A crise climática não é mais um evento distante que, um dia, vai acontecer. As ondas de calor que atingiram o mundo todo em 2023 estão aí para provar que há uma mudança em curso e que o mundo precisa agir para sobreviver a essa nova realidade.
Para a empreendedora Marina Cançado, 35, o Brasil tem tudo para ser protagonista neste momento, mas precisa juntar esforços e capital de todas as esferas para pôr em prática as soluções.
“Precisamos dos diferentes tipos de capital se alinhando em torno de um objetivo comum. Não tem como fazer essa grande transformação para uma economia net zero, sem deixar ninguém para trás, se não tiver o capital governamental, a filantropia e o capital privado”
Foi pensando nisso que Marina criou, em 2020, a Converge Capital Conference, que teve sua primeira edição um mês antes da pandemia e terá a segunda, com o tema “Investimentos na era das mudanças climáticas”, em maio de 2024. Entre os patrocinadores já confirmados estão BTG Pactual, eB Capital, GEF Capital, Brainvest e Instituto Arymax.
A ideia é colocar os diversos setores, investidores e empreendedores inovadores frente a frente para falar sobre investimento, apresentar cases de sucesso e abrir espaço para negociações.
“As mudanças climáticas e a sustentabilidade são o pano de fundo do grande desafio do século 21. E o Brasil poderia, ao exercer sua vocação, contribuir para ações e soluções climáticas do mundo, seja não desmatando a Amazônia, reflorestando, sendo um exemplo de energia limpa ou produzindo açúcar verde”
Porém, alerta Marina, para gerar escala e impacto é necessário capital. “E é na catalisação desse recurso, na mobilização de pessoas e organizações que podem gerar esse dinheiro que eu trabalho.”
Graduada em administração pela Fundação Getúlio Vargas, Marina Cançado começou a carreira prestando serviços para o setor público. É uma das fundadoras do Instituto Tellus, que desenvolve projetos em áreas como saúde e educação (e já foi pauta aqui no Draft).
No fim de 2013, ela liderou o desenvolvimento do programa de educação financeira do Bolsa Família. Na mesma época, a convite do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, participou da concepção e do desenvolvimento do programa Legado para a Juventude Brasileira, que levou os jovens das famílias mais ricas do país para discutir o papel de sua geração na criação e distribuição de riqueza no século 21.
Depois, foi trabalhar na XP como Head de Sustainable Wealth e, em 2022, se tornou co-CEO da Future Carbon, desenvolvedora de projetos de geração e comercialização de créditos de carbono. Há um ano ela deixou o cargo depois de perceber que seu maior ativo está em promover conexões e buscar capital não só para um negócio, mas para o sistema.
Hoje, além de organizar e estruturar a Converge Capital Conference, Marina também é advisor da Capital for Climate, organização que busca capital para as soluções necessárias para limitar o aumento da temperatura média do planeta a 1,5 ºC.
Seu empreendimento mais recente é a ATO, plataforma de comunicação que fomenta conteúdos, comportamentos e soluções alinhadas a um futuro sustentável, criada em parceria com a agência Index no final de 2023.
Na entrevista a seguir, ela fala sobre como é possível mobilizar esse capital e como a sua história de vida a ajudou a chegar aqui.
A primeira edição da Converge Capital Conference aconteceu em 2020, antes da pandemia. Por que você criou este evento?
Em 2019, resolvi tirar um ano para me aprofundar no olhar de construção de portfólio. Fui fazer cursos, participar de eventos e reuniões para aprender as boas práticas com bancos, gestoras e family offices em países da Europa e nos Estados Unidos.
Aí entendi que tinha um grande gap do Brasil em relação ao mundo no que dizia respeito à discussão ESG e sobre investimentos sustentáveis.
O que havia no Brasil em investimento de impacto era muito nichado e pequeno perto da transição de capital que precisamos fazer para construir uma organização, conseguir inclusão e uma transição justa
Comecei a ver que se não começássemos a olhar transversalmente aos portfólios, aos negócios, não teríamos capital suficiente. E resolvi, durante esse ano de imersão, empreender a Converge Capital Conference por ver que essa conversa não estava acontecendo no Brasil, ou, se estava, era em grupos muito especialistas, não estava no mercado financeiro ou nas empresas de forma estratégica.
Foi um evento de dois dias no Rio de Janeiro que reuniu 400 pessoas e acabou catalisando uma conversa que precisava acontecer. Muita gente ouviu falar de ESG pela primeira vez nesse evento, que teve um papel de posicionar essa temática. Um mês depois veio a pandemia e o boom do tema na mídia.
E por que fazer uma segunda edição, quatro anos depois, com o tema “Investimentos na era das mudanças climáticas”?
O pano de fundo de tudo daqui pra frente são as mudanças climáticas e como a gente toma decisões, seja do ponto de vista de integrar riscos, seja de olhar para as oportunidades e colocar o capital.
Quando olhamos para o Brasil, estima-se que vamos precisar de 180 bilhões de dólares por ano para fazer a transição para uma economia descarbonizada. Dois terços disso vão precisar vir do capital privado. E o capital privado não está se movendo na velocidade e magnitude que precisa.
E o mercado financeiro já está pronto para esse movimento?
Hoje, a falta de letramento climático favorece a polarização, porque essas pessoas não sabem muito e vão se apegando a opiniões e julgamentos de valor. Além disso, sem um letramento mínimo é muito difícil traduzir os efeitos que já estamos vendo para seus impactos nas empresas, para os riscos nos modelos financeiros.
Quando estávamos desenvolvendo o modelo de valuation da Future Carbon, íamos conversar com o player de mercado financeiro e tínhamos que explicar o que é carbono, mercado de carbono, preço de carbono… Como o player do mercado financeiro vai analisar se vale a pena ou não investir nesse negócio sem entender tudo isso?
Todos os players com os quais a gente conversava precisavam de meses para estudar antes de conseguir avaliar o negócio… Então, vejo que é preciso criar parâmetros, frameworks, exemplos, rever modelos.
Precisamos aprofundar esse entendimento da ciência por trás das mudanças climáticas e de quais são as soluções para além do hype, ou seja, que efetivamente podem gerar os resultados de redução de emissões, inclusão de pessoas etc. E aí, como país, precisamos nos organizar para não perder o timing das oportunidades
Muitas das soluções a gente já tem. O combustível sustentável de aviação, por exemplo, já é produzido no Brasil, só que ainda é muito mais caro [do que o convencional]. Talvez, se não tiver um subsídio, um incentivo de curto prazo, não vai chegar no ponto da escala. Não vamos resolver sem a orquestração dos vários atores e peças.
Qual o papel do poder público para alavancar essa transformação?
Para as coisas avançarem precisa ter uma estabilidade regulatória. Mais que sinalizações, precisa ter compromissos concretos na agenda de carbono.
Tem esse projeto [de regulamentação do mercado de carbono no Brasil] que vai e volta e coloca em risco todas as empresas de contenção de desmatamento e reflorestamento, que captaram milhões ou bilhões de dólares.
Então, o governo precisa entender também o que o mercado precisa dele, onde precisa de subsídio, incentivos, onde precisa de marcos regulatórios ou procedimentos de lei… Porque o mercado já tem uma percepção de risco alto em relação ao Brasil
Na minha visão, [essa percepção é] até maior do que ele é, de fato – se a gente parece desorganizado, isso aumenta a percepção de risco.
Precisamos estar muito coordenados, organizados, encaixar as peças para conseguir dar esse salto, que pode ser muito benéfico para o país, enquanto realiza sua vocação de contribuir para o mundo no endereçamento da crise climática.
Você disse que dois terços dos 180 bilhões de dólares virão do capital privado. Qual é o desafio para que esse capital seja usado no investimento de impacto?
Tem um desafio de pipeline. O reflorestamento, por exemplo, está criando um novo setor porque, para reflorestar, você precisa do viveiro, da academia e do laboratório de biogenética para as sementes das espécies nativas, de um tipo de estufa específico, de tecnologia para fazer o monitoramento daquela floresta.
Cada uma dessas soluções traz consigo um ecossistema que ainda está se formando. Aí é onde eu acho que o mercado brasileiro é muito conservador. Grande parte do capital de risco já está alocado em outras coisas.
Por isso, uma das grandes apostas é o capital internacional, que está aberto a tomar mais risco. Quando sai do Venture Capital e vai para o Private Equity, estão acontecendo muitas consolidações porque é onde se consegue organizar melhor a cadeia. Mas aí já é um estágio mais avançado de empresas.
Nas novas soluções, muita da discussão é que para alguns casos que ainda precisam se provar e vão demorar para ter escala — como a bioeconomia na Amazônia —, vamos precisar de um capital mais paciente ou do que a gente chama de estruturas de finanças híbridas, que é o blended finance
Talvez o capital de uma fundação que tope entrar incorrendo numa primeira perda, caso aconteça…
Acredito muito no papel do investidor para pressionar as empresas a avançarem mais rápido. Aí é o papel ativo do investidor, ou de crédito ou do investidor das empresas listadas na bolsa. É esse investidor mudando, priorizando uma empresa em detrimento da outra, ou dando um crédito diferenciado para uma empresa que está alinhada com essa agenda em detrimento de outra.
São dois tipos de capital diferentes, mas a gente precisa tirar o capital da velha economia para vir para a nova.
Hoje você atua no setor privado, mas já atuou com o setor público. Como foi essa experiência?
Durante toda a FGV eu fui da Júnior Pública [departamento da FGV que atua com projetos de consultoria e gestão para o setor público e social], fazia muita consultoria para governos, prefeituras etc.
Já era muito claro pra mim que se eu queria contribuir para as coisas em escala, tinha um espaço para trabalhar com a melhoria da gestão pública, com a melhoria da política pública
Então, durante a FGV fui fazendo o modelo de negócios do que virou meu primeiro empreendimento, o Instituto Tellus, que nasceu como um negócio social com a proposta de levar o olhar de inovação para as políticas públicas, ajudando prefeituras, governos estaduais e federal a repensar um serviço público de saúde e educação.
No final de 2013, quando eu já estava há quatro anos na organização, fui convidada para liderar o desenvolvimento do programa de educação financeira do Bolsa Família.
Foi uma oportunidade de rodar o Brasil, ir na casa dessas famílias – e cocriar com elas as tecnologias sociais para apoiar na gestão dos recursos do benefício para que elas construíssem uma visão de mais longo prazo, começassem um micro empreendimento.
No outro extremo, você também trabalhou com grandes fortunas?
Na mesma época, tive o convite do ex-presidente Fernando Henrique [Cardoso], junto com a Daniela Rogatis, que é uma das principais educadoras de famílias empresárias, para trabalhar no programa Legado para a Juventude Brasileira.
A tese deles era que se essa geração ligada a famílias empresárias não tivesse uma visão comum de Brasil, a gente nunca ia poder contribuir para que o Brasil se realizasse como potência.
Então, muito da ideia desse programa era criar uma visão do que o Brasil pode ser na lógica do século 21, onde estão as oportunidades para o Brasil, inclusive criar um modelo de desenvolvimento socioeconômico que gere e distribua riqueza baseado nos ativos naturais que o país tem
O programa era basicamente uma formação para esses jovens se conectarem com o passado, presente e potencial futuro do Brasil e começarem a trazer suas famílias para coordenar seus investimentos ou seus negócios na direção dessa realização de país.
Durante quatro anos, começo de 2014 e final de 2018, eu fiquei me dividindo entre essas duas experiências. Uns dias na semana trabalhando com a extrema pobreza, rodando o Brasil. Outros dias da semana trabalhando com as grandes famílias empresárias brasileiras
Você acha que tem uma disponibilidade dessas famílias de ter esse olhar mais voltado para o impacto positivo?
Sim. Inclusive, vai ter um painel no evento só contando de algumas das iniciativas que essas pessoas estão empreendendo e são super transformadoras. E acho que não só a geração mais nova traz isso, mas também as mais velhas. Esse tema não fica mais fora da pauta do conselho, dos acionistas, das famílias.
Você é filha de um médico e uma dentista. Queria entender um pouco como chegou nesse trabalho de buscar financiamento e escala para soluções climáticas?
Quando eu nasci, meu pai estava fazendo residência na Santa Casa de São Paulo, então grande parte da minha infância foi correndo ali no meio do hospital público e vendo os desafios, as desigualdades sociais, os desafios do serviço público.
Minha família é super católica também e fazia muito trabalho voluntário. Então, sempre tive esse olhar para o mundo, para o outro e queria contribuir, de alguma forma, com as soluções para os desafios sociais e ambientais.
Fui fazer administração em 2006 e na minha turma estava o Antônio Moraes Neto, que veio depois a fundar a Vox Capital. Lembro até hoje do dia que a gente foi numa padaria comer um PF e ele me contou quem era o Yunus, o que era o conceito de negócio social, negócio de impacto
Eu peguei uma turma na FGV em que estava muito emergente essa vontade de encontrar nos negócios uma forma de resolver, com o olhar de mercado e de escala, essas grandes questões do mundo.
Apesar de nascida em São Paulo, sua família é de Piracicaba, onde tem uma rede de drogarias. Como isso te influenciou?
Meu avô, que já faleceu, tinha um papel muito importante na cidade como empresário engajado com as pautas sociais. Temos um instituto que leva o nome do meu avô, José Cançado, que tem um papel super importante não só em Piracicaba, mas nas outras cidades onde atua. Então, não tenho dúvidas de que esse olhar empreendedor vem do meu avô.
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