“O parto, o sexo, o corpo da mulher podem ser usados por ela mesma, da forma que ela bem quiser”

Ana Cristina Duarte - 27 out 2016Ana Cristina Duarte, parteira, obstetriz, dá a sua visão e rebate críticas ao movimento de humanização do parto (foto Anna Amorim: www.annaamorim.com.br).
Ana Cristina Duarte, parteira, obstetriz, dá a sua visão e rebate críticas ao movimento de humanização do parto (foto Anna Amorim: www.annaamorim.com.br).
Ana Cristina Duarte - 27 out 2016
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por Ana Cristina Duarte

Uma médica, após terminar de atender um parto, segura o bebê no colo com uma máscara recobrindo todo o seu rosto. A relação é estéril, impessoal, sem um sorriso de acolhimento. O bebê foi retirado de sua mãe pelas mãos heróicas e estéreis de um doutor paramentado para uma cirurgia. Essa é a imagem da assistência ao parto em nosso país.

O parto, que para 90% das mulheres deveria ser um evento simples, tranquilo e fisiológico, passou a ser retratado em nossa sociedade como um evento médico, onde ele, o profissional, é o grande protagonista

Uma corporação ávida por seu quinhão na roda da fortuna obstétrica não pode sequer pensar nos outros atores dessa história. Apesar de a lei brasileira — e de todos os países de primeiro mundo — dizer claramente que parteiras profissionais, assim como enfermeiras obstetras e obstetrizes, estão capacitadas para a atenção completa ao parto de risco habitual, o discurso médico dominante ainda repete o jargão do parto como evento médico.

Manter as mulheres e os homens amedrontados com o parto e com a ideia de que tudo pode dar errado de uma hora para outra – e de que para isso é preciso um time de médicos cirurgiões a postos para salvar a vida de todos – é uma das formas mais eficazes de garantir que esse público se mantenha refém dessa assistência obstétrica brasileira que produz até hoje resultados assustadoramente ruins, comparados inclusive com índices de países muito mais pobres que o nosso.

Introduza o medo e depois a salvação, e se terá um mercado garantido de trabalho. Funciona com a indústria das armas, funciona com a indústria da segurança, funciona com a indústria do leite artificial, funciona com a indústria farmacêutica.

Dentro deste cenário, uma parte minoritária da população e dos profissionais da assistência tem se rebelado. Mulheres e homens têm procurado uma assistência mais “suave”, menos invasiva, menos amedrontadora. Alguns médicos, pediatras, anestesistas e parteiras profissionais têm desafiado a ordem natural da assistência típica brasileira.

Tanto no SUS como no setor privado, as coisas vão mudando lentamente em função do árduo trabalho de resistência dessas pessoas, a custa de reações cada vez mais violentas da corporação médica, a exemplo do texto “Dar à luz não é um momento de provação nem de afirmação – e muito menos de ativismo” publicado aqui no Draft, em 2015, e que voltou a circular nas redes sociais este ano. (Nota da redação: publicado em agosto de 2015, o artigo aparece entre os top 10 mais lidos do site nos quatro últimos meses.)

No texto, a autora e seu colega citam a comunidade de Facebook que gerenciavam, chamada “Não me obrigue a um parto normal”. Gerida por dois médicos obstetras e um cardiologista, a comunidade se ocupou por cerca de dois anos de promover uma campanha contra o parto normal. Ali, inclusive, surgiu o termo “Maria buracão”, para se referir a mulheres que tinham parto normal. Após diversos processos judiciais, a comunidade foi retirada do ar pelo Facebook. A meu ver, os dois obstetras passaram praticamente dois anos de suas vidas se dedicando a destruir a imagem de mulheres que tinham partos normais, bem como a de qualquer profissional que se comportasse de forma diferente do que impõe o antigo padrão brasileiro de assistência obstétrica.

O texto citado não poderia ser diferente. Escrevo este artigo, portanto, para rebater alguns dos conceitos ali apresentados. Minha intenção é jogar alguma luz sobre temas muito mais complexos do que o raciocínio do texto pretende demonstrar:

1) “Dar à luz não é um momento de provação nem de afirmação – e muito menos de ativismo”

A verdade é que dar à luz adquire significados complexos demais dentro da variedade de mulheres que compõem uma sociedade. Para uma mulher, dar à luz é um castigo. Para outra, é o momento mais esperado de sua vida. Para outra, é um momento de provar a ela mesma que é capaz de algo que disseram que ela seria incapaz. O significado que o parto adquire para cada mulher cabe apenas a ela. O parto é um evento muito importante para a maioria das mulheres. Permitir que um ser humano completo saia de dentro de seu corpo e adquira vida própria é tão grandioso como a formação do universo! O mundo se transforma a cada bebê que chega, e portanto a cada mulher que dá à luz.

Não tentemos jamais determinar quais sentimentos são certos ou errados na hora do parto. Respeitemos as mulheres

Vou adiante, destrinchando as ideias ali apresentadas.

2) “Animais (…) também dão à luz. O desafio da maternidade não está aí.”

O desafio da maternidade não está em um momento específico, mas o conjunto desses momentos compõe a experiência da maternidade. A gravidez, o parto, o puerpério, a amamentação, o vínculo, a educação, o suporte emocional, as noites em claro, o primeiro dente que sai, o primeiro dente que cai. Não existe “o desafio”. A verdade é que cada um desses momentos são “os desafios”.

Cada ano, cada dia, cada hora e cada minuto da vivência da maternidade são os nossos desafios como mães, bem como os da paternidade e dos pais

Reduzir os sentimentos das mulheres dizendo que o que elas estão sentido é ilegítimo ou errado é o que mais tem afastado as mulheres da assistência obstétrica típica. Então, meu conselho à autora e aos médicos que se sentem ofendidos ou que julgam quando uma mulher diz que o parto é o maior desafio da vida dela é: ouçam o que essa mulher está dizendo, pois por trás dessa frase pode haver uma vida inteira de histórias muito importantes, que bem trabalhadas podem inclusive melhorar o desfecho do processo. Ouça. Não julgue.

3) “O parto não é um espetáculo, não é um circo, não é um evento social. (…) O parto é um evento médico.”

Ah, doutora… Como é triste quando um médico obstetra desiste de ver o espetáculo que é um parto. Sinto dizer, mas o parto é um evento multi-facetado. Irredutível a uma sentença. O parto é também, entre outras coisas, um evento social. É um circo para algumas poucas mulheres (e respeite o circo, por favor). É um momento familiar. É um evento psíquico grandioso no qual profundas transformações podem acontecer com uma mulher. Pelo simples fato dela mesma ter feito suas forças e ter colocado no mundo seu bebê, coisas incríveis podem estar acontecendo ali.

Uma assistência violenta e pouco empática pode fazer do parto o momento mais traumatizante da história daquela mãe e de seu bebê

Por isso o parto virou também um movimento político e feminista, um movimento de resistência contra uma assistência que em geral trata a mulher como um ser potencialmente defectivo. Ainda vamos precisar de muito panfleto para anular esse tipo de discurso que minimiza o sofrimento da mulher, seus desejos, suas histórias. O parto não é um evento médico. O parto PODE VIR A SE TORNAR um evento também médico para uma parcela das mulheres. Mas, para a maioria, o parto é um ato fisiológico e simples.

4) “Quem precisa parir por uma via específica, quem faz questão de sentir dor para se sentir mais mulher, realmente não precisa de obstetra – precisa de terapia.” 

Novamente, o julgamento. Uma mulher pode, sim, precisar sentir o parto em todas as suas nuances para se sentir completa como mulher. Porque, simplesmente, estamos respeitando o que a mulher diz que para ela é importante! Assim como podemos aceitar que uma mulher precise de analgesia no parto para se sentir mais íntegra, mais no controle da situação. O que não podemos é julgar uma mulher e recomendar tratamento psicológico só porque ela deseja parir, deseja sentir esse processo, deseja passar por isso.

Quem é o profissional da saúde para determinar o que é o certo ou errado em termos de sentimentos?

Onde foi que se perdeu a capacidade de empatia, de entender o seu cliente? Em que ano da faculdade se perdeu o básico, o mais humano de nós?

5) “A mulher que não consegue manter uma relação saudável com seu marido, ou consigo mesma, depois do parto, porque não teve o parto sonhado ou porque ficou com uma cicatriz, precisa rever seus valores.” 

Não se trata do profissional da saúde decidir o que cada marca significa para uma mulher. É preciso dizer, neste momento, algo muito sério: o parto de cada mulher não é sobre o profissional. É sobre ela. Do que trata o parto? Do que a mulher decidir que trata o parto dela. Aceite isso ou vá para a Medicina Legal, onde os pacientes não estão mais vivos para falar sobre seus sentimentos, seus valores, suas cicatrizes, suas frustrações. Quando o profissional de saúde não pode mais tentar compreender sentimentos e frustrações, ele secou por dentro. Hora de mudar de profissão.

6) “Temos que tirar o foco do parto e colocar o foco no nascimento. O bebê é a estrela do parto – e não a mãe.”

Qualquer livro básico de psicologia explica que a construção da maternidade real, concreta, se dá após a chegada do bebê, sendo que o puerpério é o tempo (em geral intenso e difícil) em que esse processo vai se instalar de forma quase dolorosa. O parto acontece num momento no qual ainda não há uma vivência de maternidade concreta, apenas imaginária. O parto acontece com a mulher, pela mulher. Ela é quem dá à luz seu filho. Ou seja, é um processo dela.

Não existem estrelas nesse processo. Existem atores. Existe a mãe em processo de parto, existe um bebê em processo de nascimento, existe em geral um pai em processo de construção de paternidade. Anular os sentimentos da mulher em prol do bebê é um dos grandes erros das sociedades modernas

É por esse erro que as mulheres que não querem ser vitrificadas, tornadas transparentes, têm se rebelado num movimento de “humanização do parto”. Através deste processo, passamos a ver a mãe como uma pessoa de direito em seu processo próprio de parir. O bebê também é visto como uma pessoa de direito em seu processo de chegar ao mundo da forma mais suave, delicada e amorosa possível.

7) “Deixar de oferecer todos os recursos disponíveis, quando tem acesso, deixar de realizar o parto com pessoas capacitadas, em nome de uma ideologia ou de uma aposta heterodoxa, é uma atitude egoísta.”

Não cabe a ninguém julgar uma mulher que opta por fazer uma cesariana mesmo sem indicação, aceitando para isso os riscos aumentados para mãe e bebê.

Não cabe a ninguém julgar uma mulher que opta por adiantar o parto do filho porque está cansada

Não cabe a ninguém julgar uma mulher que, traumatizada por experiências anteriores, deseja ter seu filho sozinha sem que ninguém a toque ou abra suas pernas à força (por exemplo). Como profissional da saúde, cabe a mim tentar entender o que está acontecendo com essa mulher, entender seus desejos e tentar explicar os riscos inerentes a cada decisão. A segunda questão aqui é “pessoas capacitadas”. Quem são as “pessoas capacitadas”?

8) “[O parto] Não pode ser usado como arma ou como laboratório para lutar por ideais que não representam o melhor que a ciência conseguiu produzir até hoje em termos de segurança e de conforto.”

O parto, o sexo, o corpo da mulher podem ser usados por ela mesma da forma que ela bem quiser e preferir. E, sobre o conforto, o que uma mulher chama de conforto a outra chama de restrição. Uma mulher pode achar analgesia a melhor coisa do mundo e a outra pode achar terrível a sensação de descontrole sobre o próprio corpo. Uma pode achar que uma banheira quente é o supra sumo do conforto e a outra pode achar muito estranho e inadequado. Conforto é um conceito individual que inclusive muda ao longo da vida. O mesmo vale por segurança. Para uma mulher, um parto assistido por três médicos especializados, três residentes e três estudantes é a própria definição de segurança e para outra essa imagem pode se assemelhar à de um estupro.

Quem vai definir o que é segurança e conforto para todas as mulheres do planeta?

Uma médica específica? Um conjunto de médicos? Ou cada mulher, diante das alternativas que ela conseguir elencar para ela mesma?

9) “A discussão sobre o parto é muito ruidosa. (…) E há dinheiro circulando a partir de inverdades e de difamações. (…) Essas vozes, que ecoam por aí, minimizam os riscos obstétricos e disseminam a ideia equivocada de que o parto é um evento natural, que sempre dá certo (…) Fica parecendo que todo mundo pode realizar bem um parto, em qualquer lugar – menos o próprio médico, num hospital”

Tudo o que envolve possível perda de poder e de mercado (ou seja, de dinheiro) se torna ruidoso, não é? O que acontecerá com o mercado de cesarianas eletivas quanto as mulheres se sentirem fortes e saudáveis o suficiente para parir? Este mercado envolve cerca de 2 bilhões de reais por ano!

Na verdade, obstetrícia é uma área complexa que envolve diversas especialidades: médicos, enfermeiras, obstetrizes, fisioterapeutas, psicólogos e doulas, entre outros. A ideia perversa é a de que apenas médicos detêm o conhecimento. O que as vozes que ecoam por aí estão dizendo é que os médicos devem ser os responsáveis por tratar das patologias obstétricas. Mas nem tudo em obstetrícia é patologia e a verdade mais cruel para a corporação médica é que 90% das mulheres não precisam de médicos para ter filhos.

10) “Qualquer parto atendido com todos os cuidados médicos, e por uma equipe dedicada, respeitosa e competente, em hospital bem equipado, pode ser também um ‘parto humanizado’.”

Primeiro, vamos relembrar de que o parto humanizado significa um parto com respeito e amparado pelas melhores evidências científicas. Então, não vamos confundir respeito com falta de assistência. Uma cesárea marcada fora do tempo escolhido pelo bebê, para citar um exemplo, não pode ser chamado de “parto humanizado”, pois começa com um desrespeito fundamental, básico, a um dos atores da história. Um parto onde se realiza um fórceps exclusivamente para o médico residente poder treinar suas habilidades, não pode ser chamado de “parto humanizado”. Só para citar alguns exemplos.

As mulheres que optam por ter o parto fora do hospital estão mandando uma mensagem muito clara: não querem o que está sendo oferecido para elas

Em vez de atacar a escolha das mulheres, que tal olhar para o que lhes é oferecido com um olhar mais autocrítico? Ademais, 99.9% das mulheres do Brasil têm seus partos dentro dos hospitais, o que torna essa discussão me parece desproporcional. O parto fora do hospital não é uma realidade brasileira, estatisticamente falando. Menos de 0,1% das mulheres optam por esse caminho (os dados são do Sinasc/São Paulo-SP). Temos 90% de cesarianas nos hospitais privados. A imensa maioria delas sem qualquer necessidade. O problema no Brasil é esse 0,1% de mulheres que têm o parto fora do hospital? Não.

11) “Os avanços da ciência nos garantem mais segurança e nos oferecem as melhores práticas. (…) Abrir mão desses recursos é considerar que morrer no parto também é um evento natural.”

O ponto mais simples e incompreendido de todo esse movimento de humanização do parto é exatamente este: o movimento não é contra a evolução. O movimento não é contra a tecnologia, ou contra os avanços da medicina.

O movimento de humanização não é contra a evolução. Só deseja que as intervenções, a tecnologia, a medicina, sejam usadas de forma criteriosa, para aquelas que precisam

O pedido é que as mulheres sejam aceitas em suas múltiplas possibilidades. Simples assim. Que passem a aceitar as mulheres e suas questões emocionais, afetivas, sociais, familiares. Acolham as diferenças. Acolham os desejos. Aceitem que uma mulher pode querer recusar analgesia. Aceitem que 90% das mulheres não precisam mais do que atenção básica para parir. Ausculta fetal intermitente e apoio afetivo e emocional, recursos não farmacológicos e eventualmente uma analgesia farmacológica são as coisas simples que 90% das mulheres precisam. Tecnologia é boa quando corretamente aplicada, para quem precisa. Simples assim.

 

Ana Cristina Duarte, 51, é obstetriz, coordenadora do GAMA e do Siaparto (Simpósio Internacional de Assistência ao Parto) e co-autora do livro Parto Normal ou Cesárea? O que toda mulher deve saber (e homem também).

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