“A verdade é que a gente não sabe nada sobre o que a gente come. Nada. E a indústria quer isso. Porque no momento em que a gente fizer perguntas incômodas, o sistema desmorona.”
Quem dispara essa afirmação-paulada aí de cima é Bruno Grossman, 38. Ao lado do sócio, Alexandre Tenenbaum, ele está à frente da Acolheita, que se define como “um mercadinho de bairro que não abre mão da comida de verdade, justa e local”.
Quem visita o estabelecimento, numa esquina de Botafogo, na Zona Sul do Rio, depara com um mural onde há fotos e nomes dos fornecedores, além de informações como a que distância fica e até mesmo qual a margem de lucro do negócio:
“São informações que eu sempre quis saber. A maçã que eu estou comprando: de onde veio, qual a distância percorrida? Quando ela foi colhida, por quem? Quanto a pessoa recebeu de salário? Teve plástico envolvido no armazenamento ou é economia circular? É um mercadinho ‘no bullshit’, realmente”
À venda no local há hortifrútis orgânicos, laticínios, carnes, vinhos, produtos de mercearia e de limpeza, entre outros, num total de 600 itens.
RECÉM-FORMADOS, SEM SABER O QUE FAZER, OS DOIS VIRARAM CONSULTORES
Bruno e Alexandre são amigos de infância, desde o tempo que iam de ônibus juntos para a escola. Na hora do vestibular, o primeiro escolheu Psicologia, o segundo começou cursando História, depois trocou para Relações Internacionais.
Recém-formados, só sabiam que não queriam trabalhar em empresa. Bruno, o psicólogo, tampouco desejava clinicar. O caminho era empreender.
“E aí, tivemos a ‘ideia mais idiota do mundo’ de virar consultor, sem ter experiência nenhuma na vida [risos]… A gente não sabia nada, mas tinha muita cara de pau, e começamos a bater na porta de pais de amigos e parentes, oferecendo consultoria para pequenos negócios”
Durante uns três anos eles seguiram nessa toada, atendendo restaurantes, lanchonetes, lojas de roupas, consultórios de dentista…
“Eram negócios diferentes, mas com um problema em comum. Qual? O dono está lá no dia a dia, apagando incêndio, não sabe como criar uma marca, como treinar equipe, não sabe se diferenciar da concorrência…”, diz Bruno.
ELES EMPREENDERAM (E DEPOIS VENDERAM) UMA REDE DE FROZEN YOGURT
Nessa época, meados dos anos 2000, bombava uma marca de temakerias no Rio. “A rede Koni começou com uma loja pequenininha no Leblon, uma operação supersimples, com um produto só”, lembra Bruno.
O modelo inspiraria a segunda jornada empreendedora dos dois rapazes.
“Queríamos um produto que pudesse ser personalizado, exigisse baixo investimento e permitisse crescer com um modelo de franquia… E assim, topamos com o conceito de frozen yogurt. Fundamos a Yoggi no fim de 2008, crescemos bastante, vivemos aquele furacão das lojas de iogurte…”
Em 2012, Bruno e Alexandre venderam a Yoggi para a BFFC, hoje também dona das marcas Bob’s, Pizza Hut e KFC. Permaneceram no grupo como executivos — Alexandre ficou cinco anos; Bruno, uns três.
“Achamos que seria interessante esse aprendizado”, diz o empreendedor. “Afinal, não tínhamos tido formação tradicional na área [de alimentação], nem de business…”
LER RÓTULOS DE ALIMENTOS FOI UM MOMENTO-MATRIX: IMPOSSÍVEL VOLTAR ATRÁS
O comichão de empreender seguia forte, mesmo após a venda da Yoggi. Enquanto isso, a dupla ia despertando cada vez mais para a questão da alimentação.
Um gatilho foi assistir ao documentário Food Inc. Bruno conta que o filme “explodiu” sua cabeça. Nessa explosão pipocavam perguntas: qual o caminho da comida até chegar ao nosso prato? Como o produtor, os animais e o meio ambiente são tratados nessa cadeia?
“A gente começou a ficar mais críticos com nossas compras de alimentos. Fiquei obcecado em ler rótulos no supermercado. E depois que você começa, é um caminho sem volta: aquele “momento Matrix” em que você toma a pílula e acorda para o mundo e vê que nada é o que parece…”
Esse despertar nem sempre vem de uma hora para outra; muitas vezes, é um processo. Bruno conta que Alexandre, o sócio, desde garoto via a avó dele fazendo iogurte, e um dia quis imitar, então foi ao supermercado e comprou leite.
A avó, porém, avisou: você não vai conseguir fazer o iogurte, porque isso não é leite. Como assim?
“Demorou anos para ele entender. O leite da época dela era fresco, e hoje a regra é o leite UHT, em caixinha. É difícil fazer queijo, iogurte, com leite de caixinha, porque é um alimento praticamente morto. E queijo, iogurte, são alimentos vivos.”
PARA COLOCAR A ACOLHEITA DE PÉ, ELES CONTARAM COM APOIO DO SEBRAE
Para evitar o supermercado já havia opções no Rio de Janeiro. Foi o que Bruno e Alexandre descobriram quando abriram os olhos para o tema:
“Por exemplo, para comprar o pão de fermentação natural, a gente ia na Slow Bakery, famosa padaria que inspirou tantas”, diz Bruno. “Para comprar produtos de mercearia, a gente ia na Junta Local…”
Os dois amigos passavam o fim de semana pingando de lugar em lugar para conseguir comprar os ingredientes que cada um topava em sua cozinha.
“Era um esforço muito grande para comprar aquilo em que a gente acreditava. Foi daí que percebemos uma oportunidade: pôxa, e se a gente tivesse um local único, aberto seis dias por semana, que entregasse conveniência?”
Foi assim, para resolver o próprio problema, que eles idealizaram e puseram a Acolheita de pé. O objetivo era reunir sob um mesmo teto as mercadorias de diversos de pequenos produtores. Mas como acessá-los quando você não ninguém?
“Contratamos a consultoria do Sebrae”, diz Bruno. “Eles têm um setor de orgânicos no RJ e nos abriram as portas para inúmeros produtores que se tornaram superparceiros nossos e que estão com a gente até hoje.”
FOI PRECISO CATIVAR OS PRODUTORES E MONTAR UM SISTEMA DE CARONA
Para formar essa rede de fornecedores ponta-firmes, Bruno e Alexandre precisaram madrugar muito, pegar estrada, dirigir até a roça, conhecer os produtores de perto. “Éramos dois garotos com cara de ‘perdidos da cidade’, contando um sonho”, diz Bruno.
Para criar uma cadeia logística, foi preciso superar a desconfiança dos agricultores: pelo visto, outros jovens da cidade já tinham aparecido por lá com um papo de revender cestas de orgânicos, mas o projeto não foi adiante…
Outro obstáculo era que muitos desses produtores não tinham caminhão ou nem mesmo um carro com o qual pudessem realizar entregas
“Tivemos que marcar reuniões com todos os produtores de cada região e montar um sistema de posto avançado e um sistema de carona. Teve uma localidade em que a gente fez parceria com um hotel, os produtores deixavam as mercadorias num depósito do hotel, e outro produtor parceiro buscava de caminhão”
Esse esquema trouxe um “impacto enorme” para o pequeno produtor, diz Bruno.
“A gente está abrindo um canal de venda, de distribuição com ele, e é uma renda nova. Isso muda a vida do cara. E foi muito legal esse sistema de parceria.”
COM ECONOMIA CIRCULAR, A GOIABADA FICA “MUITO MAIS GOSTOSA”
Bruno calcula que essa rede de fornecedores gire em torno de 200 pessoas. Há exceções (como o gaúcho Acir Boroto, de Garibaldi, que fornece vinhos naturais e charcutaria de porcos caipiras), mas a maioria se encontra em terras fluminenses, a pouco mais de uma centena de quilômetros.
É o caso do casal Nicole e Marc, do Sítio Quaresmeiras, em Nova Friburgo, na região serrana. “Além de legumes, a gente compra com eles biscoito, figada e uma goiabada maravilhosa…”, diz.
O doce é vendido em grandes potes de vidro, que depois retornam para o produtor. Mas precisa? Por que não em embalagens recicláveis, de plástico ou papelão?
“A gente sabe que reciclagem é enganação, para inglês ver. Não resolve muita coisa. O que a gente tem que estar buscando é economia circular — circular mercadorias com zero de resíduo. Pode até ter embalagem, mas tem que ser reutilizada”
Por meio da economia circular, afirma Bruno, a goiabada artesanal fica “muito mais gostosa”.
“Você come sabendo que não foi gerado nenhum resíduo nessa cadeia. Parece simples, mas eu não conheço nenhum supermercado que tenha feito isso. ”
VOCÊ SABE O QUE SÃO SEMENTES CRIOULAS?
Com outro produtor, Derli Rodrigues, de Paraíba do Sul (RJ), a Acolheita mantém uma parceria para plantar sementes crioulas. Conhece?
“No supermercado moderno, você vê dois tipos de maçã, três tipos de tomate, um tipo de milho e por aí vai. Só que tem centenas de variedades e culturas nessa espécie”, diz Bruno. “O legal dessas sementes crioulas é que elas podem ser replantadas. Isso é incrível.”
O problema é que essas sementes geram hortaliças que fogem do padrão esteticamente comercial, o que muitas vezes afasta o agricultor.
“O produtor não vai plantar por conta própria. Ele tem medo que ninguém vá comprar, e semente é uma das partes mais caras da produção… Então nós compramos e fornecemos essas sementes crioulas”
Ajudar a recuperar a diversidade de espécies e de saberes culinários faz parte do escopo da Acolheita.
“Já estamos na terceira colheita de tomate crioulo. Eles não têm aquela carinha de tomate-de-desenho-animado, não é perfeitinho como aquele tomate aguado do supermercado… Mas o que falta de perfeição estética, sobra em termos de sabor.”
O QUE FAZER COM O CAMINHÃO CHEIO QUANDO AS FEIRAS DE ORGÂNICOS FECHARAM?
Na virada de março para abril, naquele começo de quarentena, as feiras orgânicas do Rio foram fechadas de uma hora para outra.
E aí, Derli se viu num aperto.
“Ele ligou desesperado: ‘meu caminhão está carregado e não tenho para onde ir, o que eu faço?’, E a gente: Derli, traz para cá, a gente dá um jeito. Tem muito chef que agora quer comida fresca de produtor conhecido… Então, bota na internet, no Instagram, mas o cara não pode perder [a produção]”
O agricultor levou as mercadorias para o Rio, e o pessoal da Acolheita se mobilizou para ajudar a escoar os hortifrútis junto a restaurantes da cidade.
“A gente sempre dividiu perda”, diz Bruno. “Já aconteceu de produtor ter algum azar, algum problema de clima, de praga… Achamos importante essa relação franca, transparente.”
A COVID TROUXE CAOS E O DESAFIO DE LIDAR COM UM BOOM DE CLIENTES
Não foi só o agricultor que passou perrengue na pandemia. O empreendedor conta que nunca trabalhou tanto quanto nos primeiros meses da Covid, de março a maio. O delivery, diz, cresceu cinco vezes da noite para o dia.
“Foi um caos. A gente não era shopper, não montava cestas… Tivemos que criar uma linha de montagem da noite para o dia. Agora, tenho até hoje uma pessoa fixa no WhatsApp para atender o pedido, outra que monta o pedido, e uma que faz a expedição…”
Segundo Bruno, num primeiro momento os supermercados cariocas não deram conta da demanda, o que fez a Acolheita bombar de novos clientes. Ótimo, por um lado. Mas por outro…
“Sem nos conhecer, os clientes presumia que a gente era uma grande rede de supermercado, com uma central de telemarketing… Eles ligavam e queriam fazer pedidos! Imagine fazer supermercado por telefone?! ‘Tem banana? Está verde ou madura? Ah, não sei se quero, deixa eu perguntar para a minha filha…’”
Com jeitinho, diz Bruno, eles pediam que os fregueses mandassem mensagens de texto. “Tem cliente que entende e valoriza, mas tem cliente que perde a paciência… Tivemos que ter essa competência de explicar.”
UM ESTABELECIMENTO LOW-TECH, QUE FOGE DA “LÓGICA CAPITALISTA TRADICIONAL”
Fidelizar o cliente e comunicar diferenciais por meio do delivery é difícil para estabelecimentos com alma de mercadinho de bairro.
“O cliente [que não conhece] acaba presumindo que o meu alface é igual ao do vizinho…”, diz Bruno. “É na loja física que a gente consegue ter uma experiência de consumo mais real.”
O expediente, que antes ia até às 20h, agora se encerra às 16h. Bruno diz que já recebeu elogios pelo funcionamento restrito, que foge da “lógica capitalista tradicional” de abrir todo dia do ano, “das 7h às 22h”, inclusive feriados.
“A gente deve estar muito errado, porque estamos indo contra todas as tendências empresariais do momento. Somos low-tech: não tem chatbot, não tem self check-out, nem nunca vai ter… Não funcionamos 24 horas por dia, sete dia por semana, não tem monitor digital na loja…”
Essa pegada low-tech transparece na relação pessoal com os clientes (“sei o nome de centenas deles, sei da vida deles, da família…”) e também no nome do estabelecimento, que vai além do trocadilho com “a colheita”.
“Mais do que a colheita rural, queremos enfatizar o acolhimento, queremos falar de acolher. Talvez seja do que o mundo mais precise agora: compreensão, acolhimento, afeto…”
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