Ricardo Sales tinha 9 anos quando começou a ser chamado de “viadinho” por amigos da escola porque não gostava de jogar futebol. Para uma criança que ainda nem sabia o que era ser gay, aquilo foi traumático e violento.
Trinta anos mais tarde, aos 39 anos de idade, aquela criança se tornou uma referência em diversidade e inclusão e comanda, ao lado do sócio João Torres, uma empresa com 40 funcionários que ajuda companhias como Itaú, Gerdau, Arcelor Mittal, SulAmérica, Raia Drogasil e Hospital Albert Einstein a desenvolver suas políticas de diversidade.
A Mais Diversidade soma a experiência de mercado ao conhecimento acadêmico para oferecer consultoria na elaboração, acompanhamento e avaliação de políticas de diversidade no ambiente de trabalho.
“Se formos esperar as mudanças acontecerem de forma natural, teremos equidade de gênero em 217 anos. Então, é preciso ser intencional. A empresa tem que ter uma estratégia de negócio que contemple a diversidade, senão isso fica como algo paralelo dentro da organização e os avanços serão muito mais lentos”, diz Ricardo.
Além da consultoria estratégica, a Mais Diversidade também trabalha educação corporativa –oferecendo treinamentos, palestras e oficinas sobre mais de 40 temas relacionados à diversidade–, pesquisa, consultoria de comunicação e curadoria de talentos.
Entre os cases que Ricardo destaca estão ajudar o banco Itaú a ter 50% de pessoas negras em seu programa de trainees e a Microsoft a selecionar pessoas negras para posições de liderança. Ele também cita a iniciativa do Hospital Albert Einstein de colocar as cores da bandeira LGBT na Estrela de Davi no dia do orgulho LGBT.
“Isso é muito simbólico das mudanças que vêm acontecendo no meio empresarial e, felizmente, estamos ocupando o papel de protagonistas.”
Referência para falar sobre como o tema diversidade e inclusão está evoluindo no país e o que precisa ser feito para que a pauta ganhe cada vez mais concretude, Ricardo conversou com NetZero dos Estados Unidos, enquanto se preparava para participar do SXSW (South by Southwest) em Austin, no Texas.
NETZERO: Quando o tema diversidade passou a fazer parte da sua vida?
RICARDO SALES: Descobri o tema em 2005, quando eu tinha 22 anos e era um jovem gay que ouvia todos me dizerem que eu deveria continuar no armário para não prejudicar a minha carreira. Mas isso nunca fez sentido pra mim, porque acho que esconder uma parte tão importante da nossa vida é muito violento. Na época eu trabalhava na Caixa Econômica Federal e o banco lançou um dos primeiros programas de diversidade do Brasil. Quando vi aquilo, fiquei encantado, dei um jeito de me envolver e comecei a minha atuação com o tema diversidade e inclusão. E segui nessa linha sempre em dois espaços: no mercado, onde eu continuo trabalhando, e também na academia. Eu estava me formando em comunicação na USP (Universidade de São Paulo) e resolvi fazer o TCC [trabalho de conclusão de curso] sobre diversidade, que acabou virando o primeiro trabalho sobre o tema no campo da comunicação no Brasil.
E como isso acabou virando um negócio?
Durante o mestrado, eu era muito ativo no Twitter. O tema diversidade estava engatinhando no Brasil e as pessoas me viam como alguém que compartilhava esse tipo de informação e dividiam comigo pesquisas, notícias, informações e entrevistas sobre o tema. Era tanta coisa que eu comecei a usar a hashtag #maisdiversidade para organizar esse conteúdo. Esse meu posicionamento na internet acabou chamando a atenção de algumas empresas e recebi um convite para me juntar à equipe que estava trabalhando no reposicionamento de Skol, que tinha um histórico de campanhas machistas, como era o mercado de cerveja de forma geral.
O trabalho que deveria ser de uma semana acabou durando 3 anos. Nesse momento, eu precisei abrir uma empresa e resolvi usar a hashtag como nome da empresa. Eu começo como um consultor atendendo a Ambev, depois passo a atender a Braskem sozinho e, então, me junto a João Torres, meu sócio, e vamos ganhando forma até chegarmos na estrutura que temos hoje.
Quais foram os desafios e o que você aprendeu neste trabalho com a Ambev?
Eu sou muito grato à Ambev, porque a empresa colocou um holofote na minha cabeça. Era um trabalho de comunicação com repercussão nacional porque aquilo que a gente discutia e desenhava aparecia na publicidade no intervalo do Jornal Nacional. Mas foi um desafio lidar com essa enormidade, havia uma desconfiança muito grande do público. Quando o primeiro filme foi ao ar, a reação das pessoas foi de resgatar o passado machista da marca. E aí resolvemos lançar um filme que reconhecia esse passado e mostrava que a marca estava assumindo o compromisso de que aquele passado havia ficado para trás. E isso muda o jogo porque, depois disso, as pessoas não tem muito mais o que criticar.
Nessa época, o tema ESG ainda não estava em alta como agora. Como a evolução dessa pauta ESG afetou o seu negócio?
“Trouxe um impacto importante em termos de aumento da demanda e de uma maior disposição das empresas para falar sobre esses assuntos. Mas ESG ainda é lido no Brasil com as lentes da Europa e dos Estados Unidos e precisamos traduzi-lo para o nosso contexto.”
Em que pese o fato que temos muitos desafios relacionados à ética e transparência e a necessidade de parar de derrubar floresta, reflorestar e diminuir a pegada de carbono, nosso principal desafio é o social. E o social, o S da sigla, é justamente o que representa diversidade e inclusão. É olhar não só para equidade de gênero, mas para desigualdade social, racismo e todos os outros temas.
O aumento de demanda e de interesse pelo tema tem feito a diversidade, de fato, acontecer?
Como um observador privilegiado da agenda, porque já são quase 18 anos trabalhando com o tema, o que eu posso dizer é que temos feito avanços importantes. Eles ainda não acontecem na velocidade que precisamos, mas é preciso reconhecer que são avanços importantes. Aquela realidade de quando eu comecei não é a realidade de um jovem que vai começar a trabalhar em uma grande empresa hoje. Alguém que está saindo da faculdade agora, com a idade que eu tinha naquela época, e que vai entrar em uma grande empresa como trainee ou estagiário, normalmente já sabe, espera ou até escolhe aquela empresa por conta de política de diversidade e inclusão.
Isso vale tanto para contratação como para a forma como essas empresas se colocam no mundo? Isso também vem evoluindo?
Sem dúvida. Em 2021, uma deputada estadual de São Paulo tentou aprovar um projeto de lei que proibia pessoas LGBT em propaganda. Achei isso um absurdo completo, liguei para alguns clientes da Mais Diversidade e pedi para que as empresas se manifestassem e fossem coerentes com a agenda ESG. Tivemos mais de 800 empresas se posicionando contra o projeto de lei, que acabou caindo. A pressão do meio empresarial foi muito grande e essa é uma expectativa do consumidor.
“As pessoas querem trabalhar em uma empresa que esteja em consonância com os seus valores, mas também priorizam, na hora de consumir, organizações que têm crenças parecidas com as delas.”
Qual o próximo passo para que a diversidade siga em ampliação?
Há alguns anos, a pergunta que mais me faziam no Brasil era: pra que mexer com isso? Quando eu ia dar palestras ou falar com executivos, precisava montar um “business case” e argumentar por que diversidade é importante. A pergunta hoje é: como fazer? Isso é um avanço muito importante. E pra avançar mais, a palavra mágica é intencionalidade. Não vamos avançar sem colocar energia intencional ali, ou seja, se uma empresa identifica que o seu gargalo está relacionado a pessoas negras na liderança, precisa buscar pessoas negras para aqueles cargos. É o que a gente chama de ação afirmativa. Isso também está relacionado a outros elementos que ajudam a empresa a avançar, como a definição de metas, o impacto dos temas ESG no bônus da liderança e vários outros aspectos que colocam essa discussão dentro da estratégia. A empresa tem que ter uma estratégia de negócio que contemple a diversidade, senão isso fica como algo paralelo dentro da organização e os avanços serão muito mais lentos.
O que querem as empresas que procuram a Mais Diversidade?
Normalmente, elas têm um ciclo que começa com uma demanda por diagnóstico, para entender o retrato da demografia da empresa. Na sequência, o desafio maior passa a ser o de sensibilização, porque são temas razoavelmente novos e não estiveram presentes na formação das pessoas. Essa sensibilização é fundamental para que possamos mostrar do que estamos falando, qual é a urgência dessa pauta e, de certa maneira, dar direcionamento sobre quais são os comportamentos que são admitidos ou não naquela empresa.
Outra demanda é voltada à estratégia, sobre qual caminho percorrer. Porque a melhor maneira de avançar com esse tema em uma empresa é tratar o assunto com o mesmo grau de profissionalismo com que se trata qualquer outro. É preciso ter indicadores para a diversidade e inclusão. É isso que traz maturidade para a pauta. Tem ainda algumas empresas que nos acionam em momentos de crise ou porque estão mais avançadas e o desafio delas passa a ser levar o tema para a cadeia de valor ou para os consumidores.
Que lições sobre diversidade você aprendeu com os clientes?
A primeira, e talvez a mais importante, é que é possível falar sobre esse tema com todo mundo desde que você tenha didática e utilize um tom adequado. Isso pra mim é um mantra. Eu converso sobre diversidade e inclusão há muito tempo, rodando o Brasil inteiro, falando com desde conselheiros e presidentes de empresas até equipes de fábrica e percebo uma disposição em todos esses espaços para o diálogo, desde que você tenha esse esforço didático de entender que as pessoas não são obrigadas a saber sobre tudo. Elas precisam apenas estar dispostas a aprender.
Um dos valores da Mais Diversidade é a leveza e eu me orgulho muito dele. O dia em que eu me irritar em alguma palestra porque alguém me perguntou se existe ou não racismo reverso, é melhor eu mudar de profissão, porque o meu trabalho é justamente entender de onde veio aquela dúvida, agradecer que ela foi exposta e poder explicar.
Outro aprendizado, que eu também considero um privilégio, é conseguir conectar algumas lideranças à realidades que elas não conhecem. A maior parte das grandes empresas do Brasil está localizada em São Paulo, uma cidade muito hábil em nos colocar em bolhas. E muitas dessas lideranças estão nesses espaços, sem um contato próximo com a realidade. E isso é algo que a gente consegue fazer na consultoria, conectando essas lideranças com pessoas que experimentam aquela dor e vão sensibilizar quem está tomando decisões a tomar decisões melhores.
Como você vê o futuro da diversidade?
Esse futuro tem que ser bom e chegar para todo mundo. Eu falo de uma forma muito apaixonada e genuína do trabalho que fazemos, mas é preciso fazer uma ressalva de que trabalhamos para grandes empresas, que fazem parte da elite empresarial brasileira. Porém, essas grandes empresas não são as maiores empregadoras do país. A maioria das pessoas trabalha em empresas pequenas, médias e familiares.
“Fizemos uma pesquisa no final do ano que mostrou que apenas 15% das pessoas LGBT se sentem à vontade para falar sobre sua orientação sexual ou identidade de gênero para sua liderança.”
É um número muito baixo, que ganha contornos mais preocupantes quando olhamos para quem atua nas empresas menores e no funcionalismo público, isso torna esses ambientes hostis, não tem aquilo que a gente chama de segurança psicológica. Então, o desafio é ampliar essa discussão para que chegue a mais pessoas.
E como a Mais Diversidade tem trabalhado para chegar nas pequenas e médias empresas?
Abrimos um serviço voltado exclusivamente para PMEs. Isso parte de uma crença de que é possível falar sobre esse tema em todos os espaços. Temos trabalhado com essas pequenas médias puxadas pelos nossos grandes clientes. Um exemplo é a Gerdau, que estabeleceu uma diretriz de que as empresas que não tiverem políticas e práticas de diversidade e inclusão não poderão continuar sendo fornecedoras da companhia. Então, estamos à frente desse projeto, capacitando, educando e ajudando toda essa cadeia de valor da Gerdau a desenvolver as suas políticas e planos de diversidade e inclusão.
Educar as pessoas, puxar para perto, explicar o que pode e não pode ser feito é algo que pode ser trabalhado por qualquer organização, entendendo que nessa agenda a palavra que realmente importa é respeito. Precisamos retomar o valor dessa palavra na nossa sociedade. Você não tem que aceitar ou entender, tem que respeitar integralmente a outra pessoa.
Em uma entrevista recente você disse encontrar força quando acha um olhar na plateia que te lembra de quem você era há 20 anos. Quem você era há 20 anos?
Há 20 anos eu estava em início de carreira, com muitos sonhos mas com pouca oportunidade. Venho de uma família muito pobre, com mãe empregada doméstica e pai operário da construção civil, os dois com baixa escolaridade. Sou o primeiro a chegar na universidade, mesmo tendo estudado em escola pública a vida inteira. Com 17 anos, consegui uma bolsa de cursinho para tentar o vestibular e meu pai sofreu um AVC. Então, minhas obrigações passaram a ser estudar e cuidar dele enquanto minha mãe e irmã trabalhavam para manter a casa. É uma história de dificuldade, mas que também tem o privilégio de ter tido uma família estruturada.
A vida estava um caos, o mundo estava desabando e a minha mãe me disse que eu não podia perder aquela chance. Foram dois anos de cursinho até entrar na USP. Quando entro na USP e passo no concurso público é uma nova chance pra minha família. Hoje, tenho uma realidade social muito diferente, conquistei prestígio e um lugar profissional muito privilegiado, mas quando estou dando uma consultoria ou em contato com os grupos de afinidade das empresas e alguém vem conversar comigo, eu me conecto com essa realidade porque sei o que é começar uma carreira sem referência. Ninguém da minha família tinha trabalhado em uma empresa grande, eu não sabia nem como eu deveria me vestir. E também não tinha nenhuma referência positiva de executivo LGBT.
“Hoje eu sei que represento essa referência como um CEO gay, no sentido de alguém que é CEO de uma empresa e é homossexual, e um gay CEO, no sentido de alguém que entende que ocupa um espaço de privilégio e está a todo momento procurando passar um recado.”
Como eu estou em contato diário com os presidentes das maiores empresas do país, não posso perder a chance de passar um recado de inclusão para que eu não seja o único.
Você sofreu muito preconceito por ser gay?
A história da minha infância e juventude é parecida com a de qualquer menino gay. São vivências de muita violência e começam na própria escola. Tive o privilégio de não sofrer essas violências na família, mas a minha vida escolar beirou o inferno em muitos momentos. Quando eu tinha 9 anos, estava na terceira série, e, do dia para noite, fui eleito o “viadinho” da turma. Minha vida virou um inferno completo e eu nem sabia o que era isso, não sabia o que era sexualidade, nem que homem ficava com homem. As pessoas me viam assim porque eu não jogava bola e isso ia pra violência física. O mais triste é que essa não é uma história de exceção porque é comum para todo mundo da minha geração.
Ainda hoje você sofre preconceito?
Hoje é diferente. O mundo passou por algumas mudanças e eu estou em outra posição. Houve alguns avanços na sociedade em relação a essa agenda, mas também tenho consciência de que sou privilegiado por algumas questões, como a minha posição social. Se eu sofro homofobia na rua ou em um restaurante, tenho uma posição social que vai me permitir ligar pra polícia e fazer com que a polícia faça o trabalho dela.
Em uma posição social diferente da minha, provavelmente o policial não apareceria ou não daria bola. Tem também a posição que ocupo como um consultor, que tem muita visibilidade. Mas isso não significa que estou blindado ao preconceito. No ano passado, fiz um post emocionado no LinkedIn por conta da morte de Paulo Gustavo (ator que morreu vítima da Covid-19) e recebi algumas mensagens de ódio muito violentas. Dei print e mandei pra diretoria de RH das empresas onde aquelas pessoas trabalhavam perguntando se aquela era uma postura esperada de um colaborador numa rede social. Não sei que desdobramento aquilo teve, mas espero que, no mínimo, tenha gerado um constrangimento. Porque não dá pra gente silenciar diante dessas situações.
O bagaço de malte e a borra do café são mais valiosos do que você imagina. A cientista de alimentos Natasha Pádua fundou com o marido a Upcycling Solutions, consultoria dedicada a descobrir como transformar resíduos em novos produtos.
O descarte incorreto de redes de pesca ameaça a vida marinha. Cofundada pela oceanógrafa Beatriz Mattiuzzo, a Marulho mobiliza redeiras e costureiras caiçaras para converter esse resíduo de nylon em sacolas, fruteiras e outros produtos.
Aos 16, Fernanda Stefani ficou impactada por uma reportagem sobre biopirataria. Hoje, ela lidera a 100% Amazonia, que transforma ativos produzidos por comunidades tradicionais em matéria-prima para as indústrias alimentícia e de cosméticos.