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“O PL 1904 pode abrir precedentes perigosos e levar a políticas que restrinjam ainda mais as decisões das pessoas sobre sua saúde e bem-estar”

Marília Marasciulo - 13 ago 2024
A advogada Melina Fachin, doutora em Direito Constitucional, professora associada da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e especialista em direitos humanos (foto: divulgação).
Marília Marasciulo - 13 ago 2024
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Em 2023, o Brasil registrou um estupro a cada seis minutos – ou 83 988 casos, o maior número da história, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024, divulgado no dia 18 de julho. 

Os números são ainda mais difíceis de se digerir quando se sabe que, ano a ano, as crianças são as principais vítimas desse crime no país. Em 2024, do total de pessoas estupradas, 61,6% tinham 13 anos ou menos. 

Ainda assim, um projeto de lei pretende equiparar o aborto (inclusive em situações que hoje têm amparo legal) ao crime de homicídio. Com a mudança, meninas e mulheres que abortassem o feto gerado em decorrência de um estupro poderiam passar mais tempo encarceradas do que o próprio estuprador.

Proposto por Sóstenes Cavalcante, deputado federal pelo Rio de Janeiro e filiado ao Partido Liberal, o PL 1904 gerou comoção ao receber, no dia 12 de junho, regime de urgência – o que significaria que poderia ser votado diretamente no plenário, sem passar pelas comissões da Câmara. 

A revolta nas ruas e nas redes sociais – o projeto foi apelidado de “PL do Estuprador” e “PL da Gravidez Infantil” – obrigou a um recuo estratégico. O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), anunciou que a votação ficaria só para depois do recesso parlamentar, transcorrido em julho.

Atualmente, o Código Penal brasileiro prevê de um a três anos de prisão para a mulher que provoca o aborto, de um a quatro anos para quem realiza o aborto com o consentimento da mulher, e de três a dez anos para abortos realizados sem o consentimento da gestante. 

Há exceções em casos de estupro, risco à vida da mulher e anencefalia do feto, sem qualquer delimitação de tempo máximo de gestação para a realização do procedimento. O que o PL 1904 pretende é fixar essa janela para o aborto legal em 22 semanas e aumentar a punição para 20 anos (o dobro da pena por estupro).

Segundo a advogada Melina Girardi Fachin, doutora em Direito Constitucional, professora associada da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e especialista em direitos humanos: 

“Forçar meninas vítimas de estupro a manterem uma gravidez vai contra o espírito das leis de proteção às crianças e adolescentes, porque coloca essas meninas em situações de ainda mais vulnerabilidade e risco”

Os deputados já retornaram do recesso. Nada impede que, em breve, o PL da Gravidez Infantil volte a entrar em votação. A seguir, Melina fala sobre os argumentos e as implicações éticas e penais por trás do PL 1904:

 

Quais as principais mudanças propostas pelo PL 1904/24 em relação à legislação atual sobre aborto no Brasil?
O PL 1904/24 quer mudar drasticamente as regras sobre o aborto no Brasil, tornando-o completamente proibido, sem exceção. 

Hoje, o aborto é permitido em casos de estupro, quando a gravidez representa risco de vida para a mãe, ou no caso de fetos anencéfalos. O que o projeto propõe é acabar com todas essas exceções, mexendo no código penal brasileiro. Isso é algo sério e não pode ser considerado corriqueiro. 

O código penal é a base das nossas leis criminais, e alterar essas leis pode ter um impacto profundo e duradouro na sociedade. Quando você criminaliza o aborto de forma tão rígida, está agravando ainda mais a situação porque passa a tratar o ato como um dos crimes mais graves, igual ao homicídio. 

Isso não só aumenta as penas, mas também carrega um peso simbólico enorme, reforçando o estigma contra as mulheres que buscam esse procedimento. 

Por que ele vem sendo chamado por ativistas que defendem o direito ao aborto legal de PL da Gravidez Infantil?
O PL recebeu o apelido porque, se o projeto for aprovado, meninas que foram vítimas de estupro seriam obrigadas a levar a gravidez adiante. 

Isso significa que até crianças que engravidaram por abuso sexual não teriam o direito ao aborto, o que é um cenário assustador e cruel 

Por isso, ativistas batizaram o projeto de “PL da Gravidez Infantil”. 

Como isso contrasta com as leis de proteção às crianças que temos hoje?
Hoje, temos várias leis que visam proteger as crianças, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que garante direitos fundamentais às crianças e adolescentes, incluindo o direito à saúde, à educação e à proteção contra abusos e violência. 

Forçar meninas vítimas de estupro a manterem uma gravidez vai contra o espírito dessas leis de proteção, porque coloca essas meninas em situações de ainda mais vulnerabilidade e risco. 

Se o PL 1904/24 for aprovado, pode gerar um choque jurídico. Teríamos uma legislação que obriga meninas a manterem gravidezes indesejadas e traumáticas, enquanto o ECA e outras leis de proteção buscam justamente garantir um ambiente seguro e saudável para elas

E não é uma questão de os proponentes não saberem disso ou não levarem isso em consideração, é uma ideia inadequada e totalitária sobre o sentido da proteção do direito à vida. 

Também cria uma contradição legal, pois uma lei poderia estar diretamente em conflito com outra, gerando confusão e possivelmente deixando essas meninas sem a proteção adequada. 

Em caso de choque temos vários critérios jurídicos para resolver, mas o preponderante tem que ser o melhor interesse da criança.

Quais são os argumentos legais da PL para considerar o aborto um homicídio?
O projeto de lei trata o aborto como se fosse um homicídio, argumentando que a vida começa na concepção. Dessa forma, interromper a gravidez seria equivalente a tirar a vida de uma pessoa. Eles estão querendo usar essa perspectiva para aplicar as mesmas penas do crime de homicídio a quem faz um aborto. 

E quais seriam as implicações legais, penais e éticas de equiparar o aborto a esse tipo de crime?
Se o aborto passar a ser considerado homicídio, as consequências seriam pesadas. Legalmente, mulheres que abortarem e os profissionais de saúde que as ajudarem poderiam enfrentar penas longas de prisão. Penalmente, isso significaria tratar essas mulheres como criminosas graves. 

Eticamente, a situação se torna muito complicada, porque não se leva em conta o contexto de cada gravidez, como estupro ou risco de vida para a mãe. É uma abordagem que ignora a complexidade do assunto e penaliza ainda mais as mulheres. 

Na prática, se o PL 1904/24 for aprovado, uma mulher que realizar um aborto, mesmo em casos de estupro, poderia enfrentar penas mais severas do que o próprio estuprador. Isso é profundamente injusto e vai contra qualquer noção de proporcionalidade e justiça 

Além disso, essa mudança sobrecarregaria ainda mais o sistema penitenciário, que já enfrenta muitos problemas de superlotação e condições precárias. Prender mulheres que realizaram abortos só iria aumentar essa pressão, sem falar nos custos adicionais para o Estado em manter mais pessoas encarceradas. 

Muitas dessas mulheres já estão em situações de vulnerabilidade, e a prisão não resolve os problemas subjacentes que as levaram a buscar um aborto.

Como o PL 1904/24 afeta os direitos reprodutivos das brasileiras em comparação com a legislação atual?
O PL seria um grande retrocesso para os direitos reprodutivos das brasileiras. Atualmente, elas têm direito ao aborto em situações específicas, como em casos de estupro ou risco de vida. O PL 1904/24 tiraria esses direitos, forçando todas a manterem a gravidez, independentemente das circunstâncias. 

E o que ele representa no contexto mais amplo da discussão sobre aborto no país?
No contexto mais amplo, o PL 1904/24 representa uma tentativa de endurecer ainda mais as regras sobre o aborto, numa onda conservadora que quer restringir os direitos das mulheres. 

Isso está gerando muita discussão e resistência, porque é visto como um ataque aos direitos fundamentais das mulheres. 

Se aprovado, pode abrir precedentes perigosos para outras áreas de direitos individuais e levar a outras políticas que restrinjam a capacidade das pessoas de tomar decisões sobre sua saúde e bem-estar – afetando, por exemplo, a escolha de métodos contraceptivos ou tratamentos médicos específicos 

É crucial entender que legislações como o PL 1904/24 têm um impacto muito além das mulheres diretamente envolvidas. Elas afetam a estrutura social e econômica do país e criam um ambiente de maior vulnerabilidade e instabilidade para todos, incluindo os homens.

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