O que é o Abraço Cultural e como eles querem mudar a nossa relação com os refugiados

Luana Dalmolin - 19 fev 2016Acima, dois professores de francês congoleses — de preto, Pitchou Luambo, e de azul Guylain Mukendi — numa aula de dança promovida pelo Abraço Cultural (foto Edgardo Guerrero).
Acima, dois professores de francês congoleses — de preto, Pitchou Luambo, e de azul Guylain Mukendi — numa aula de dança promovida pelo Abraço Cultural (foto: Edgardo Guerrero).
Luana Dalmolin - 19 fev 2016
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No último domingo, numa cidade ainda emocionada pela descoberta de que podia fazer Carnaval e ser feliz na rua, entre os que faziam festa estava o bloco RefugiAmados, uma iniciativa do Abraço Cultural, que é um projeto que oferece cursos de idioma e cultura ministrados por professores refugiados vivendo em São Paulo. Com apoio do bloco paulistano Primavera, Eu Te Amo, o RefugiAmados circulou pelo centro da cidade com dança haitiana, dança sírio-libanesa e DJ. Eram poucos os foliões, mas eles também comemoravam a possibilidade de uma nova vida nesta cidade. É disso que trata o Abraço Cultural, um negócio social com uma história curiosa.

Durante a Copa de 2014, o Atados, uma plataforma que conecta ONGs e voluntários com objetivos comuns, se juntou ao Instituto de Reintegração do Refugiado Brasil, o Adus, para realizar a 1ª Copa dos Refugiados. O evento aconteceu em São Paulo no dia 20 de junho daquele ano, data que também marca o Dia Mundial do Refugiado, e cumpriu o objetivo de reunir pessoas de diferentes países e promover a integração entre elas e a comunidade local.

Nessa ação estavam André Cervi, 26, e Daniel Assunção, 26, colegas de faculdade (cursaram Administração na USP) e cofundadores do Atados. Ali, eles tiveram o primeiro insight do que viria a ser o Abraço Cultural: uma plataforma que oferece cursos de idiomas e cultura ministrados sempre por professores refugiados, a maioria vindos de países africanos, árabes e latino-americanos. Do primeiro curso realizado, em julho passado, até o momento, o projeto já “abraçou” 28 professores, 300 alunos e 70 voluntários, além de ter faturado 160 mil reais.

COMO ESTRUTURAR UM NEGÓCIO COM REFUGIADOS?

O modelo de negócio começou a ser moldado em fevereiro de 2015 passado, durante um curso de criação e gestão de projetos colaborativos do qual André e Daniel participaram. Desde o início, a ideia do Abraço era promover a inserção de refugiados no mercado de trabalho, contribuindo para a geração de renda e também para a valorização pessoal e cultural de pessoas que em seus países eram advogados, engenheiros, cineastas, professores universitários etc. André fala dessa ideia:

“Não queremos ser assistencialistas. Queremos mudar paradigmas através da troca cultural e da valorização das habilidades dos refugiados”

O protótipo do negócio foi testado em julho de 2015 num curso de férias. O investimento inicial foi de 5 mil reais, usado na confecção das apostilas e compra de materiais de apoio à sala de aula. Mas o maior ativo do Abraço Cultural não se mede em reais: o voluntariado é a base do negócio, que conta com a abrangência da rede do Atados. Hoje, o Abraço tem 15 voluntários ativos, que representam 90% da mão de obra do negócio. Isso significa que, além dos professores, apenas a equipe pedagógica, formada por cinco profissionais, é remunerada pelo trabalho. Apesar de não prestar assistência jurídica, o projeto auxilia os refugiados a se cadastrarem nos órgãos municipais para que possam receber e emitir nota fiscal.

Teve Carnaval sim, com o bloco RefugiAmados: Vilja Klemola (finlandesa voluntária no Abraço Cultural), Ligia Magalhães (coordenadora de espanhol), Nany Gottardi (voluntária em comunicação) e Geneviève Cherubin (professora haitiana), entre outros (foto: Ilana Goldsmid).

Em cima do modesto trio, puxando o bloco RefugiAmados, Vilja Klemola (finlandesa voluntária no Abraço Cultural), Ligia Magalhães (coordenadora de espanhol), Nany Gottardi (voluntária em comunicação) e Geneviève Cherubin (professora haitiana), entre outros (foto: Ilana Goldsmid).

André conta que a opção inicial por um curso de férias não foi aleatória, mas baseada em dois fatores: período de tempo mais curto para testar o modelo e a possibilidade de conseguir parcerias para ocupar salas ociosas no período de férias sem se comprometer com um contrato de aluguel. O modelo funcionou e hoje eles contam com a parceria da Escola SP de Teatro, a Escola da Cidade e a Aldeia, que recebem um número limitado de bolsas de estudos em troca de espaço para a realização dos cursos, especialmente os de curta duração como os intensivos.

O preço competitivo foi outro fator do sucesso da versão piloto do projeto. Cobrando menos, eles conseguiram fechar as 12 turmas iniciais, um número três vezes maior do que o planejado. De cara, conseguiram atrair número suficiente de alunos para testar a metodologia dos quatro cursos de idiomas oferecidos: francês, inglês, espanhol e árabe. Hoje, o Abraço Cultural trabalha com quatro tipos de cursos: regulares, intensivos, individual e in company. Os cursos regulares têm duas aulas por semana (sempre à noite) ou uma aula aos sábados pela manhã, duração aproximada de quatro meses e custam 918 reais à vista, ou 4 parcelas de 243 reais (preços válidos até o dia 28 deste mês).

Para colocar o negócio na rua, os fundadores do Abraço Cultural precisaram de três meses integralmente dedicados à seleção e ao treinamento desses professores. Com o apoio das redes do Atados e do Adus, conseguiram atrair 30 candidatos. Desses, 70% não tinham nenhuma experiência anterior como professores. Um desafio e tanto para o negócio. “Ao final do processo, selecionamos 15 professores que foram preparados pela nossa equipe pedagógica e nos ajudaram a construir o material didático, contribuindo principalmente com referências culturais”, conta André. A carga horária dos professores, que são 17, atualmente, varia de 20 a 40 horas por mês.

AULAS EM QUE SE APRENDE MAIS QUE UMA LÍNGUA

Geneviève Cherubin, 33, é haitiana e umas das professoras do Abraço Cultural. É uma das poucas do projeto que já tinha experiência com educação: era professora infantil e atuou como voluntária no Haiti após o terremoto que destruiu o país em 2010. Ela chegou ao Brasil em junho de 2015 após um período de seis meses no Equador aguardando o visto brasileiro. Como muitos refugiados, Geneviève veio sozinha, deixando mãe e um irmão no Haiti. Ela tem um filho de 13 anos que mora com o pai nos Estados Unidos.

A haitiana Genevieve dá aulas de francês no Abraço Cultural.

A haitiana Geneviève Cherubin dá aulas de francês no Abraço Cultural. Ela usa elementos como música e gastronomia para ganhar atenção dos alunos e aproximar a turma do idioma (foto: Camila Zoe Frias).

Trabalhando no Abraço ela tem a chance de recomeçar e ganhar autonomia. Enérgica e bem humorada, conduz suas aulas de francês com entusiasmo e sua didática e linguagem corporal permitem que só se fale francês, mesmo com alunos iniciantes, que parecem não ter dificuldades em compreendê-la, como pudemos observar ao assistir uma de suas aulas do curso de férias.

A haitiana, que além de francês fala inglês e crioulo, usa elementos de sua cultura como a música e a gastronomia para se aproximar da turma e ganhar a atenção dos alunos. Nesta particularidade se revela a metodologia do projeto, focada na interação com os professores e vivências culturais. Daí, as aulas culturais serem parte do currículo dos alunos.

Além das aulas regulares, os alunos são convidados para um workshop mensal de tradições, que pode envolver culinária, dança, literatura, cinema, curiosidades, política e história de um país tema. E quem é de fora é bem-vindo também. Os ingressos para participar destas atividades culturais custam 10 reais. Para este ano, a ideia é que essas vivências se tornem um curso à parte. Além disso, os fundadores do Abraço querem promover eventos para integrar crianças brasileiras e filhos de refugiados, o Abracinho Cultural.

Um dos professores que se destacam nessas aulas culturais é o sírio Ali Jeratli, 27, que dá aulas de árabe. Ali é muito extrovertido e sempre que tem a oportunidade ensina aos alunos danças e músicas típicas de seu país. Com um português já afiado, ele diz:

“Quero quebrar o estigma da guerra e mostrar aos brasileiros que a Síria é um país com uma cultura e história muito ricas”

Há quase dois anos no Brasil, Ali é formado em hotelaria e trabalhava em Damasco na rede de hotéis Four Seasons treinando novos funcionários. Antes de chegar em terras brasileiras, ele deixou a Síria devido à falta de emprego na rede hoteleira. Morou no Iraque e na Turquia, onde chegou a tentar um visto europeu, sem sucesso.

Ali (com a mão levantada), ensina dança síria num dos workshops do Abraço Cultural. Profissional de hotelaria, ele tornou-se professor de árabe no projeto.

O sírio Ali Jeratli (com a mão levantada), ensina danças típicas de seu país num dos workshops do Abraço Cultural. Profissional de hotelaria, ele tornou-se professor de árabe e inglês no projeto (foto: Ilana Goldsmid).

Por aqui, logo nos primeiros meses, viu as portas se abrirem ao conseguir uma oportunidade de trabalho na Copa do Mundo. “Fiz a entrevista e, só depois que me disseram que eu passei, descobri que ia trabalhar para a Fifa, como tradutor, durante a Copa do Mundo. Foram 40 dias de trabalho, no total. Nem conseguia acreditar. Foi a realização de um sonho na minha vida.” Depois dessa experiência, ele se sentiu encorajado a dar aulas particulares de árabe e inglês, o que abriu caminhos para chegar até o Abraço Cultural.

APESAR DE SER ÚNICO, O NEGÓCIO É ESCALÁVEL

“Nossa metodologia e o modelo de negócio são replicáveis. Desde o início essa foi uma preocupação nossa”, afirma André. Neste ano, o Abraço Cultural começa a sua expansão e mira o Rio de Janeiro, onde Daniel, um dos idealizadores do projeto, já lidera a seleção e treinamento de professores. A partir do segundo semestre, os cariocas poderão usufruir dos cursos de idiomas do Abraço.

Duplicar o número de alunos, assim como aumentar o quadro de professores são metas para 2016. Já a projeção de faturamento para o ano é de 300 mil reais. Para chegar lá, alguns pontos nos quais já tiveram problemas se tornaram prioridade para os empreendedores: cuidar do orçamento, sem descuidar dos pequenos gastos e prever o turn over dos alunos. Além disso, eles pretendem investir mais energia nos cursos corporativos, o Abraço in Company. Ter uma sede própria também está nos planos.

Se depender do início deste ano, as metas serão atingidas. Assim como aconteceu em julho passado, o curso de férias, realizado neste janeiro, teve salas cheias: 80 alunos se dividiram em 12 turmas. Agora, o Carnaval já passou e é hora de retomar os cursos regulares. Não há taxa de matrícula e aos interessados basta preencher um formulário no site do projeto para se inscrever. Os cursos começam no próximo dia 29 de fevereiro. Como se diz por aqui, é só correr para o abraço.

DRAFT CARD

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  • Projeto: Abraço Cultural
  • O que faz: Oferece cursos de Idiomas e Cultura, ministrados por refugiados
  • Sócio(s): as instituições Atados e Adus
  • Funcionários: 5 (além de 20 professores e 50 voluntários)
  • Sede: São Paulo
  • Início das atividades: julho de 2015
  • Investimento inicial: R$ 5.000
  • Faturamento: R$ 160.000 (em 2015)
  • Contato: mari.garbelini@atados.com.br e carolina@atados.com.br
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