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Nostalgia é amor. E doença. (E dói.) Será possível sentir saudade sem sofrer melancolia?

Adriano Silva - 29 maio 2020
(foto: congerdesign/Pixabay).
Adriano Silva - 29 maio 2020
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Eu vivo para frente. Nunca hesitei em trocar raízes por asas.

No entanto, guardo muito amor pelo que vivi. Por pessoas e momentos. Eu me apaixono por eles. Eu os embalo dentro de mim. Eu os acumulo em minhas prateleiras íntimas.

São fotografias que vou tirando e polindo ao longo da vida.

Transformo os afetos em narrativas, e os guardo na forma de livros prediletos em minha estante interior. Capturo as passagens em películas, eternizo as pessoas em personagens, e os carrego vida afora em filmes que adoro rever

Aqueles momentos e aquelas pessoas não existem mais. Os momentos passaram. As pessoas mudaram. E talvez nem lá atrás uns e outros tenham sido como lembro deles hoje.

No entanto, aqueles personagens estão imortalizados. Continuam vivos nas histórias que revisito. Todas essas emoções ficaram perdidas em algum lugar do passado. E, no entanto, elas me habitam.

Sim, isso tudo só existe dentro de mim. As pessoas e lugares que eu pincei, poli e transformei em lembranças queridas. Os momentos que eu edulcorei em minha nostalgia. Os eventos que me marcaram, as músicas que definiram um certo período de minha vida.

Como podem coisas que já acabaram serem ao mesmo tempo para sempre?

As flores do passado, quando trazidas a presente, vêm cobertas de melancolia.

Toda recordação é um quadro adulterado que a gente escolhe venerar.

Toda lembrança é um espectro. E adorar uma holografia, algo que não está ali (e que não existe mais em lugar algum), é doído demais.

***

Eu vivo em alta velocidade. Sempre acelerei.

No entanto, não gosto de deixar nada para trás.

Carrego o passado comigo. Levo os afetos impressos no peito. E os nutro como bichos de estimação. (Insepultos.)

Só que viver é deixar para trás. Viver é deixar passar por você aquilo que acaba de acontecer.

Para seguir vivendo é preciso desapegar. Não é possível reter as coisas com que você cruza pelo caminho, nem arrastá-las consigo, como um acumulador de experiências que deseja abarcar tudo, e que se recusa a colocar pontos finais nas histórias que vive

As experiências evanescem assim que terminam de ocorrer. Elas são boas, e você é uma pessoa de sorte, simplesmente porque aconteceram. Não faz sentido transformá-las em martírio apenas porque elas se perderam no tempo e não acontecerão outra vez.

A vida é uma degustação em que você só tem direito a um gole de cada vinho. Não é possível beber duas vezes da mesma garrafa. É preciso entregar-se com todo o seu paladar a essa única taça. Recuperar a taça anterior é impossível – e, ao tentar fazê-lo, você perderá a próxima.

Para viver, para aproveitar sua vida hoje, que é onde ela acontece, não dá para ter uma relação anal-retentiva com o tempo.

Vida é fluxo. Uma correnteza que lhe arrasta adiante, quer você nade a favor ou contra ela

E vida é perda. É preciso aprender a deixar pedaços pelo caminho.

Honrar o passado é deixá-lo descansar. É enterrá-lo com todas as honras. E seguir vivendo, com foco no presente – que amanhã já terá se transformado em passado também.

***

Sempre vivi com o vento batendo no rosto. Com os olhos no horizonte.

Portanto, sempre recusei a ideia de me amarrar num cercadinho, de não sair da aldeia.

Ficar imóvel não irá congelar um certo lugar nem uma determinada época. Não se mexer não nos livrará de contemplar o tempo voando sobre nossas cabeças nem a paisagem mudando ao redor.

Estamos sempre em movimento. Cruzando gentes e oportunidades num mundo em constante mutação. O que significa que estamos sempre nos aproximando de alguma coisa – e nos afastando de outra.

Todo momento se esvai. Tudo se transforma. Nada fica. Tudo vai.

Ambientes, sensações, eventos. O gosto da comida de sua avó – o cheiro do pão que ela fazia. Os amigos dos tempos de faculdade. A luz que batia nas manhãs de inverno da sua infância. Sua primeira namorada – onde andará? É tudo bolha de sabão

Não há antídoto para isso senão viver muito bem o seu dia, saboreá-lo desde o momento em que você acorda até a hora em que você vai dormir.

Agradecer pelas coisas boas que lhe acontecem. Apesar da sua impermanência. Nada de ficar olhando triste pelo retrovisor – olhos na estrada adiante.

Porque o tempo não para. Os dias não voltam.

A dor da efemeridade das coisas ao nosso redor espelha a angústia da nossa própria finitude. (No fundo, a saudade que a gente sente é da gente mesmo.)

***

Não há problema em contemplar o passado, de vez em quando. Desde que ele não reclame um lugar no seu presente.

Não há problema em celebrar o que você viveu, desde que você mantenha os pés sempre bem fincados na sua realidade, hoje.

A vida é cheia de ois e tchaus.

Se você só olhar para o sofrimento das despedidas inevitáveis, deixará de enxergar a alegria dos encontros possíveis.

Reencontros são ótimos. Desde que representem um novo capítulo naquela história – e não a tentativa de reviver capítulos antigos. O pretérito (im)perfeito é uma obra acabada e imexível

A saudade só é saudável quando se traduz num olhar amoroso ao passado, a partir do presente. E é uma toxina quando busca ressuscitar o que já foi.

Por fim, o passado não oferecerá, jamais, guarida viável a uma realidade mais dura ou árida que você esteja vivendo hoje. O presente só se resolve no presente. O presente é inelutável. Não é possível fugir dele; é forçoso encará-lo.

***

Nostalgia é amor. E nostalgia é doença.

Eu sinto amor por tanta coisa. E eu sinto falta (às vezes de modo antecipado, enquanto a coisa ainda está acontecendo) daquilo que já não posso ter.

Eu sinto o imenso vazio das coisas que estão longe. Eu sinto a dor funda das coisas que não voltam mais.

Eu sinto a vertigem de tudo desaparecendo no tempo e se distanciando no espaço.

Eu queria ter para sempre comigo aquilo que amo.

As coisas que perdi. Ou que fatalmente perderei. E que refletem a minha própria efemeridade.

Tudo isso bate em mim como um grande desejo de estar junto. De trazer para perto o que está distante. De recuperar o que já foi. De preservar esses afetos da grande correnteza que leva tudo por diante.

***

A mãozinha da minha filha com as unhas pintadas pela primeira vez – seus dedos entrelaçados aos meus. O cheirinho do seu pescoço. Os desenhos e coreografias que ela inventava. As vezes em que ela se emocionou assistindo a um filme ao meu lado.

Aquela tarde em que joguei bola com meu filho, só ele e eu, correndo e rindo, dois perebas, sobre o campão. Ele descobrindo o primeiro game em seu primeiro console, eu ao seu lado tentando acompanhar. A longa viagem de avião em que ele dormiu o tempo todo aninhado em meu colo.

Onde ela e ele estarão em poucos anos?

A família ao redor da piscina. Sentimento bom por conseguir prover a eles aquela sensação de conforto. A farta função em torno do forno e fogão. A pequena tristeza ao final de cada feriado, na hora de arrumar as coisas e voltar para casa – eu já sabia que aqueles eram momentos dos quais lembraria para sempre com alegria e uma pitada de dor

As canções que tocavam sob o sol, emoldurando aquelas tardes felizes – reencontrarei essas sensações algum dia?

A linda foto do poente que minha mãe me enviou de sua janela. Há 25 anos – metade do meu tempo de vida – não moramos na mesma cidade. E eu quis estar lá com ela, naquele momento, vendo a noite cair sobre o seu cantinho no mundo, naquele final de domingo. Eu olharia para os seus livros na estante, conectando lembranças da minha infância. As fragrâncias de pinho em sua casa limpa. E lhe falaria sobre minha melancolia, como um convite a que ela mais uma vez me ensinasse a recusar esses sentimentos plúmbeos.

A chamada de vídeo com meu pai pelo celular. Seu humor, sua prosa, seu charme. Nossas conexões possíveis. E essa ampulheta maldita a derrubar areia. Era tão bom estar lá e simplesmente poder abraçá-lo, dar-lhe um beijo sentindo a aspereza da barba por fazer. E, mesmo sem conseguir expressar com palavras tudo o que sinto, rir com ele. Tocar-lhe o ombro. Tomar com ele um uísque à tardinha, esperando a noite na varanda.

São tantas fotografias essenciais com meu pai e minha mãe. Como é que se guarda tudo isso?

E ao reencontrar meus amigos de adolescência, seres míticos para mim, personagens dos meus verdes anos que parecem viver em festa dentro de mim, num eterno sábado à noite, conseguir redescobri-los como são hoje, com as vidas que têm, com suas conquistas e frustrações, em sua maturidade, e não enxergar tanto neles um espelho de quem eu fui ou deixei de ser ou gostaria de ter sido.

E não sentir tanto a vertigem do tempo que nos separa dos heróis dourados que fomos uns para os outros no começo da vida, nem a vertigem do espaço que nos distancia há décadas, todos em franca diáspora pelo mundo e pela vida.

***

Ela ao volante. Ela cozinhando. Ela simplificando uma questão, e acertando no centro do alvo com sua intuição. Ela, ao meu lado, vida afora. Com seu bom gosto. Com seu toque macio. Com seu perfume. Uma constante em meio ao turbilhão. Estamos fazendo a coisa certa? Estamos tratando tudo isso, e a nós mesmos, da melhor maneira?

***

Eu tenho esse tanto de poesia – e de loucura – dentro de mim.

Em outras palavras, sou muito romântico.

 

Adriano Silva é fundador da The Factory e Publisher do Projeto Draft, Founder do Draft Inc. e Chief Creative Officer (CCO) do Draft Canada. É autor de nove livros, entre eles a série O Executivo Sincero, Treze Meses Dentro da TV e A República dos Editores.

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