por Ulisses Zamboni
“Are you happy?” Assim começa minha conversa com o monge Khenpo Phuntsok Tashi, diretor do Museu Nacional do Butão e um dos porta vozes oficiais sobre o conceito da “Felicidade Interna Bruta”, na recente viagem que fiz ao país. Apesar de ser uma pergunta obviamente retórica, confesso que fiquei sem resposta. O conceito de felicidade é tão amplo e subjetivo que me faltou argumento concreto, e até honesto, para eu poder responder na hora para ele. Mas, com uma simpatia contagiante, ele mesmo me ajudou: “of course, you’re happy! You got a smile on your face now” (ou “claro que você é feliz! Você está sorrindo agora”).
Segundos depois, o monge de 1,90 metro de altura e dono de um sorriso constante e sereno no rosto não deu trégua e disparou mais uma pergunta que me deixou novamente sem ação: “Are you searching for your own happiness here in Buthan?” (ou “Você está procurando sua própria felicidade aqui no Butão?”). É claro que a resposta era um redondo sim. E também estava muito claro que eu estava ali com ele tentando decodificar a fórmula da felicidade, um desejo honesto, mas claramente ingênuo.
Verdade seja dita, esses primeiros momentos de conversa pontuaram todo nosso diálogo. Khenpo —assim pediu que eu o chamasse — conseguiu me fazer ligar o botão “modo avião” e derrubar uma certa empáfia ocidental que me acompanhava no papo. Identifiquei nele uma tremenda habilidade no uso da inteligência emocional. E isso já me conquistou na largada.
Direto ao assunto, Khenpo fala: “Em 1970, o quarto rei do Butão, desafiou o mundo com a máxima de que a medida de desenvolvimento usada pelo mundo não atende ao mais nobre objetivo pessoal dos indivíduos, que é encontrar a felicidade”. De acordo com ele, essa foi a primeira vez que o assunto despontou no horizonte. “O tema da felicidade se manteve perene em nosso reino até que, em 1979, em uma entrevista para uma TV indiana, o rei declara textualmente que nosso país prefere trabalhar não com um ‘Produto Interno Bruto’, mas a com a ‘Felicidade Interna Bruta’”.
Desde então, a Felicidade Interna Bruta virou um conceito que foi se aprimorando ao longo dos anos até virar um programa oficial do governo butanês
Há, inclusive, com um Ministério da Felicidade atrelado ao índice. Khenpo me conta que, até aquela data, o Butão sobrevivia pesadamente do apoio financeiro e estrutural do governo indiano, razão da pergunta provocadora do repórter. “Até 1999, não nos responsabilizávamos por resultados desse nem de outro programa econômico”, comenta Khenpo, quase que numa espécie de confissão envergonhada de que o Butão não alicerçava seu progresso numa economia sustentável. “Mas o novo milênio estava chegando e ficava cada vez mais claro que não podíamos continuar a depender da Índia. Daí, começamos um projeto mais consistente e sustentável”, diz ele.
Talvez o grande pulo do gato sobre o FIB no Butão esteja no fato de que havia uma e apenas uma certeza absoluta: o FIB (ou GNH –Gross National Happiness) teria obrigatoriamente que estar alinhado aos valores culturais, institucionais e espirituais do Butão e não deveria ter como lastro a sociedade mercantil do Ocidente, caminho que a maioria dos países asiáticos (e do mundo) tomou.
Também vale deixar claro que o Butão é um dos poucos países no mundo que nunca sofreu uma invasão ou foi colonizado pelo Ocidente. Sua geografia repleta de montanhas e vegetação, aos pés do Himalaia, os protegeram das invasões – especialmente da inglesa, situada logo ao lado na Índia – preservando totalmente a cultura do Reino do Butão, que permaneceu intacta após a unificação, ao menos pelo último milênio.
Fiquei surpreso ao descobrir que a intenção de abraçar a Felicidade como uma plataforma séria e estruturada fosse assim, tão recente. Em uma conferência em Seoul, já em 2000, o Ministro da Relações Exteriores do Butão anunciou que iria implementar o senso Butanês para, além de fazer a contagem da população – que, atualmente, é de apenas 650 mil pessoas — perguntar sobre o que faz a população feliz e envidar os esforços do Estado pela manutenção dela.
Surgiu então minha curiosidade e acho que a de todo leigo no assunto: entender se o Butão reconhece o PIB como métrica de desenvolvimento como todos os outros países do mundo o faz. O monge expressa claramente que o país reconhece a métrica, mas resolveu colocar na constituição o FIB acima da importância do PIB. E, pelo que senti visitando as três cidades mais importantes do país (Thimpu, Punhaka e Paro), não poderia ser diferente.
O país é um celeiro budista com uma ortodoxia que eu nunca tinha presenciado antes. E olha que conheço bastante as paragens asiáticas
A religião está no tecido social do Butão e acompanha a população todos os dias, não só aos domingos como fazemos com o catolicismo no Ocidente. Crianças, jovens adolescentes, adultos e idosos vivem a doutrina com tanta recorrência e espontaneidade que chega a intimidar até os que se consideram espiritualizados como eu.
E aqui cabe expressar uma certa frustração pessoal com o do fato de que a religião tem papel preponderante em como se configura o FIB no Butão, não porque eu seja agnóstico, tampouco porque eu não acredite que a religião não tenha um papel importante na sociedade, mas porque ficam claros os limites de escalabilidade do conceito ao redor do mundo.
E, nesse campo, para minha surpresa, Khenpo confessa: “Tenho dúvidas se o FIB funciona tão bem em todas as sociedades no mundo”, trazendo à tona minha teoria de correlação entre a religião e o FIB. “O FIB está totalmente correlacionado ao respeito à sociedade que se vive, a suas crenças (espirituais e sociais) e ao meio ambiente”, diz, deixando claro que é aí que mora o sucesso da felicidade. “O mundo tem encarado desafios enormes em energia, comida, pobreza, degradação dos recursos naturais, disponibilidade de água etc. e tem dado soluções apenas parciais para o assunto”, comenta.
Mas ele surge com uma ponta de esperança em seu discurso, já que constata que é a partir do novo milênio que a população mundial começa a ter mais consciência de que o prazer e desejo material levam muito mais à angústia existencial do que propriamente à felicidade. “Se o povo está infeliz ele naturalmente degradará o que está à sua volta. É como uma espiral para baixo”, diz.
FIB Butanês entrou definitivamente para a constituição Butanesa apenas em 2008, outra surpresa para mim, pois a dimensão do assunto no mundo é tamanha que parecia estar sedimentado há décadas. Está lá na Constituição do país que “o governo deverá enveredar todos seus esforços para promover as condições que permitam e facilitem o alcance da felicidade da população”.
Confesso que, apesar de estar maravilhado com o encaixe perfeito entre a dinâmica social e religiosa com a felicidade, eu continuava a acreditar que poderia haver ali um quinhão de ideologia pouco prática e uma espécie de retórica marqueteira
Foi então quando Khenpo me descreve o projeto 2020 do FIB Butanês, que tem por objetivo cristalizar o conceito por toda a sociedade de uma forma bottom up (de baixo para cima) – e não top down (de cima para baixo). “Por volta de 2005, fizemos um trabalho bastante complexo para entender o porque do conceito não estar sendo tão rapidamente disseminado em nossa sociedade. E descobrimos que a educação sobre o FIB não deveria acontecer apenas nos centros comunitários e templos budistas como estávamos fazendo, mas também, e principalmente, nas escolas.”
Foi aí que a Monarquia Butanesa criou uma Comissão de Planejamento para a Felicidade Interna Bruta, que resolveu introduzir no currículo escolar os conceitos e as diretrizes do FIB. “A capacidade de aprendizado e assimilação do conceito pelas crianças e adolescentes é imensamente superior à dos nossos adultos e anciões”, reflete Khenpo. Eles estavam certos. Em 2015, a introdução do FIB nas escolas já completava 10 anos e refletia claramente na sociedade e nas ruas um enorme salto quantitativo e qualitativo sobre o tema na sociedade Butanesa.
O nível de consciência coletiva e social nas cidades que visitei e, portanto, de felicidade, é patente nas ruas. Arrisco dizer que encontrei mais civilidade e consciência social ali do que nos grandes centros urbanos do ocidente, e até aquela dos países mais à esquerda como Suécia e Dinamarca
Apesar de o Butão ser um país ainda em desenvolvimento e ter uma sociedade relativamente espartana sob o ponto de vista do consumo ocidental, ou seja, sem luxos, e com um PIB per capita muito baixo, o pensamento desenvolvimentista do Butão surpreende. Em 2009, educadores renomados do mundo inteiro foram convidados pelo governo butanês a participar de um workshop em Tymphu, capital do país, que tinha o objetivo de melhorar a didática na educação do FIB nas escolas. O encontro resultou num novo e moderno protocolo de ensino nas escolas. Vale o destaque que o Butão tem como línguas oficiais o butanês e o inglês.
Surpreendentemente, a maioria dos interlocutores que tive nas ruas me respondeu com um inglês coloquial irreparável, especialmente os jovens que, também, surpreendentemente, não esgotavam os pedidos de ver meu iPhone7Plus. Todos, sem exceção, empunhavam seus celulares e usavam a rede de telefonia móvel do Butão que vem sendo implementada no país desde 2010. Nenhuma rede brasileira tem convênio com o país, e portanto, fiquei felizmente, completamente desconectado.
Será em 2020 a primeira onda de jovens recém saídos do ensino médio, com formação totalmente alicerçada no programa, o que, de acordo com o governo butanês, dará consistência estrutural para consolidação e perpetuação geracional do programa naquela sociedade. “A pressão materialista mundial é tamanha que, se não educarmos nossos cidadãos desde a infância sobre o assunto, não conseguiremos perpetuar nosso maior bem social que é a felicidade”, diz Khenpo.
O papo foi tão bom e fluido que ousei pedir mais um horinha no dia seguinte. E ele cedeu. Agora não mais no lindo hotel Uma Como Paro, mas sim nas dependências do próprio Museu Nacional do Butão. Já no dia seguinte, ávido em “botar as mãos” no conteúdo programático do FIB, pedi uma breve explicação sobre a plataforma do programa. E, fiquei realmente encantado. Khenpo discorre sobre os quatro pilares do FIB e seus 12 domínios.
Do ponto de vista de um estrategista como eu, os quatro Pilares (Sustentabilidade e Equilíbrio no Desenvolvimento Sócio Econômico, Preservação Ambiental, Promoção e Preservação da Cultura, e Boas Práticas Governamentais) e os nove domínios (que são a Preservação de Bom Padrão de Vida, Saúde, Educação, Preservação Ambiental, Alfabetização Ecológica, Uso do Tempo, Bem Estar Psicológico, Vitalidade da Comunidade, Diversidade Cultural) constituem um programa de vanguarda para evolução econômica e social. No entanto, eu também identifico que o FIB é eminentemente um programa customizado, feito apenas para aquela sociedade.
Se tentarmos importar o conceito e o modus operandi do FIB no Brasil encontraremos milhares de desencaixes culturais, sociais e econômicos
Com toda sua experiência e inteligência emocional, Khenpo vê claramente minha total desilusão na impossibilidade de implementação disso no Brasil e no resto do mundo, mas traz, no final de nossa conversa, uma luz no fim do túnel. “Entendo que a sociedade ocidental se arvora em muitos conceitos aos quais nós, com o FIB butanês, somos contrários. Mas, e se esses mesmos preceitos do FIB forem empregados nas corporações?”
Depois do comentário, me vi assim como num final de filme Holywoodiano, em que o mocinho consegue escapar daquelas armadilhas super cabeludas. Consegui estabelecer e criar naturalmente uma enorme ponte entre ambos — o FIB e as Corporações. Como curador do Capitalismo Consciente no Brasil tenho visto inúmeras iniciativas no sentido da humanização das corporações. O próprio Capitalismo Consciente (entidade sem fins lucrativos em defesa de negócios que colocam o humano à frente do capital) carrega em si a perspectiva de que esses são os negócios que geram progresso no século XXI. E se coloca num alinhamento positivamente assustador com as premissas dos pilares do FIB e seus nove domínios.
Nesse dia, voltei para o hotel. Refleti. E fiquei feliz. Muito feliz.
Ulisses Zamboni, 54, é presidente da Santa Clara, consultor e estrategista de marcas, curador do Capitalismo Consciente e psicanalista.
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