Sair da zona de conforto: a expressão sequer existia quando Patrícia Villela Marino aprendeu a aplicar esse princípio na vida, na prática. Desde a infância e até os 28 anos, todos os seus aniversários foram comemorados em um orfanato, onde ela era sempre a única menina (loirinha, ainda por cima) entre trezentos meninos carentes.
A iniciativa foi uma ideia de sua mãe, que fez da data uma oportunidade anual para inculcar na filha valores como generosidade e respeito à diversidade. Por muito tempo, aquela comemoração contrariava e constrangia a aniversariante. O sentimento, porém, foi se transformando:
“Aprendi que se sentir desconfortável é superimportante no desenvolvimento do ser humano”, diz Patrícia, contando como a mudança de consciência se consolidou com o passar dos anos. “Em algum momento, eu já não fazia para agradar a minha mãe. Aquilo passou a me pertencer, e eu pertencia àquele lugar. Isso se reflete muito no trabalho do Humanitas360 – e também se refletiu muito na construção do Civi-co.”
Patrícia, 48, é a idealizadora do Civi-co, o polo de negócios de impacto cívico-social instalado no bairro de Pinheiros, em São Paulo (fundado em sociedade com Ricardo Podval). Ela também é presidente do instituto Humanitas360, organização baseada nos Estados Unidos dedicada a combater as causas da violência na América Latina. Sua filial local, o Humanitas360 Brasil, apoia projetos de empreendedores cívico-sociais em estágio inicial.
“A sociedade continua achando que carro blindado, alarme e segurança privada vão solucionar um problema absolutamente sistêmico, complexo, que precisa ser tratado com uma visão mais ampla, generosa, de uma corresponsabilização e uma responsividade que nós ainda não conseguimos entender.”
Na época de sua primeira visita a um presídio, Patrícia ainda era uma estagiária de Direito e não cultivava esse olhar mais compreensivo. Antes dos 30, porém, deixou o Brasil para viver cinco anos no exterior com o marido [Ricardo Villela Marino, sócio do Itaú]; a temporada, fértil em epifanias, permitiu a chance de acompanhar, como aluna convidada, o curso de Filantropia e Terceiro Setor em Harvard.
“Quando voltamos, eu precisava me redesenhar. Decidi que não voltaria para o Direito, mas que faria com que o Direito servisse à ideia de me envolver em projetos que pudessem ser inspiradores, inclusive, de novas políticas públicas.”
Ao longo dos anos, engajando-se como voluntária, Patrícia foi compilando um portfólio de ideias e afinando sua metodologia de criar conexões de confiança com empreendedores sociais em busca de investimento, de forma a garantir que o dinheiro ajudasse a produzir mudanças concretas.
Paralelamente, ela despertava para o debate sobre as relações de causa e efeito entre a política fracassada de “guerra às drogas” e o esgarçamento do tecido social e democrático na América Latina. Em 2008, os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso, Cesar Gaviria (Colômbia) e Ernesto Zedillo (México) haviam lançado uma comissão latino-americana para discutir o tema, que motivou também o documentário Quebrando o Tabu (2011), de Fernando Grostein de Andrade.
“Setenta por cento da população carcerária está presa por tráfico”, diz Patrícia. “Nosso alto índice de encarceramento tem a ver com uma política de drogas bastante punitiva, que não visa o tratamento das pessoas ou o que levou aquela pessoa ao consumo, e tampouco faz uma distinção de quem é consumidor e quem é traficante.”
Foi acompanhando as gravações do documentário que Patrícia voltou a entrar em um presídio, agora com outros olhos. Em 2012, para engrossar o caldo do debate, ela e um grupo de empresários, políticos, especialistas e empreendedores sociais criaram a Plataforma Latino-Americana de Política de Drogas.
O Humanitas360 nasceu (em 2015) como um spin-off dessa plataforma, enfocando a corrupção, a falta de transparência dos governos, a estratégia equivocada de combate indiscriminado aos entorpecentes e o decorrente inchaço do sistema carcerário, em que as prisões cumprem a função de “depósitos de gente” onde o detento quase sempre encontra pouca ou nenhuma esperança de recuperação.
“O que nos move é a preocupação com o nível de cidadania, com uma participação cidadã que não exclui o encarcerado – porque ele continua sendo um cidadão, ainda que isolado de sua liberdade. Precisamos olhar a sociedade civil de maneira mais ampla, incluindo os excluídos e dando visibilidade aos invisíveis. Ao concordar com essa enorme invisibilidade, o que dizemos é: ‘Não acreditamos mais em vocês, escolham o seu caminho‘. E que escolha eles terão se não o crime organizado?”
Às vésperas de uma eleição que promete ser acirradíssima e na qual uma parcela significativa do eleitorado parece subscrever a máxima de que “bandido bom é bandido morto“, Patrícia e o Humanitas360 vão na contramão, empoderando os Conselhos da Comunidade (instituições previstas por lei que ajudam a afinar o diálogo entre os poderes Executivo e Judiciário, mas adotadas por uma minoria de varas criminais no país) e costurando coalizões com ONGs, empresas e órgãos públicos atrás de soluções inovadoras que criem reverberações positivas no sistema carcerário.
Uma dessas soluções apoiadas pelo Humanitas360 é a cooperativa de artesãs formada por detentas do Centro de Reeducação Feminino de Ananindeua, na região metropolitana de Belém do Pará. Modelo de boas práticas, o projeto pioneiro possibilita que, mesmo estando dentro de uma unidade prisional, as mulheres gerem renda para suas famílias por meio da produção de artesanato.
“A cooperativa nasce com a doutora Carmen [Botelho, diretora da unidade]”, diz Patrícia. “Entramos para dar estabilidade jurídica, para saber o que está faltando em termos contábeis, em termos de estafe, saber como podemos mover a nossa rede de parceiros em Belém… Hoje, a doutora Carmen já deu entrevistas para a CNN, a BBC inglesa, canais brasileiros. O Humanitas360 ajuda a dar essa visibilidade.”
O foco agora é instigar o empreendedorismo em outros presídios. Há cerca de um ano, Patrícia e sua equipe visitam semanalmente uma penitenciária feminina e outra masculina em Tremembé, a 150 quilômetros da capital paulista. Em parceria com a Secretaria de Administração Penitenciária e o Departamento Estadual de Execuções Criminais, e com o auxílio do Conselho da Comunidade da vizinha Taubaté, o Humanitas360 está dando capacitação e ajudando a implementar duas cooperativas: as detentas produzem artesanato e os detentos, alimentos orgânicos.
“Acreditamos que trabalhar com o indivíduo, resgatando ou ensinando a corresponsabilização para com o outro, ainda que dentro do sistema, é a maneira de prepará-lo para estar fora do sistema. Não basta simplesmente colocá-lo na frente de uma máquina de costura e dizer: ‘Seu objetivo é produzir quinhentos uniformes’. Em vez disso, precisamos dizer: ‘O seu objetivo é fazer com que este grupo inteiro esteja mobilizado, engajado, comprometido. E aí você não é só um empreendedor ou uma empreendedora – você é um empreendedor cívico-social!”
Dentro do pilar de promover a transparência e a cidadania, o Humanitas360 lançou, em maio, o Índice de Participação Cidadã nas Américas, desenvolvido em parceria com a empresa de análise de dados do grupo que edita a revista inglesa The Economist. A pesquisa, inédita, mapeia os níveis de engajamento cidadão em sete países e joga luz sobre como o Estado e a sociedade lidam com temas como liberdade de expressão, direitos das minorias e participação das mulheres na vida política.
O Brasil ficou em quinto no ranking, atrás de Estados Unidos, Chile, Colômbia e México (e à frente de Guatemala e Venezuela). A posição foi impactada por notas baixas nos quesitos de legislação para participação cidadã e de percepção da população sobre o exercício da cidadania. Em compensação, a pesquisa registrou um alto nível de engajamento dos jovens brasileiros. Outra boa surpresa: o país teve as mais elevadas taxas de participação em manifestações e em petições públicas.
“Nada do que fazemos no Humanitas360 é ‘para amanhã'”, reconhece Patrícia. “Mas precisamos começar, precisamos ‘apertar botões’ dentro das nossas consciências, dos nossos corações. Minha mãe ‘apertou um botão’, depois eu resolvi continuar com o dedo nesse botão, e outros botões têm sido apertados.”
Exercitar a compaixão para gerar microrrevoluções que alavanquem revoluções maiores lá na frente: Patrícia hoje trata de transmitir esse impulso ao filho. Daniel tem apenas 6 anos, mas já acompanhou a mãe em visitas a presídios e se acostumou a festejar seus aniversários em eventos de arrecadação de fundos.
“Percebemos a mudança nas vidas das outras crianças e do Daniel. Claro, ele deve ser o único loirinho de olhos azuis, mas você pensa que ele se sente incomodado, como eu me sentia, nos meus aniversários? Eu vejo que de uma geração para a outra já há transformações, e isso me dá muita esperança.”