Um restaurante-escola sustentável que serve pratos com ingredientes orgânicos, de produtores periféricos e 100% de origem vegetal, além de fazer o aproveitamento total dos alimentos e ser um espaço lixo zero.
Assim é o Da Quebrada, resultado de um “casamento” entre a Gastronomia Periférica (GP) e a Mãe Terra, marca de produtos naturais e orgânicos.
O restaurante é mais um dos projetos da GP, negócio com foco na transformação social por meio da gastronomia, que conta com diversas outras ramificações — de serviço de catering (o Rango) e produção de conteúdo para marcas a um app que mapeia todos os empreendedores gastronômicos das quebradas de São Paulo.
O principal projeto, porém, é a Escola de Gastronomia, que oferece duas formações completas e gratuitas (Cozinha e Empreendedorismo; e Cozinha Profissional) para jovens e adultos da periferia de São Paulo, em especial, mulheres negras. Desde 2018, a iniciativa — que inclui aulas presenciais e online — já formou mais de mil pessoas.
A formação dura seis meses. Concluído esse período, é hora de pôr a mão na massa. É aí que entra em cena o Da Quebrada: o restaurante-escola, localizado na Casa Mãe Terra, na Vila Madalena, zona Oeste de São Paulo, acolhe as alunas durante um estágio de mais seis meses, em que elas aprimoram os aprendizados do curso.
Você pode estar se perguntando: da quebrada, mas na Vila Madalena? O chef Edson Leite, cofundador da Gastronomia Periférica ao lado da psicóloga e educadora Adélia Rodrigues, explica:
“A gente acredita que a quebrada tem que estar em todos os espaços — e não só trabalhando neles, mas curtindo também. Quando questionam o Da Quebrada estar na Vila Madalena, eu sempre digo que, na verdade, a gente pode estar no lugar que quiser”
O Da Quebrada foi inaugurado em setembro de 2022 e, desde o início da operação, mais de 30 alunas já fizeram estágio no estabelecimento e se encaminharam, seja abrindo o próprio negócio, trabalhando em outros restaurantes ou mesmos sendo absorvidas na equipe da GP.
A GP surgiu em 2012 como uma oficina. E em 2018, ampliou o modelo para a Escola de Gastronomia:
“A ideia surgiu como uma provocação para o setor gastronômico, que nunca pagou para formar funcionários, mas sempre exigiu profissionais capacitados. Como é que você quer uma pessoa capacitada se nunca aportou no setor de formação?”
A GP passou então a convidar empresas, como Carrefour, para se tornarem parceiras e patrocinarem essas formações, independente de absorverem ou não os alunos em suas equipes após os cursos.
Muitas das alunas que já passaram pelo projeto acabaram sendo contratadas pela própria GP ou receberam apoio do Trampo, serviço de empregabilidade do negócio para direcionar as formadas a parceiros.
Durante a pandemia, por conta da necessidade de distanciamento social, a Escola de Gastronomia lançou uma plataforma EAD e hoje o modelo da formação é híbrido, com aulas online e a parte prática acontece no Da Quebrada. Os selecionados para os cursos recebem auxílio-internet, ajuda de custo para compra de insumos e mentoria durante a capacitação.
Em 2018, a Gastronomia Periférica ajudou a construir um restaurante no Jardim São Luís, na zona Sul, durante uma formação oferecida a jovens e adultos da comunidade. “Estruturamos o local, fizemos toda a cozinha e depois o restaurante foi entregue a um parceiro, uma ONG que atua ali.”
O negócio social também desenvolveu uma cozinha coletiva junto com a Hellmann’s, da Unilever, e o Instituto Bacarelli, dentro da favela de Heliópolis, também na zona Sul.
“Fizemos a gestão desse restaurante e formamos uma turma de 20 alunas, sendo que 15 estão hoje atuando dentro dessa cozinha. E quem toca agora esse projeto é um outro parceiro”
Por fim, a ideia do Da Quebrada surgiu de uma proposta da Mãe Terra, ainda antes da pandemia. A marca de produtos naturais desejava lançar um café no espaço que servia de escritório da empresa, na rua Harmonia, 271.
A GP foi modelando o projeto e ampliou a proposta do café para a de um restaurante, que também servisse de espaço cultural e de formação.
Pensando no que faria sentido para a marca parceira, a GP decidiu que o menu do Da Quebrada seria composto por pratos sem nada de origem animal e, além de usar os ingredientes da própria Mãe Terra, compraria seus insumos e demais produtos à venda no local de pequenos fornecedores e empreendedores da periferia.
Portanto, não há um cardápio fixo no estabelecimento. O menu varia todo o dia e depende da sazonalidade dos ingredientes e da disponibilidade dos fornecedores, como o Sítio Nossa Vida, de Parelheiros (zona Sul), e o Instituto Chão, também na Vila Madalena.
“Hoje o Sítio Nossa Vida é o nosso principal fornecedor de hortaliças, inclusive nas formações, pois as alunas vão lá entender de onde vêm os alimentos. A gente tem um controle total dessa cadeia, porque tudo chega direto do produtor no restaurante, sem atravessador”
Diante da variabilidade de ingredientes, as estagiárias, alunas da Escola de Gastronomia, sob orientação de educadores, têm liberdade criativa para definir café da manhã, almoço e lanche da tarde. (O menu de cada dia pode ser consultado no destaque do Instagram; os pratos custam cerca de 30 reais.)
“Além dos ingredientes variarem a cada dia, as pessoas têm que entender que é um restaurante escola, são pessoas diferente cozinhando, então o gosto, o tempero também apresentam essa variedade”, comenta Edson.
Entre as criações de pratos, porções e sobremesas já servidas estão feijoada com tubérculos, macarrão com legumes e molho oriental, bobó de palmito, jacalhoada (bacalhoada de jaca), nhoque de batata doce roxa, peixinho da horta com molho de hortelã, kibe de abóbora, pudim de pão etc..
Um outro ponto importante desse modus operandi do Da Quebrada é o aproveitamento total dos alimentos, uma proposta que vem da própria Escola de Gastronomia. Cascas e talos, por exemplo, são usados na preparação dos pratos.
E o que não pode ser aproveitado ou os resíduos orgânicos são enviados para a composteira do restaurante, que fica no subsolo do estabelecimento. (O local conta com três andares, sendo que o terceiro abriga a cozinha-show para formações e gravações de aula e espaço para eventos; o segundo um coworking; e o primeiro, o restaurante).
No Da Quebrada é possível encontrar um PDV da Mãe Terra e uma lojinha com itens de pequenos produtores, como pimentas e molhos da Soul Brasil, parceira no ensino de produção de pimentas em conserva.
Na lojinha ainda há cerâmicas da Baluarte, associação de ceramistas de São Bernardo do Campo (SP), usadas no dia a dia do restaurante, além de livros, camisetas e bonés de negócios da periferia.
“A ideia é fazer com que a grana da quebrada fique na quebrada”
Nas geladeiras, os frequentadores podem escolher bebidas de pequenos produtores, como as da Companhia dos Fermentados, Kiro e Pokazidéia, marca de cerveja artesanal do próprio Edson à base de azedinha plantada por pessoas da periferia.
A cada ciclo de estágio, seis alunas trabalham na cozinha do Da Quebrada, fora as que são contratadas para fazer eventos e o serviço de catering da GP.
Durante esse período, elas trabalham de terça a sábado, em revezamento de turnos de seis horas (o restaurante funciona das 8h às 16h) e recebem um salário mínimo de pagamento e vale transporte.
“É importante a gente mostrar para esse setor que é possível trabalhar com dignidade num horário que seja bacana e as coisas funcionem”
Entre as mais de 30 estagiárias que já passaram pelo Da Quebrada, há histórias como a da Simone. “Ela foi aluna da nossa primeira turma, acabou sendo efetivada como supervisora de estágio e hoje dá aula no Instituto Capim Santo”
Ou a da Sandrinha, que trabalha em uma cozinha de formação na zona Leste da Fundação Tide Setubal.
“Todas as histórias dessas estagiárias são acompanhadas de perto. Sabemos o nome, sobrenome, aonde moram, qual é a realidade delas e como vão se transformando no processo de profissionalização”, diz Edson.
Pontualmente, o Da Quebrada está experimentando abrir seu espaço de noite, alugando o estabelecimento para eventos particulares ou acolhendo festas, como a Sintonia.
“Estamos ainda testando para ver qual será essa recorrência. E que bom que a gente consegue testar coisas agora, porque sempre ficamos correndo atrás de tudo antes para pagar as contas”
O que é garantia de recorrência na casa é a realização de eventos aos sábados pela manhã e de tarde, como o “cafoço” (versão aportuguesada do brunch, ou seja, mistura de café e almoço) e a “feijuca com samba”.
O restaurante costuma organizar eventos que incentivem o desenvolvimento periférico, abordem questões de saúde mental e outros temas relevantes para a comunidade.
Vira e mexe também recebe visitas ilustres interessadas em entender e divulgar a missão do negócio, como o deputado federal Guilherme Boulos (PSOL), o ministro dos Direitos Humanos e Cidadania Silvio Luiz de Almeida e o ativista indígena Ailton Krenak.
Edson comenta que a equipe enfrentou alguns desafios para fazer o restaurante-escola acontecer na Vila Madalena.
“Um deles foi conseguir ficar ali tranquilos para realizar o evento sem que os vizinhos chamassem a polícia por conta do som de um samba uma vez por mês à uma hora da tarde. E isso aconteceu durante o ano passado quase inteiro.” Para resolver a situação, ele conta que chamaram os vizinhos para conversar:
“Convidamos os moradores para tomar um café e entenderem o projeto, discutirem soluções. A gente está ali não apenas como um restaurante, mas como parte de um processo de mudança de pessoas”
Outro desafio foi fazer com que o lugar fosse economicamente viável, afinal a Vila Madalena não é uma região barata…
“Um produtor que está em Parelheiros e precisa entregar seus produto na zona Oeste da cidade leva pelo menos duas horas de viagem. As meninas que moram nas bordas da cidade também sofrem para chegar e, muitas vezes, enfrentam greves de transporte”, diz. “É importante ocupar esse lugar e pensar em como a gente pode fazer todo esse ecossistema ser menos pesado para essas pessoas.”
…MAS AS CONQUISTAS MERECEM SER CELEBRADAS
Os esforços até aqui renderam frutos. “O Da Quebrada é um restaurante que tem o Selo Sampa + Rural, da Prefeitura de São Paulo, o reconhecimento de veículos como Veja e Folha de S. Paulo, e do público como um lugar que funciona, que é importante para a sociedade”, diz Edson.
“Essas são conquistas que a gente precisa comemorar, senão a gente só trabalha, né?”
E agora, este ano, mais uma conquista para a Gastronomia Periférica, que lançará um outro restaurante-escola em Brasília, o Via Satélite, em parceria com o Sindicato dos Bancários.
“Será um restaurante de biomas brasileiros em que as alunas da periferia formadas em Ceilândia poderão estagiar num formato muito parecido com o Da Quebrada, contando com insumos de produtores de assentamentos e fornecendo uma refeição a preço justo para quem trabalha na Asa Sul, que a gente brinca que é a Vila Madalena de Brasília.”
O bagaço de malte e a borra do café são mais valiosos do que você imagina. A cientista de alimentos Natasha Pádua fundou com o marido a Upcycling Solutions, consultoria dedicada a descobrir como transformar resíduos em novos produtos.
O descarte incorreto de redes de pesca ameaça a vida marinha. Cofundada pela oceanógrafa Beatriz Mattiuzzo, a Marulho mobiliza redeiras e costureiras caiçaras para converter esse resíduo de nylon em sacolas, fruteiras e outros produtos.
Desconstruir mitos e fórmulas prontas, falando a língua de quem vive na periferia: a Escola de desNegócio aposta nessa pegada para alavancar pequenos empreendedores de São Miguel Paulista, na zona leste de São Paulo.