Antigas salas luxuosas de cinema transformando-se em igrejas ou estacionamentos é algo absolutamente esperado, evento hoje incapaz de indignar até mesmo os cinéfilos.
Porém, o inverso exato, estacionamentos virando salas de cinema, waaal: isso é tão raro quanto ganhar seguidamente na loteria quando não se é parlamentar do Centrão.
Encostado ali na praça da República, no Centro de São Paulo, o Cineclube Cortina surgiu em julho de 2022 dos escombros das garagens de um edifício de cinco andares , vizinho ao icônico edifício Eiffel, desenhado por Oscar Niemeyer.
Ainda antes da pandemia, os três sócios – os amigos publicitários Marcelo Sarti, Paulo Vidiz e Rapha Barreto – palmilharam diversos quarteirões do Centro e de alguns poucos bairros com características similares, como Santa Cecília e Barra Funda, em busca do local ideal para abrigar o espaço que tinham em mente.
O trio imaginava um pequeno complexo de entretenimento, no qual a “frente” gastronômica e de baladas teria a função de bancar a sala de cinema, o fetiche-mor, que sempre viram como insustentável financeiramente.
Encontraram esse estacionamento, com 1 100 m2 e dois níveis, em que decidiram entrar com tudo: a jogada foi comprar, e não alugar, para garantir que a casa não tivesse eventualmente de mudar de endereço por conta dos maus bofes de um senhorio qualquer na hora da renovação (a valorização do imóvel, claro, também entrou na conta).
A localização no Centro acabaria servindo para dar um match com algo que Marcelo, um dos sócios da casa, diz ter se tornado a marca de distinção do Cortina: a pluralidade de públicos.
“O Centro é o lugar mais diverso de São Paulo, a região mais pulsante da cidade”
Além disso, ter fundado o empreendimento ali, no que chamam de (antiga) “Cinelândia”, é muito conveniente para o storytelling da empresa: por várias décadas do século 20, a região abrigava alguns dos melhores e maiores cinemas da capital paulista.
O projeto era complexo, e não apenas esteticamente, mas também por certos desafios técnicos. O som do bar, no andar superior, por exemplo, não poderia vazar para a sala de cinema, e vice-versa.
Para dar conta do desafio, os sócios contrataram um renomado escritório de arquitetura: o Metro, de Gustavo Cedroni, que neste momento projeta o grande anexo do Masp na avenida Paulista.
Com entrada independente, a sala de cinema tem espreguiçadeiras de praia, de madeira (bancadas pela Heineken), e uma arquibancada, que somadas acomodam 75 pessoas. Caberia mais gente se houvesse poltronas fixas, mas isso impediria o aproveitamento do espaço para as festas e os shows que rolam ali todas as sextas e sábados, e que recebem até 500 pessoas por noite.
As poltronas tampouco permitiram prover a experiência que é um dos traços de distinção do Cortina: durante as sessões de cinema, bebidas e refeições do cardápio são servidas, algo evidentemente muito além do combo pipoca-soda dos cinemas convencionais.
Quando há festas ou shows, abre-se a cortina de veludo de 25 metros (e com proteção acústica) e a parede em que o filme é projetado pode servir de fundo infinito para a banda ou o DJ que ocupa o palco.
ALÉM DAS FESTAS E BALADAS, O ESPAÇO EXIBE FILMES EM CARTAZ NO CIRCUITO COMERCIAL
A opção pelas espreguiçadeiras e a posição delas tentam dar conta da necessidade de ter os lugares em desnível como em qualquer cinema, para que os espectadores da frente não atrapalhem a visão de quem senta atrás. Aqui, é a regulagem de altura das cadeiras que facilita isso – ao menos em parte, já que o piso é nivelado.
Embora se identifique como cineclube por montar mostras temáticas, o Cortina exibe filmes do circuito comercial, não raro ao mesmo tempo em que estão em cartaz.
Em março, um ciclo dedicado ao diretor alemão Wim Wenders, por exemplo, tinha como atrações seu inescapável clássico Asas do Desejo (de 1987), e também o recentíssimo e singelo Dias Perfeitos, então em exibição em diversos cinemas da cidade, e indicado ao Oscar deste ano de Melhor Filme em Língua Estrangeira.
O Cortina assina uma licença ALDA, comum no setor, que lhe permite a exibição comercial de filmes de diversos estúdios. Filmes mais antigos, usualmente mais baratos, têm de ser negociados caso a caso.
Antes de inaugurar o Cineclube Cortina, a experiência de Marcelo com negócio próprio se limitava a ter gerenciado por curto tempo o Pasárgada, finado restaurante do pai advogado em Moema; e, mais recentemente, um restaurante de comida funcional dentro de uma academia de ginástica.
Ele diz que, na hora de montar o novo empreendimento, ele e os sócios precisaram “colocar na balança” as virtudes e as mazelas do Centro. Ganharam as virtudes.
“O Centro é um lugar extremamente inclusivo, descolado, que dita tendência, que tem tudo a ver com a proposta da casa, que abre espaço para um monte de tribos e manifestações culturais diferentes”
O staff parece emular um pouco dessa inclusão, com visível diversidade no atendimento do bar/restaurante, por exemplo, ainda que a contratação não tenha sido dirigida para esse fim (“Foi um processo completamente natural”, diz Marcelo).
Há também grande pluralidade nas atrações do pequeno palco do bar e no line-up da sala de cinema quando esta vira balada. Já houve, por exemplo, uma edição “de bolso” do baile funk da DZ7, o famoso baile de Paraisópolis, e são comuns as noites de eletrofunk, com Daft Punk sendo servido em doses generosas nas caixas acústicas.
Se ganharam as virtudes do Centro, cumpre identificar as mazelas no outro prato da balança.
Elas incluem a multidão de pessoas em condição de rua; a insegurança com o espalhamento dos usuários da Cracolândia após as constantes e desastrosas operações policiais; os furtos e roubos de celular da gangue da bicicleta, que até meados do ano passado operava sem cerimônia por ali (“a gente conhecia a molecada [que assaltava] pelo nome”, diz Marcelo).
E, talvez mais importante, a insegurança psicológica que tudo isso vai incutindo no paulistano – ou no forasteiro.
“Existe um estigma aqui. Há pessoas que vão a qualquer lugar mas não pisam no Centro, pois acham que vão chegar na região e vão ser espancadas, esfaqueadas, vão tomar tiro na cara. É claro que não é assim”
De fato, a vizinhança está cada vez mais atraente. Apesar de se falar de revitalização do Centro desde pelo menos 1991 (quando nasceu a organização Viva o Centro, com esse fim), a região vive um efetivo “momento de valorização”, com a chegada à região de dezenas de bares, restaurantes e casas de entretenimento.
A poucos passos do Cortina fica o “cluster” de restaurantes Casa do Porco/Dona Onça, de Janaína Torres Rueda, consagrada em março a melhor chef mulher do mundo segundo o prestigioso ranking da 50 Best/S. Pelegrino.
E a cena não para de ganhar novos “entrantes” como os restaurantes Cuia (dentro do edifício Copan, junto da livraria Megafauna) e seu vizinho Orfeu; a rediviva boate Love Story (agora rebatizada de Love Cabaret e sob o comando de Facundo Guerra); a casa de jazz Jazz B; o bar Gaspar e o complexo de bar, balada e karaokê Tokyo. Tudo a meros 500 metros de distância do Cortina, se tanto.
Há ainda aparelhos culturais de grande porte pela região, como o Sesc 24 de Maio, inaugurado em 2017, e os bem mais idosos Teatro Municipal e Galeria do Rock – este agora estreou um rooftop.
Essa concentração de atrações criou espontaneamente uma clara zona de interesse turístico e cultural, não tão clara, aparentemente, para o poder público.
Marcelo critica a “falta de iniciativa” em “divulgar tanta coisa legal” e olhar de maneira mais sistemática para o Centro. Não há, por exemplo, um roteiro turístico estruturado para forasteiros ou mesmo para os paulistanos menos acostumados à região.
Uma ação mais ativa dos próprios empresários, esboçada inclusive na contratação de segurança privada comum, anda a passos lentos.
“Várias iniciativas foram discutidas entre os empresários de entretenimento da região, mas confesso que tudo está indo num ritmo menos acelerado do que seria conveniente”
Como quem fica parado é poste, como dizia o colunista José Simão, o Cortina se mexe. Acaba de trocar ventiladores por aparelhos de ar-condicionado na área superior, a dos bares e restaurantes.
Além disso, os sócios estudam uma renovação do cardápio gastronômico, hoje dedicado a uma cozinha de inspiração paulista, influenciada pela imigração e pelos antigos costumes tropeiros.
Marcelo diz que quase sempre teve muito prazer em sua carreira nas grandes agências de publicidade de São Paulo, em que atuou no atendimento, mas deixa claro que a experiência no Cortina tem outra dimensão.
“É muito legal estar por trás de um lugar que marca instantaneamente a vida das pessoas. Na propaganda, apesar de eu adorar, é tudo mais distante, e às vezes a gente trabalha com produtos com os quais falta alinhamento de propósito”
Em sintonia com essa ideia de “marcar a vida das pessoas”, a coquetelaria alude a filmes e séries memoráveis, mesclando drinques clássicos e receitas autorais; a carta hoje é assinada pela argentina Chula Barmaid, que se destacou no Bar dos Arcos, no porão do Teatro Municipal.
O white russian adorado pelo protagonista de O Grande Lebowski, dos irmãos Coen, e o cosmopolitan das amigas nova-iorquinas de Sex and the City (aqui em versão tropicalizada, com cachaça) ganham a companhia de releituras etílicas do cinema latino-americano, como Gabriela, Cravo e Canela, com rum, abacaxi e cachaça; O Segredo dos Seus Olhos (bourbon e vermute); e Amores Brutos (purê de ameixas, fernet e uísque single malte).
“Quem vem aqui quer ter uma experiência incrível”, diz Marcelo. “Sair extasiado após um show, e ficar surpreso – e satisfeito – com um drinque diferente.”
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Allan e Símon Szacher empreendem juntos desde a adolescência. Criadores da Zupi, revista de arte e design, e do festival Pixel Show, os irmãos agora atendem as marcas com curadoria, branding, vídeos e podcasts através do estúdio Zupi Live.