“Nossos talentos vão muito além do nosso ganha-pão, da formação acadêmica, do curso livre ou tecnológico”

Livia Deodato - 1 nov 2019
Com o Escambo de Talentos, Livia também descobriu uma série de outras competências, entre elas a prática do Reiki.
Livia Deodato - 1 nov 2019
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por Livia Deodato

A ideia do Escambo de Talentos veio como um passe de mágica. A escolha do nome, idem. Mas o que eu me dei conta, de modo relativamente recente, é que ele levou uma vida toda sendo gestado dentro de mim.

Sempre fui inconformista por excelência. Desde que me conheço por gente, gosto de questionar regras, leis, ordens estabelecidas, a organização do sistema, do status quo. Afinal, quem são os responsáveis por “tudo isso que está aí”?

Nunca encontrei muito espaço, tampouco reverberação em meus questionamentos. Lembro-me bem, quando adolescente, de fazer todo um discurso no meio da sala do apartamento em que vivia com meus pais e minha irmã sobre como não fazia sentido ter um único dia para provar todos os seus conhecimentos no temido vestibular.

Bradei que, num futuro não muito distante, eu iria acabar com toda essa história, e iria construir uma maneira mais justa de seleção para entrar nas universidades públicas de todo o país, que daria inclusive mais chance aos mais pobres. Por que não sermos avaliados pela média das notas tiradas ao longo do Ensino Médio, como acontece nos Estados Unidos? Minha mãe e meu pai, que me ouviam em silêncio sentados no sofá com uma certa expressão de tédio, retrucaram: “Ótimo. Faça isto. Mas agora preste vestibular, se forme e depois mude o que você quiser”. Saí ainda mais revoltada da conversa, mas prometi para mim mesma que alguma coisa eu faria para transformar o que me incomodava.

Escolhi o Jornalismo como a minha primeira ferramenta para assentar o terreno das mudanças que gostaria de ver no mundo. Trabalhei mais de dez anos em alguns dos principais veículos de comunicação do país – Estadão, Vejinha, Arte 1, Época Marie Claire.

Fiz muitas, muitas perguntas. Para as mais diversas pessoas. Famosos e anônimos, indígenas e indianos, astros do rock e estrelas da novela, políticos e policiais, executivas, donas do lar e do bar. Muita gente interessante e muita gente desinteressada. Algumas delas me entregaram peças-chave do que eu precisava ouvir e sentir – de corpo, alma e espírito. Me emocionei em muitas dessas entrevistas. Vez ou outra, é como se as vozes desses entrevistados ressoassem novamente em mim e, bum!, uma nova peça se encaixasse perfeitamente neste quebra-cabeça gigante chamado vida. Mais do que vida, missão.

Quando revisito as conversas que tive com as pessoas marcantes que cruzaram meu caminho, sinto que elas me transformaram no que sou hoje e no que fui e sou capaz de criar. Especialmente aquelas tidas como mais “difíceis”, que me ajudaram a trabalhar a paciência, a tolerância, a empatia, a inteligência emocional. Mas, veja bem, isso eu só percebo agora, quatro anos depois de ter tido um burnout no meu último emprego CLT.

Era 2015 e alguma coisa me incomodava profundamente. Eu não conseguia entender o que era, muito menos nomear. Achava que poderia ser uma tristeza ou angústia passageiras. Fui passando por cima daqueles sentimentos, afinal tinha prazos apertados, metas a serem cumpridas. Não estava atenta aos sinais que meu corpo e minha cabeça estavam dando.

Não deu outra: pedi demissão em meio a uma reunião de equipe, sem ter planejado minimamente o que faria depois de sair de lá. O alívio foi imediato. Não suportava mais ter que vender (e, vale dizer, a preço de banana) o que eu tinha de mais precioso: o meu tempo

Sentia uma urgência por mudança. Mas que mudança era essa? Nada estava claro para mim. Precisei passar um tempo comigo mesma para desopilar. Contei com a ajuda do meu marido (àquela época, meu namorado), dos meus pais, das minhas amigas mais próximas.

Voltei para a psicanalista, para o psiquiatra, para o homeopata, para as terapias complementares e holísticas, especialmente o reiki e a meditação. Escolhi um trabalho voluntário para fazer e voltar a dar algum sentido à minha vida. Eu sentia que estava no olho de um furacão, com todas as peças do meu quebra-cabeça reviradas, muitas delas perdidas. Tive crise de ansiedade e síndrome do pânico – não conseguia ir sequer até a esquina de casa.

Depois de várias noites mal dormidas e dias confusos, fui me reerguendo. Entendi que podia aproveitar algumas peças do quebra-cabeça antigo, mas a figura que apareceria ali seria diferente. Tudo bem ter perdido algumas das peças! Novas estavam para chegar.

Passei a ampliar meu olhar em todos os aspectos: descobri o quanto um remédio forte pode resolver um problema a curto prazo, mas o que me sustenta a longo prazo é a homeopatia, as terapias tradicionais e também as complementares; descobri que respirações curtas indicam ansiedade e que o melhor caminho é respirar de maneira longa, pausada e profunda; descobri que quando conseguimos sair da vibração da escassez, a vibração da abundância bate à porta e não há o que temer; descobri que o Jornalismo é apenas uma parte do imenso universo da Comunicação e que eu tinha muito mais espaço para trabalhar do que eu imaginava; e finalmente, em meio a todo esse processo, descobri que eu tenho muito mais talentos do que eu imaginava.

Em janeiro de 2017, numa manhã quente de verão, um ano e meio depois do meu burnout, o Escambo de Talentos nasceu. Assim, meio que do nada. O nada que ao mesmo tempo é tudo. E que acabou se transformando em um espaço onde trocas de confiança, altruísmo, solidariedade, união e ajuda sincera acontecem diariamente.

A ideia veio “pronta”: trocar talentos, sem envolver dinheiro. Eu ofereço o que sei fazer e, em troca, anuncio o que estou precisando e não sei fazer (e eventualmente, quero aprender). Os interessados comentam no post e pronto! O escambo tem início

Convidei os amigos mais chegados, que eu sabia que iriam curtir a ideia. Por sua vez, eles convidaram outros amigos próximos, que também curtiram. E assim a rede foi crescendo de modo exponencial. Em pouco menos de três meses, já tínhamos 6 mil pessoas de todo o país e eu fui convidada para falar sobre o grupo no programa da Fátima Bernardes. Os meus cinco minutos de fama levaram quase 3 mil pessoas a solicitarem entrada no grupo ao mesmo tempo. Hoje, somos quase 20 mil.

As trocas que têm acontecido por lá enchem o coração de esperança e os olhos de lágrimas

Já teve gente dizendo que sabe jogar vôlei e diversas outras pessoas identificarem que isso também é um talento seu – a partir daí, um time foi formado e elas passaram a se encontrar semanalmente. Também teve gente oferecendo aulas de violão em troca de manicure, de percussão em troca de fabricação artesanal de cerveja, de piano em troca de aulas de inglês. Já teve até escambo internacional de talentos, em que pessoas com interesses afins se encontraram em Paris para uma imersão cultural e, claro, também social.

Teve também gente que ofereceu muito – e não pediu nada em troca. Como uma escambista (substantivo criado por lá) que disse estar aberta para compartilhar sobre os desafios de cuidar do pai com Alzheimer ou uma outra que deu o número de seu celular para caso alguém estivesse se sentindo desesperançoso e passando por dificuldades, com pensamentos suicidas.

A potência do Escambo de Talentos está no contato com o outro. Contato que começa online e, na maioria dos casos, segue offline – longe das telas e perto dos olhos, dos apertos de mão, dos abraços e da partilha no ouvir e no falar sobre o que de mais genuíno e essencial carregamos dentro de nós

É um jogo de ganha-ganha, em que fazemos escolhas conscientes de acordo com nossos interesses e entramos em contato com tudo aquilo que eventualmente deixamos para trás por causa do dinheiro ou da falta de tempo. Abrimos espaço para que nossos talentos aflorem e, quanto mais fazemos esse movimento, mais talentos vêm à tona.

Lembro bem quando, no comecinho do grupo, vários amigos se sentiram intimidados por gente desabrochada que exibia uma série de dotes. Diziam “gente, descobri que não tenho talento algum!”. E logo aparecia uma onda instigante de escambistas: “Mas você não sabe andar de bicicleta? Fazer um bolo? Dirigir? Cuidar de planilha com gastos domésticos? Não poderia ensinar isso a alguém que não saiba?” Bingo! Estava aprendida a lição de que nossos talentos vão muito além do nosso ganha-pão, da formação técnica ou acadêmica, do curso livre ou tecnológico.

As trocas envolvem valores imensuráveis. Houve uma série de parcerias que nasceram no Escambo de Talentos e acabaram se transformando em negócio. Outras, que viraram uma grande amizade, como se tivessem acabado de reencontrar amigos de infância

Sinto que nem com o melhor algoritmo do Facebook vamos conseguir alcançar todos os efeitos dessa rede formada por pessoas que estão dispostas a pensar o mundo a partir de uma nova perspectiva, feita de confiança, de escuta ativa, de fazer o bem ao outro e a si mesmo. Quando a ação é coletiva, o resultado é inesperadamente cheio de surpresas. Quando todos estão na mesma sintonia, a criação de uma nova realidade é mais do que possível: torna-se real. Se você já faz parte, sabe bem do que estou falando. Se ainda não, você é mais do que bem-vinda(o).

 

Livia Deodato, 36 anos, é mãe do Benicio, de 1. Depois que criou o Escambo de Talentos, descobriu que, além de jornalista e produtora de conteúdo, possui diversos outros dotes e atua hoje em dia também como reikiana, praticante de meditação e Barras de Access. 

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