Muito já se falou sobre Felipe Morozini. Como ele mesmo conta, foram diversos artigos, mas nenhum conseguiu achar um rótulo perfeito para ele. Talvez porque isso seja simplesmente impossível.
Formado em Direito pela Universidade Mackenzie, em São Paulo, o advogado se viu transportado para o universo da Fotografia. A paixão pelas imagens foi apenas a porta que se abria para o mundo das artes.
Hoje, aos 40 anos, Felipe é fotógrafo, cenógrafo, designer e diretor da Associação Parque do Minhocão, organização social que defende que o Elevado Presidente Costa e Silva se transforme numa área de lazer para a população da cidade. É um dos fundadores também do Estúdio Líquen, coletivo de profissionais que trabalham com design e projetos criativos. Como fotógrafo, tem trabalhos publicados em revistas como a Elle, Playboy, Amarello, Serafina e Revista Sétima, além de ter realizado ensaios fotográficos para os jornais El País e Folha de S.Paulo.
Como cenógrafo, foi responsável por projetos em eventos como São Paulo Fashion Week 2011, Fashion Rio 2012, pela concepção dos lounges no Lollapalooza 2015, entre outros. Já como designer, desenvolveu produtos para marcas como Background 27, Storia Lab, Estar Móveis e Galeria 55SP.
Atualmente Felipe está envolvido na criação de uma “instalação habitável” em um hotel bastante conhecido da capital paulista (mas que ele ainda não revela o nome). O espaço estará disponível na plataforma Airbnb para que qualquer pessoa possa pagar pela estadia, por um preço acessível. Segundo o artista, é um dos primeiros experimentos neste estilo — afinal, o Airbnb é meio que o anti-hotel — do site no mundo.
Criado no bairro do Tatuapé, na zona leste da capital paulista, há 16 anos o artista decidiu morar no apartamento da avó, bem em frente ao famigerado Minhocão. Da janela de sua casa, fotografou milhares de cenas do cotidiano da região.
Sincero e sem meias palavras, na entrevista ao Draft Felipe revela sua relação, quase obsessão, com o Minhocão, fala da urgência em transformar São Paulo em uma cidade para pessoas e de como se considera um sonhador. Abaixo, a nossa conversa com ele:
Como fotógrafo você sempre foi voyeur das cenas de São Paulo. Em que momento você decidiu se transformar num maker e também lutar pela transformação do cenário que via através das lentes?
Acho que é a consciência da posição de espectador para a posição de feitor. Se a arte tem o poder de transformação, este foi um caminho natural, desde que comecei a catalogar meu trabalho fotográfico – primeiro você entende onde está (tenho 250 mil fotos do mesmo ponto de vista). É uma obsessão. Durante 15 anos eu fotografo isso. Percebo que no começo era um registro. Depois de exaustivamente perceber isso, comecei, por exemplo, a pintar as fotos. Vi que todas as fotos eram cinzas, beges. Nisso já estou sendo agente transformador da realidade. Fiz uma grande série de fotografias pintadas de verde porque em algum momento li que o verde acalma. Quando pintei as flores do Minhocão (intervenção artística feita em 2009), ali entendi meu papel na cidade.
Foi muito sério porque percebi que houve um diálogo. Se tem uma coisa que é mais importante que falar é ser ouvido
Nunca tive a pretensão de fazer nada do que faço. Mas hoje, gosto de pensar, que estou impregnado da cidade.
E como aconteceu isso?
Faz 15 anos que moro em um ponto nevrálgico da cidade, onde passam milhares de carros por hora. Cansei de observar passivamente. Sempre busco as possibilidades de futuro. Se a arte me permitir, acho que este é um dos caminhos. Eu, mais do que ninguém, vi o que aconteceu aqui no Minhocão depois que pintei aquelas as flores que chamaram de Jardins Suspensos da Babilônia.
Por que o Minhocão? Qual é a importância – e o significado — para a cidade de São Paulo em transformá-lo num parque linear?
Vou te responder de três pontos de vista. Primeiro, como morador: este é o meu objeto de estudo. Quando abro minha janela, percebo que não está certo o que acontece no Minhocão hoje. Agora, como morador da cidade de São Paulo: a possibilidade de ter um parque onde hoje passam 70 mil carros me parece uma coisa de cidade que pensa para a frente, que pensa nas pessoas. Muito se fala hoje em cidades para pessoas, é um movimento mundial. E se existe um lugar, em São Paulo, em que a ocupação do espaço público acontece de forma espontânea, é no Minhocão. E o mais impressionante é que não há condições das pessoas estarem: não tem sombra, não tem banheiro, não tem banco. Então por que milhares de pessoas frequentam como se fosse um parque? Quando falo num parque, digo uma área de lazer. Se decidirem fechar o Minhocão e não plantarem nenhuma árvore, acho que São Paulo já ganha muito e pensa no futuro. Há uma coisa chamada direito adquirido. As pessoas que correm, andam de bicicleta, elas já usam este lugar para isso.
Você é contra a derrubada do Minhocão?
Como artista, se você tirar o Minhocão, você acaba com a possibilidade do sonho. Numa cidade como São Paulo, para mim, o sonho é quase comida. Se você não sonhar, é melhor sair da cidade. Porque ela é uma cidade muito dura, muito difícil. A gente só trabalha, paga imposto. Eliminar a possibilidade do sonho é muita crueldade. Moro aqui por opção. Luto pelas pessoas que não têm opção. Morar aqui é 70% mais barato porque ninguém quer morar na beira de estrada. Ninguém quer ter uma qualidade de vida ruim para os filhos. Para mim, quando se fala no parque, é uma devolução de dignidade. Quando se construiu o Minhocão, o bairro deixou de ser bairro para ser passagem. E ele foi se degradando. Foram chegando pessoas, que por falta de opção, vieram morar porque é mais barato. Não parece óbvio que, se é 70% mais barato, algo está errado?
Como andam as negociações com a Prefeitura? Quando elas começaram? O que mudou desde lá até hoje?
As negociações começaram na abertura da associação, há dois anos. Entramos com pedido de projeto de lei, que foi aceito. Na sequência, o Plano Diretor (da cidade de São Paulo) apontou a necessidade do fechamento do Minhocão, usando o estudo do projeto de lei. Diante disso, e do sucesso da iniciativa, abriu-se a Associação Demole o Minhocão. Eles são muito fortes politicamente.
Mas existe um fato: há um viaduto sendo usado como parque por milhares de pessoas. A Prefeitura precisa encarar este fato
Atualmente, o Minhocão fecha aos sábados e domingos. Queremos que ele abra uma hora mais tarde e feche uma hora mais cedo durante a semana. O que entendemos – e eu, particularmente, por ser morador — que 6h30 da manhã é sacanagem você sair dos 12 decibéis e entrar nos 80. E só parar estes 80 decibéis às 9h30 da noite, quando cai de novo para 12. As TVs das pessoas do meu prédio ficam no volume 70. Quando fecha o Minhocão, todas caem para 20. Ou seja, tem alguma coisa muito errada acontecendo com a saúde destas pessoas.
Como foi para você, pessoalmente, se inteirar dos trâmites burocráticos de uma organização civil interagindo com o poder público? Qual é a expectativa hoje a respeito do projeto e sua realização?
Meus amigos me acham utópico, otimista e quase um tonto. Metade acha que sou um sonhador. Prefiro achar que sou sonhador. Por que? Todas às vezes que teve audiência pública, passei mal. Deu embrulho no estômago. Nas três reuniões como Haddad (Fernando Haddad, prefeito de São Paulo), passei mal. A política é um campo muito perigoso para o que estamos fazendo. Há muitos interesses que não conhecemos. Agora, o que conhecemos são as lacunas, que o governo não consegue ocupar. Eu, como pessoa física, me sinto uma formiguinha. Mas dizem que formiguinhas junto de outras formiguinhas formam uma sociedade forte. Gosto de pensar nestas metáforas.
Cada vez mais o paulistano está se reapropriando de seus espaços públicos – a Avenida Paulista, o Córrego das Corujas, o Minhocão. Você concorda com essa afirmação? Como você enxerga esse movimento?
Este movimento é mundial. Quando começou-se a falar em cidades para pessoas, foi o momento em que os grandes centros urbanos das grandes cidades do mundo entraram em colapso. Quando você está dentro de um carro, você vê a cidade passar. Fora do teu carro. Quando se discute o Minhocão, muita gente fala “E os carros, você é louco de fechar!”. Estas pessoas têm carro, ar-condicionado e um bom aparelho de som. Têm uma visão egoísta da cidade. Quando você anda a pé ou de bike, tem a possibilidade de parar e olhar. A prática do caminhar como experiência estética. De dentro de um carro você não pode ter experiência estética porque você bate o carro. No mundo inteiro, essas pessoas que estão em festas nas ruas — de food trucks a bancas de jornais que vendem fanzines — e é muito rico perceber este momento.
Nunca se falou tanto sobre a rua. Quero rápido que comecem a falar das calçadas, porque numa cidade para pessoas há calçadas
E quando você viaja, percebe que idosos e cadeirantes têm muito espaço nas cidades.
Como é possível transformar a capital paulista numa cidade para pessoas, de fato? Ainda há tempo?
Eu sou um otimista e um sonhador. Então para mim é óbvio que dá tempo. Se você falasse há dez anos que iam fechar a Paulista, iam chamar a gente de louco. Quando mudei para cá, pensava que deveriam demolir o Minhocão. Eu não sabia das possibilidades de arquitetura, de urbanismo. Hoje entendo a ruptura que o Minhocão fez no tecido urbano de bairro.
Qual a importância do projeto do Parque Minhocão ser uma solução construída coletivamente? Quais são os prós e contras dessa forma de atuação civil?
Só pode acontecer uma ação como esta se tiver um envolvimento das pessoas locais. Só é legítimo se todos forem ouvidos. E todos estão sendo ouvidos. Temos pela frente pelo menos mais três anos de discussão. É tempo suficiente para quem quiser se manifestar.
O que o fascina tanto em São Paulo?
A possibilidade do impossível. Estou há dois anos perdendo horas de sono, horas de conversa. Só posso imaginar que o que me move é que aqui se pode tudo. Por ser um território livre artisticamente, já coloquei fogo nos móveis da minha bisavó no Minhocão. Já joguei 200 bolas de tinta pela janela. Se fosse em qualquer bairro, qualquer rua, eu seria um louco. Seria preso por colocar fogo nos móveis no meio da rua. No Minhocão, não.
Qual deve ser o papel do cidadão para mudar a cidade? Como não se sentir impotente diante da máquina burocrática e velha da administração municipal?
As pessoas vão se sentir impotentes. Todos os dias me sinto impotente. Mas este é meu motor. É ter a consciência do que você pode fazer pelo seu meio e a hora que você se dá conta desta consciência, a sua casa não é mais seu apartamento. Você não vai mais cuidar do seu apartamento, vai cuidar da sua cidade. Moro entre o Minhocão e a rua das Palmeiras e quero plantar palmeiras porque na rua das Palmeiras tem que ter palmeiras. É pensar a rua das Palmeiras como fosse meu quintal, meu jardim. Gostaria que daqui a dez anos meu sobrinho andasse na rua das Palmeiras com palmeiras e que caminhasse no Minhocão e dissesse “nossa, que gente louca que punha carro aqui”.
Em que medida o futuro das cidades depende das iniciativas coletivas e colaborativas? Elas devem liderar o processo de mudanças ou, por carecerem de escala, devem ser associadas à políticas públicas?
Acho que não. Somos chamados em reuniões para responder perguntas sobre assuntos políticos ou urbanísticos, por exemplo. Vejo essas organizações ou coletivos como células de micromundos. Tem um termo do urbanismo conhecido como acupuntura urbana. Você aperta nesse ponto e num raio de 500 metros ou 1 quilômetro, tudo em volta se modifica. Cada vez mais pessoas físicas bem intencionadas serão chamadas a cuidar de determinados assuntos da cidade. A importância é enorme.
Qual é a sua principal missão nessas posições que ocupa hoje?
Tentar que as pessoas vejam nas minhas atitudes liberdade, gentileza e vontade de transformar. A palavra mais importante é esta: transformar.
O que você mudaria em sua própria rotina, se pudesse?
Queria todo dia ter tempo de dar um mergulho no mar.
Quantas horas por dia você trabalha? Como é um dia típico na sua vida.
Das 9h da manhã às 10h da noite, incluindo os finais de semana. Esta é a minha rotina nos últimos quatro anos.
Como você trata a sua espiritualidade? O que você faz? Isso te ajuda de alguma forma?
Sou kardecista (doutrina espírita de Alan Kardec) e acredito na energia. Acredito no campo vibracional de todas as pessoas que trabalham comigo e chegam perto de mim. O que eu faço, para todas as pessoas, é abrir no chacra (centro energético dentro do corpo humano) no meu peito uma luz branca de amor. É isso que faço. É minha reza. Eu amo todas as pessoas, e principalmente, aquelas que os outros acham chatas, que ninguém dá bola na rua. Adoro usar uma camiseta com uma frase que criei “Eu sabia que você existia”. Sou parado por mendigos, usuários de crack e putas que me param e dizem “Você sabe que eu existo?” e olho bem no olho e respondo “eu sei que você existe”.
Onde você quer estar em 10 anos?
Tenho duas respostas. Uma é andando descalço na grama do Parque Minhocão e a outra é cuidando de um restaurante em Boipeba, uma ilha na Bahia.
O que você faria diferente se pudesse voltar 10 anos?
A única coisa que consigo pensar agora é numa tatuagem horrorosa que fiz nas costas. Acho que é isso, eu não mudaria nada. Há oito anos eu lamentava ter feito Direito, e hoje, agradeço todos os dias. Era um aluno que gostava de promotoria, fiz estágio no Carandiru. Está tudo certo, não joguei fora. Li muito, defendi muito. Não faria nada diferente.
Qual é a sua relação com a tecnologia?
Quase zero. Sei da importância dela, mas não me importo nem um pouco. Quem instalou os aplicativos no meu celular foi meu assistente (João Vitor) ou meu sobrinho de 12 anos. Nas minhas fotos, desde que comecei a fotografar, pedia para não usar Photoshop. Fiquei conhecido no mercado porque nas capas de revistas não usava Photoshop na pele das mulheres. Mas vejo com bons olhos a tecnologia. Adoro quando ela me ajuda a sonhar. Adoro projetos do Minhocão que chegam para mim com uso de tecnologia. Mas meu cérebro não funciona desta maneira.
Como e onde você consome informação no dia-a-dia? O que ou quem você segue? Quais são suas leituras obrigatórias?
Vai parecer muito pretensioso, mas os melhores filmes que assisto passam dentro da minha cabeça. As melhores críticas que leio sou eu que faço. Eu sou uma pessoa muito crítica. Há dois anos não quis mais TV, não gosto de ler jornal. Gosto de Tumblr. Gosto de imagens. De frases. Gosto de imaginar que a minha pesquisa, e onde vou beber informações, são as imagens. Por dia, vejo muito mais que mil fotos.
E onde você acessa estas fotos?
Tumblr. As minhas áreas de interesse são enormes: cenografia, fotografia, design, cidade. No meu computador, tenho seis pastas diferentes. Tudo me interessa. São as imagens que me libertam.
O que você gosta de fazer quando não está trabalhando?
Cozinhar. Minhas receitas de lasanha, fusili, capeleti são uma delícia.
Como imagina que as pessoas vão lembrar de você? Qual é o legado que você está construindo?
As pessoas vão pensar em liberdade. Sempre falei sobre liberdade. Sou um advogado, que virou fotógrafo, que faz cenografia. As pessoas nunca souberam me taguear. Tenho uma pasta no Facebook que chama “Who am I?”. Peguei todas as coisas que já saíram sobre mim e cada uma é uma profissão: 40 pessoas falaram sobre mim. Já falaram tudo. E acho que, se for lembrado, também vai ser por tudo o que tenho conseguido ser.
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