Em 2023 as vendas de substitutos vegetais de carnes e frutos do mar cresceram 38% no Brasil, comparado ao ano anterior, atingindo 1,1 bilhão de reais, segundo a Euromonitor. O valor é quase o dobro do faturamento inicialmente projetado para 2025, conforme contamos em uma reportagem aqui no Draft, em março de 2021.
A evolução desse mercado é uma ótima notícia para o planeta. A pecuária, incluindo a plantação de soja para produzir ração animal, tem grande impacto ambiental. De acordo com o Observatório do Clima, 74% das emissões de gases de efeito estufa do país decorrem do uso da terra.
“Oitenta e cinco por cento das terras aráveis do planeta estão produzindo animais ou ração para esses animais – as monoculturas de soja e de milho”, diz Gustavo Guadagnini, diretor da The Good Food Institute (GFI) no Brasil.
Com dois eventos de cúpula no horizonte — a reunião do G20, em novembro, no Rio de Janeiro, e a 30ª Conferência das Partes sobre o Clima, a COP30, em Belém, em 2025 —, o Brasil deverá ser cobrado em relação a medidas para reduzir o desmatamento. E a resposta a esse desafio, diz Gustavo, passa pela alimentação.
“Da mesma forma que a COP da Arábia Saudita teve que discutir sobre os combustíveis fósseis, o Brasil vai ter que discutir sobre a cadeia de produção de alimentos. Não existe um sucesso na posição que o Brasil tem em negociações globais do clima que não passe por isso”
Criada em 2016 nos Estados Unidos, o The Good Food Institute (GFI) trabalha no desenvolvimento do mercado de proteínas de base vegetal que mimetizem produtos de origem animal; carnes, couro, leites e derivados produzidos em laboratório; e fermentação de fungos, como cogumelos.
A organização sem fins lucrativos — mantida com recursos de bilionários como Jeff Bezos, Bill e Melinda Gates — financia pesquisas de ingredientes e tecnologias de produção e preparo de alimentos, estimula a criação de políticas públicas e realiza engajamento corporativo junto à indústria de alimentos.
O GFI Brasil tem 28 funcionários, incluindo Gustavo e a doutora em biologia celular e molecular Amanda Leitolis. A seguir, os dois falam sobre os avanços da tecnologia na produção de proteínas vegetais (e mesmo de carne cultivada em laboratório), a atuação do instituto e os próximos passos da indústria:
Como está o mercado de proteínas de base vegetal hoje, comparado há três anos?
GUSTAVO: Nossas pesquisas de consumidores mostram que tem aumentado a quantidade de pessoas que reduzem o seu consumo de carne. Essa mudança de hábitos está ligada a diversas razões.
Conforme o preço da carne aumenta, as pessoas migram para o ovo, o frango, mas também para uma alimentação de base vegetal. E também devido a questões de sustentabilidade e de saúde. É uma tendência que continua se confirmando
Há um crescimento do mercado, mas não o suficiente para entrar em 30 empresas ao mesmo tempo. Então, a tendência é de consolidação. Algumas dessas empresas vão se unir, algumas podem sair do mercado.
Isto está ligado à crise de acesso ao capital por parte das startups em geral que estavam sendo muito financiadas por investidores, que colocaram o pé no freio. As pessoas seguem abertas a esse tipo de consumo.
Por que o mercado de produtos plant-based procura fazer imitações da proteína animal em vez de destacar os vegetais nas suas fórmulas?
GUSTAVO: Por necessidade de causar um impacto. Durante muito tempo o foco foi em mudanças alimentares, falar para as pessoas comerem mais vegetais, que é uma prática muito saudável. São campanhas que fazem sentido, mas que não se mostraram eficientes.
A produção e o consumo de carne continuaram crescendo ao longo do tempo e as previsões é que vão produzir cada vez mais porque a carne está ligada à cultura das pessoas.
A teoria de mudança do setor de proteínas alternativas nasce nos desafios da produção de carne. Hoje, a produção de animais representa 21% de todas as emissões de gases de efeito estufa no mundo, 80% do desmatamento da Amazônia, e 45% do plástico nos oceanos são redes de pesca
Além disso, a produção de animais ocupa muito espaço: 85% das terras aráveis do planeta estão produzindo animais ou ração para esses animais – as monoculturas de soja e de milho.
Para cada caloria que se tira da carne são pelo menos 10 calorias que são dadas para o animal ao longo da vida. Isso significa que a gente joga fora 90% das calorias produzidas no sistema de alimentação quando se fala especificamente da carne. Esse é o problema social.
Além disso, essas produções de animais estão gerando novas doenças zoonóticas: gripe aviária, gripe suína. O CDC [Centro de Controle e Prevenção de Doenças] dos Estados Unidos divulgou recentemente o segundo caso de gripe aviária que passou para o gado e depois passou para os seres humanos (H5N1) – e assim nascem novas pandemias.
Mais de 60% das novas doenças infecciosas estão nascendo das produções de animais, que têm uso intensivo de antibióticos e isso gera resistência microbiana
Além disso, tem a própria causa animal que toca muitas pessoas: quase 70 bilhões de animais terrestres e trilhões de animais aquáticos todos os anos sendo explorados.
Mas a maior parte das pessoas não é aberta a trocar esses sabores porque a comida é a coisa mais cultural que existe: carrega tradição, familiaridade, a maneira como a gente se relaciona com os nossos amigos e familiares.
Se a gente pensar nas datas festivas, por exemplo, recentemente foi Páscoa: quem come bacalhau não está disposto a comer “batalhoada”, que vai ter batata no lugar do bacalhau.
Que evoluções tecnológicas e científicas estão permitindo o desenvolvimento de proteínas alternativas?
AMANDA: No plant-based, tem produtos cujo objetivo é juntar determinados ingredientes para construir sabor, textura, o modo de preparo análogo ao da carne.
A gente evoluiu muito no Brasil em termos de aparência, textura e sabor. E há outras tecnologias.
A carne cultivada [em laboratório] se trata de carne animal produzida por um processo diferente: a gente consegue tirar a célula do animal, manter essa célula viva, proliferar, preparar o tecido muscular e elaborar a carne no final do processo
É muito disruptiva porque se faz o mesmo produto por um processo totalmente novo para alimentos, mas que já se conhece muito bem na indústria farmacêutica e pesquisa científica em geral. Há um conhecimento acumulado de 100 anos de cultivo celular, recentemente transferido para produzir alimentos.
Os novos desafios agora são produzir células para alimentos numa escala que a gente nunca produziu antes para vacinas e medicamentos. Então, é preciso adaptar os insumos, as estruturas e as competências dos cientistas e desenvolvedores.
A Inteligência Artificial se aplica para a área de carne cultivada e para proteínas alternativas em geral, para se chegar mais rapidamente nas formulações tanto no produto final, quanto na otimização do processo
Na carne cultivada um processo completo da célula até o produto final é de quatro a seis semanas. Com uma IA, se pode desenvolver um processo mais eficiente para o tipo de carne que se queira produzir e tomar decisões mais assertivas ao longo do desenvolvimento da tecnologia.
GUSTAVO: O plant-based, basicamente, é uma proteína vegetal, uma gordura e uma fibra. Por exemplo, a proteína de ervilha, a proteína de soja, a proteína de grão de bico, a gordura vegetal do óleo de coco, do óleo de palma, e para fibras pode ter outros ingredientes ali, dependendo do tipo de produto que se está fazendo. Se for um quibe vai ter aromas naturais também, a fumaça, um aroma natural de defumado.
Essas pesquisas começaram acontecendo fora do Brasil, então há ingredientes importados. Plantas otimizadas para determinados fins. Por exemplo, soja plantada para fazer óleo de soja é um tipo de soja; se for para alimentação animal é outro tipo de soja. Depois tem a tecnologia de extração. Uma proteína isolada não é a coisa mais simples do mundo – por exemplo, se for um leite vegetal, ela tem que ser solúvel.
Por isso o GFI investe tanto em pesquisa. Nosso objetivo é a diversificação das fontes de matérias-primas, com impacto ambiental e social muito melhor
Por exemplo, no caso do feijão, o produtor tem o feijão quebrado que muitas vezes é desperdiçado porque não está no padrão pro consumidor. Mas ele pode ser processado para extrair a proteína dele, isolar e ter aí um novo ingrediente de altíssimo valor agregado.
Então, só falta mais pesquisa científica pra gente ter esses produtos disponíveis no Brasil.
Dá para fazer no laboratório todas as partes animais que as pessoas comem? Bacon, asinha, picanha…? E o resultado final fica mais saudável?
AMANDA: Em teoria, tudo que for derivado animal, alimentício ou não usado para indústria de alimentos, se pode fazer pelo cultivo de células. Qualquer tecido tem células: pele, músculo, gordura, bochecha.
A célula inicial escolhida vai ser determinada pelo que se quer produzir no produto final. Além da carne, também se pode fazer outros produtos agropecuários. A gente chama de agricultura celular. Por exemplo: couro, pele, leite. Isso é possível de ser feito – e já está sendo feito.
Basicamente, qualquer coisa que você imaginar sobre pescado, frango, bovino, já tem alguém trabalhando para tentar estabelecer a rota tecnológica para chegar ao produto final. Isso já é uma realidade, não é uma coisa para o futuro
No Brasil, existem protótipos nacionais de duas empresas: a cellva, que produz gordura cultivada, e a Sushi Neri Pieces, que produz pescado cultivado. Esses dois foram apresentados em eventos de degustação. A Embrapa Suínos e Aves, de Concórdia (Santa Catarina), também tem um protótipo, e a UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) também.
Já tivemos aprovações, não aqui no Brasil, mas em outros países, então não é mais algo futurista no sentido que ainda vai acontecer. Já está acontecendo.
GUSTAVO: Sobre regulamentação, no finalzinho do ano passado a Anvisa apresentou o caminho regulatório – o que as empresas precisam para pedir para a Anvisa verificar um produto. Agora se sabe o tipo de testes que elas têm que fazer e aí vai começar os processos regulatórios.
Tem algumas empresas se desafiando para ter permissão já pra esse ano. Não saindo esse ano, sai ano que vem. Em breve a gente vai ter alguns produtos aprovados, ou pelo menos o processo sendo submetido.
Sobre saudabilidade, a carne é um produto muito alto em colesterol, em gordura saturada, a mesma coisa nos queijos… então, a substituição [por alternativas plant-based] já tem um valor nutricional melhor, em média de mercado
Mas se você está entregando uma linguiça, as pessoas têm a expectativa de que ela tenha gordura; se está entregando uma manteiga, a manteiga vai ser feita a partir de uma gordura.
Quando você pensa na pirâmide alimentar, esses produtos substitutos vão ocupar o mesmo lugar que as carnes e os laticínios: o topo da pirâmide, aqueles produtos que você não pode consumir livremente.
Não é porque é vegetal que ele vira uma salada, certo? Então, tem que consumir com moderação.
AMANDA: Pensando na carne cultivada, à medida que a gente consegue customizar o produto final, em todos os elementos, se pode produzir uma carne sem colesterol, ou incluir algum tipo de ingrediente que seja benéfico nutricionalmente.
Se é um bacon, vai ter que ser um produto com gordura, mas a gente pode customizar para que ele tenha um perfil de lipídios diferente do produto animal. Mas a experiência, ela precisa ser reproduzida para quem vai comer esse produto.
Como é a atuação do GFI? Vocês ajudam as empresas a inovar também? A BRF estava para fazer um lançamento, a JBS está estudando…
GUSTAVO: O GFI é uma ONG que trabalha como think tank. Nosso objetivo é promover o desenvolvimento do setor.
Olhando para a turma do clima, aquelas pessoas que tentam trabalhar para que se desenvolvam formas alternativas de se produzir energia, que não seja um combustível fóssil, o GFI faz para o setor das carnes
A gente trabalha com três áreas. Uma delas é o engajamento corporativo. A nossa relação com as empresas é muito mais de fornecer dados de mercado, pesquisas de consumidor, pesquisas sobre o que as empresas não estão pesquisando e que deveriam pesquisar. Mas a gente não tem um trabalho de consultoria direta, nem de trocas financeiras com as empresas. A gente oferece dados a respeito do mercado para trazer mais investimento para o setor.
A segunda área é ciência e tecnologia. O objetivo é ajudar a academia e os cientistas a fazer mais pesquisa. Hoje a nossa maior ferramenta é um programa de editais. A gente capta dinheiro e patrocina pesquisas.
Aqui no Brasil, tem 31 projetos que a gente financiou, um valor total de 12 milhões de reais. Temos três rodadas digitais, especificamente com ingredientes brasileiros, da Amazônia e do Cerrado. E globalmente são 118 projetos, em 21 países e 21 milhões de dólares.
O Brasil foi a primeira unidade – a gente chama de afiliado – fora dos Estados Unidos. Trabalhamos de maneira independente, voltados para a mesma missão e usando o mesmo nome
Também estamos em Israel, Índia, Ásia, Pacífico e Europa. Ajudamos universidades a trazerem o tema para dentro, entender como ensinar para os alunos, criar cursos.
E em políticas públicas – nossa terceira área —, trabalhamos com os governos. Quais os dados que a Anvisa precisa para regular esse setor? Precisa de um estudo de impacto regulatório. Então, a gente faz um edital. Nesse caso, quem ganhou foi o Ital, Instituto de Tecnologia de Alimentos, e eles fizeram esse estudo que nós oferecemos para a Anvisa usar como embasamento para o regulatório.
Obviamente, a Anvisa tem outros pontos de dados que coleta para isso. A gente trabalha com o Ministério da Ciência e Tecnologia para entender como evoluir a ciência disso no Brasil, com o Ministério da Agricultura e da Pecuária, o Ministério do Desenvolvimento Industrial para criar políticas para o desenvolvimento dessas indústrias.
Esses 31 projetos são sobre o quê, especificamente?
AMANDA: São em três tecnologias: produtos plant-based, fermentação e carne cultivada; nas áreas diferentes (engajamento corporativo, ciência e tecnologia, educação).
Uma das coisas que a gente faz é identificar quais são as lacunas do conhecimento para o setor progredir. O que eu não sei sobre carne cultivada e fermentação que precisa ser estudado para a gente avançar na tecnologia?
A gente faz isso internamente no GFI e depois lança os editais nesses temas específicos, que é uma maneira de direcionar quais são as pesquisas de maior impacto que a gente pode fazer para o desenvolvimento das proteínas alternativas.
GUSTAVO: Tem uma pesquisa da Unicamp que a gente financia, que tenta extrair proteína a partir da folha de mandioca. Temos várias pesquisas com produtos da Amazônia, como a castanha do Brasil, e do Cerrado, como o baru.
Quando a gente abriu os editais voltados a essas regiões, dentro do projeto Biomas, um dos objetivos era utilizar partes da planta que são subutilizadas e que poderiam gerar novas formas de renda para as comunidades produtoras. Hoje, por exemplo, se tem o desperdício da casca da castanha, que é rica em fibras
Então, foram selecionadas algumas plantas que têm grandes produções e que poderiam ser utilizadas pela indústria de alimentos e aí a gente abriu os editais de pesquisa.
Quais carreiras surgem com esse mercado?
GUSTAVO: Dentro da administração, têm carreiras voltadas a novos alimentos, à inovação.
AMANDA: Principalmente para a carne cultivada, é esperado que a gente precise de um grande número de pessoas que entendam de cultivo celular.
Essas pessoas virão da engenharia química, biologia, farmácia, biomedicina, todas as carreiras das áreas biológicas. E [haverá demanda por] pessoas que saibam operar uma fábrica de biorreatores para carne cultivada, que estabeleçam bioprocessos eficientes.
Biorreator é um equipamento parecido com um fermentador da indústria cervejeira, é um tanque grande, geralmente de metal, que a gente coloca lá dentro as células e um líquido, que é um meio de cultivo que nutre as células e ali se consegue colocar todas as condições para que as células se mantenham. Então, também engenharia mecânica para construir biorreatores.
E claro, quem entende de formulação de produto, engenharia de alimentos, e pode entender de plant-based, fermentação e cultivado para fazer os produtos que sejam tão bons – ou melhores – que os produtos convencionais.
O bagaço de malte e a borra do café são mais valiosos do que você imagina. A cientista de alimentos Natasha Pádua fundou com o marido a Upcycling Solutions, consultoria dedicada a descobrir como transformar resíduos em novos produtos.
O chef Edson Leite e a educadora Adélia Rodrigues tocam o Da Quebrada, um restaurante-escola na Vila Madalena que serve receitas veganas com orgânicos de pequenos produtores e capacita mulheres da periferia para trabalhar na gastronomia.
Líderes precisam compreender que não podemos tratar a agenda ESG focando apenas na frente ambiental. É necessário encarar o investimento na educação como um compromisso que deve ser assumido desde já.