante porque é um dia diferente do outro, combina mais com a minha personalidade”.
Agora, quando completa três anos de vida, o negócio principal da chef já tem um desdobramento: o Canto da Bel, um evento aberto para a rua que acontece um sábado por mês no espaço do Clandestino, mas de dia, servindo uma opção única de cardápio, sempre algo refinado em versão mais simples e barata — a 25 reais o prato. Por vez, chega a servir 400 pessoas.
A área do salão é convertida em caixa, onde compra-se a ficha do prato, bebida e sobremesa, depois é preciso sair na calçada e, na porta ao lado, retirar sua refeição, servida em cumbucas plásticas com talher descartável. O programa pode envolver música ao vivo (na última edição, o prato era de inspiração peruana e um trio instrumental animava a calçada, lotada de gente). Bel conta que o Canto surgiu para atender quem não consegue bancar o preço do “irmão mais velho” e que o espírito é mesmo o de comida de rua, mas com a sua assinatura de chef.
TUDO TEM O TEMPO CERTO PARA CRESCER
Lucros exorbitantes e metas cada vez mais inalcançáveis de crescimento estão bem longe do que Bel quer para o seu negócio. As ambições maiores são conquistas pontuais, como adquirir um fogão ou um forno mais avançado, quando for necessário. “Para mim, fica cada vez mais claro que olhar números é uma bobagem”, diz. E segue:
“Obviamente, que o negócio depende do lucro… Mas também do que você quer para a sua vida. Prefiro fazer o que gosto, como gosto, do que ter algo super lucrativo, mas tenso. Sucesso, para mim, é ter a vida que tenho hoje”
O maior desafio de Bel, hoje, é manter a posição que o empreendimento ocupa hoje. “Estar sempre cheio, sempre com um menu redondo, com pesquisas relevantes”, nas palavras da chef. E aí não há acomodação. “O formato dele é desafiador, porque a cada novo menu eu tenho que de alguma maneira superar o anterior, ou pelo menos ser tão interessante e tanta qualidade quanto o último. Isso, por si só, já é um desafio”, diz. E segue, com sua felicidade nada clandestina.
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