Mais do que nunca, durante a pandemia, os brasileiros passaram a ficar ligados nas falas de virologistas e de outros cientistas que saíam na imprensa e até decorar os seus nomes. Alguns deles viraram inclusive “celebridades”. Mas no geral, infelizmente, a ciência brasileira sempre esteve em descrédito entre a população.
Foi para mudar este cenário que as pesquisadoras e jornalistas de ciência Ana Paula Morales e Sabine Righetti fundaram a Agência Bori em fevereiro de 2020.
Ana é biomédica com mestrado em farmacologia pela Unifesp, especialização em jornalismo científico e atualmente doutoranda em política científica pela Unicamp. Sabine é PhD em política científica pela Unicamp, com passagem por Stanford e pela Universidade de Michigan.
Mesmo para elas que estão próximas desse mundo, nem sempre era fácil encontrar uma cientista como fonte, diz Sabine:
“Eu era repórter de ciência, superespecializada, já estava no doutorado e nem assim conseguia achar pesquisas brasileiras, falar com cientistas. A gente brincava que era mais fácil falar com pesquisador americano do que com alguém USP porque não achava o telefone, não conseguia encontrar onde os trabalhos estavam publicados”
Bori, aliás, é uma homenagem à cientista Carolina Bori, primeira presidente mulher da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), falecida em 2004 quando lecionava Psicologia na USP. Na prática, o negócio oferece pesquisas científicas inéditas (em três áreas principais: Amazônia, Covid e Sistemas Alimentares) explicadas detalhadamente à imprensa, um banco de fontes de cientistas e treinamentos para jornalistas e cientistas.
Em três anos, mais de 2 600 jornalistas já se cadastraram na plataforma, que já divulgou 450 estudos antecipadamente para veículos nacionais. Segundo Ana Paula:
“A gente não pensa só no caderno de ciência, nossa ideia é fornecer evidências científicas para a cobertura de qualquer tema. Por isso, nosso slogan é ‘Ciência em todas as editorias’”
Jornalistas e cientista nãos pagam nada para usar a Bori. O negócio é mantido por meio de investimento social de instituições alinhadas com os valores da agência, entre elas os institutos Serrapilheira, Clima e Sociedade (iCS) e Ibirapitanga. No primeiro ano de atuação, este orçamento era de 100 mil reais; para 2023, é de 1 milhão de reais.
Se empreender já é difícil, fazer isso juntando ciência e jornalismo tem sido um desafio ainda maior. Mas as cofundadoras da Bori sabem que estão abrindo caminho. Leia a seguir a conversa com Ana Paula e Sabine:
Como surgiu a ideia da Bori?
SABINE: Nós trabalhamos juntas em alguns momentos, um deles foi em 2008 no Governo do Estado de São Paulo, na comunicação das universidades. E ficamos muito amigas, fazíamos iniciativas juntas, sempre trabalhando academicamente.
Víamos que a ciência brasileira é grandiosa, o país está entre os 15 que mais produzem ciência no mundo, fazemos coisas incríveis, mas a população quase não sabe disso. A imensa maioria dos brasileiros não sabe dizer o nome de um cientista, de uma instituição de pesquisa… Então a gente ficava pensando que um dia iríamos fazer uma iniciativa para resolver essa questão
Aí, nos separamos um pouco. A Ana foi para uma outra iniciativa dentro do Governo, participou da criação da Universidade Virtual do Estado de São Paulo, e eu fui criar o Ranking Universitário da Folha de S.Paulo. E num momento, entre 2016 e 2017, decidimos parar tudo o que estávamos fazendo e voltar a ter uma ideia de uma iniciativa para conectar a ciência brasileira à imprensa.
ANA: Então, a gente começou a passar chapéu. Pensávamos que íamos falar com as pessoas e elas iam achar a iniciativa linda e nos dar um cheque. A gente achava que o dinheiro tinha que partir das instituições, que elas seriam as maiores interessadas na iniciativa.
E óbvio que isso não aconteceu, mesmo nós sendo muito bem conectadas. Até que a gente conseguiu o primeiro aporte para essa iniciativa, em 2017 para 2018.
De onde veio esse primeiro aporte? E o que vocês fizeram com ele?
SABINE: A Ana teve a ideia de submeter nossa proposta a um edital da FAPESP para pequenas empresas de desenvolvimento tecnológico. A gente já tinha uma empresa, mas não era de tecnologia.
Mas aí pensamos: se a gente quer fazer uma iniciativa de divulgar a ciência na imprensa, temos que desenvolver uma tecnologia para mapear essa ciência para os jornalistas a acessarem. Aí, escrevemos um projeto falando que íamos desenvolver essa tecnologia e fomos convocadas para fazer o pitch para uma banca de professores da computação.
A gente ficou lá discutindo com eles — eu jornalista, ela, cientista –, falando de tecnologia! Éramos as únicas mulheres no pitch, e conseguimos virar o jogo e convencer a banca
Recebemos o aporte. Só que aí conseguimos desenvolver a tecnologia, mas não tínhamos como operar.
ANA: Então, submetemos a Bori em mais um edital, do Instituto Serrapilheira, que era de divulgação científica. Recebemos outro aporte e conseguimos, de fato, desenhar uma operação em 2018 e lançamos a Bori em fevereiro de 2020.
O processo todo, da ideia ao lançamento, durou quase dez anos; da mão na massa ao lançamento, uns cinco.
E como funcionam na prática os serviços oferecidos pela plataforma da Bori?
SABINE: Nosso carro-chefe é uma vitrine de pautas e pesquisas inéditas para jornalistas. A gente tem ciência de excelência, mas é muito difícil de localizar, entender essas pesquisas e falar com os autores. Então, identificando isso, montamos essa vitrine em que a gente acompanha, pela nossa tecnologia, a linha de produção das revistas científicas.
Acompanhamos cerca de 100 artigos por dia a partir de periódicos científicos com os quais temos parcerias, mas selecionamos um para explicar em um texto, falamos com um porta-voz e preparamos essa pessoa para atender a imprensa, colocando seu contato e o artigo explicativo na parte fechada da plataforma.
Aí os jornalistas cadastrados acessam a nossa vitrine, podem pegar o telefone celular desse especialista e reproduzir trechos do texto explicativo na íntegra. Este é o carro-chefe, mas temos outras coisinhas.
ANA: Além da vitrine, temos banco de fontes: independente de ter estudo inédito ou não, os jornalistas entram lá e indicam “preciso entrevistar um cientista que fale sobre mineração ilegal na Amazônia”, por exemplo. Entra lá na plataforma e tem o nome do ou da cientista e da instituição.
E temos cursos, tanto para jornalistas quanto para cientistas. Para os jornalistas, são tipo de imersões sobre temas científicos e mentorias, já para os cientistas oferecemos treinamento de imprensa, porque no Brasil cientista não aprende a falar com a imprensa em nenhum momento, e nas faculdades americanas isso faz parte da formação.
Dentro do serviço de explicar uma pesquisa para jornalistas, qual a metodologia que vocês usam, e quem faz isso?
SABINE: No começo, a gente fazia tudo. Agora, ficamos só na coordenação e temos uma equipe fixa de dez pessoas e algumas dedicadas a olhar esses 100 artigos diariamente para fazer a curadoria de maneira humana.
Temos critérios muito bem estabelecidos do que buscamos. Por exemplo, artigos importante para o país, com temas relacionados a Amazônia, fome, yanomamis, saúde pública, educação, que são urgentes neste momento.
Temos um olhar para a igualdade de gênero entre porta-vozes, ficamos sempre balanceando para dar 50% de especialistas mulheres e 50% de homens, e nos preocupamos com distribuição de tema por área de conhecimento e também distribuição nacional
Então hoje pegamos estudos da USP, amanhã um da Universidade Estadual de Roraima, depois um da Federal da Bahia e assim por diante. Ficamos fazendo essa costura, que obviamente é dificílima.
ANA: Agora estamos no desenvolvimento da nossa tecnologia 2.0, que terá inteligência artificial para fazer esta seleção, com checagem humana. Entraremos numa etapa em que ensinaremos à IA o que buscamos, e ela vai nos trazer os estudos.
Esse processo de curadoria é o coração da Bori dentro desse principal produto da vitrine. Mas temos todas essas limitações de recursos humanos, então não dá para uma galera ficar olhando todo dia para esses artigos.
Então, a gente está investindo nesta tecnologia nova que vai nos ajudar muito na curadoria, com uma metodologia que conseguirá mostrar algumas coisas como a relevância jornalística ou não do artigo, qual o principal tema, algumas informações para nos gerar um alerta e irmos direto ao ponto sem termos que olhar os 100 artigos todo dia
Começamos a desenhar esse sistema em um hackathon da Microsoft e ano passado ganhamos o primeiro lugar no Hack for Positive Impact Executive Challenge.
Vocês podem dar exemplos de pesquisas científicas que “traduziram” para jornalistas e o impacto que isso teve na mídia ou na sociedade?
SABINE: Depois que publicamos o estudo, avaliamos o que acontece com ele. Em média, cada estudo nosso tem 20 citações imediatas na imprensa escrita. Estamos falando de jornais grandes, como Folha de S.Paulo, Estadão, Globo, mas também veículos menores como O Povo, A Crítica etc.
Temos casos de pesquisas que explodem e chegam a 200 menções imediatamente. Um último estudo que divulgamos no final do ano passado da Fundação Getulio Vargas e deu mais de 200 menções mostrava que pais não leem os termos de uso de aplicativos infantis
Agora estamos começando a ver o que acontece depois do estudo. Temos um caso do INMA (Instituto Nacional da Mata Atlântica), no Espírito Santo, de um pesquisador que estudou a biopirataria de abelhas, que é um problemão porque, com o comércio ilegal, a abelha vai para onde não tem que ir, mata abelhas locais etc.
Com a nossa divulgação, todos os anúncios de comércio ilegal que ele tinha analisado foram tirados do ar e o estudo ainda foi responsável por conseguir mudar um projeto de lei que estava tramitando na Câmara naquele momento. Teve um superimpacto em como aquela discussão foi pautada.
ANA: Outro exemplo foi de um estudo de um pesquisador da Unicamp sobre técnica de extração de gás do subsolo em Manaus com uma técnica específica que causava abalos sísmicos, umas fissuras no solo. Vimos que isso gerava prejuízos enormes em termos financeiros. Por conta da divulgação do estudo, foi mudada uma norma no Ministério de Minas e Energia.
Esse era um estudo supertécnico que provavelmente iria ficar entre os pares, mas conseguimos trazer para a mídia e mostrar o impacto econômico daquilo
Porque o pesquisador, às vezes, está na pegada técnica, para ele não é o grande achado o impacto econômico, por isso a gente busca extrair algo mais relevante jornalisticamente e trazer à tona.
O que a gente diz é que queremos levar a evidência científica para a tomada de decisão, tanto no aspecto social quanto no da política pública; esse é nosso objetivo maior, e isso é impacto social.
Em relação aos serviços de banco de fontes oferecidos aos jornalistas, como vocês escolhem esses cientistas?
SABINE: A gente teve a ideia de fazer esse banco de fontes quando a Bori tinha duas semanas. Lançamos dia 12 de fevereiro, dia 26 teve o primeiro caso de Covid confirmado no Brasil, era uma Quarta-feira de Cinzas. Estávamos tentando fazer a Bori girar. Tínhamos 300 jornalistas cadastrados na plataforma.
Todo mundo que estava registrado sabia quem a gente era, aí os jornalistas começaram a nos acessar pedindo “pelo amor de Deus, preciso de um cientista para falar do primeiro caso de Covid”, em pleno feriado. Neste momento, a gente acionou os amigos. Lembro que chamamos até o Atila [Iamarino], ele não era famoso ainda
E naquela hora pensamos em criar o banco de fontes. Lançamos quando chegamos em dez nomes, o que aconteceu uma hora depois de fazermos o anúncio do cadastro e os jornalistas começaram a usar loucamente.
Aí criamos um sistema, a cara do banco, adequamos à LGPD. Hoje, fazemos convocações formais, o cientista pode entrar no site da Bori e se cadastrar. Recentemente, a gente fez uma convocação para cientistas que pudessem falar da questão Yanomami. Conseguimos um número sensacional, quase todos da região Norte, temos uns quinze.
E sobre os treinamentos oferecidos ao jornalistas: como funcionam? E como são escolhidos os temas?
ANA: Começamos em 2020 fazendo lives com virologistas para explicar o que estava acontecendo com o coronavírus e tinha a participação de uns 200 jornalistas. Aí, no final de 2020, formalizamos um curso sobre vacinas que deu supercerto, teve manual, aula e certificado.
Fizemos três edições já. E o curso, de dois dias, virou um programa de mentoria em 2021 e passou a durar quatro meses, com uns 20 jornalistas. Tiveram encontros com especialistas sobre temas específicos de vacina e, no final, o material que produzissem no período concorria a um prêmio.
E agora, no ano passado, fizemos uma segunda versão dessa mentoria para jornalistas, mas com foco em estudante ou recém-formados — e os jornalistas que participaram da primeira edição e eram mais sêniores foram mentores dos jovens.
É algo que estamos apostando, não só ajudar na cobertura jornalística de quem já está aí há um tempão na estrada, mas na formação dos novos jornalistas. Porque tem pouquíssimo jornalismo de ciência, não são todos os cursos que oferecem a disciplina, geralmente é eletiva
Mas nossos cursos não são só sobre vacina, já fizemos sobre a COP, enfim, são sobre temas relevantes para o país.
A ciência sofreu muito durante o governo Bolsonaro. Como vocês nadaram contra a corrente, já que nasceram e operaram basicamente neste cenário? E o que esperam daqui para frente?
ANA: Foi difícil pra caramba, mas ao mesmo tempo, uma oportunidade. Quando a gente lançou a Bori, já era num contexto de descrédito da ciência. Os cortes já estavam acontecendo, já havia muito descrédito das instituições, as fake news estavam aí, mas a pandemia só piorou tudo isso.
Por um lado, a situação era péssima… mas a relevância do nossos trabalho só se tornou mais clara para todo mundo
Quando a gente começou, tínhamos um grupo pequeno de jornalistas cadastrados que cobriam ciência, que eram as pessoas que achávamos que iam acessar a plataforma. Só que com a pandemia, passamos a ter jornalistas de todas as áreas. Acho que isso foi uma oportunidade de fazer o que a gente já queria — levar a ciência para todas as editorias, apesar desse contexto péssimo.
E a expectativa agora, pelo menos por parte do governo [federal], é de não ter ataques à ciência, pelo menos pelas demonstrações que a gente tem visto de grandes cientistas e especialistas nomeados na presidência da CAPES e CNPq.
A Mercedes Bustamante, por exemplo, é uma pesquisadora da UnB superconhecida na área ambiental, foi nomeada presidente da CAPES e agora é do conselho curador da Bori. Então, estamos otimistas.
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