Defina numa frase o que esse ano foi para você.
Para mim, foi o ano da insônia. De um lado, fiquei com o sono desregrado. Como se estivesse num eterno feriado, sem hora para dormir – só que tendo hora para acordar no dia seguinte.
De outro, simplesmente perdi o sono. Em várias noites. Começava a pescar com o livro na cama. Colocava o livro de lado e era o que bastava para o olho estalar no escuro. Pegava o livro de novo. E esse ciclo se repetia muitas vezes. Às vezes até o dia começar a clarear. (Logo eu que sempre dormi bem. E bastante. E na hora.)
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Para mim, foi também o ano de encarar a incerteza. De admitir a insegurança e trabalhar com ela. Isso acontece para lá da ansiedade – ansiedade é ficar criando cenários e sofrendo por antecipação; o que nos aconteceu em 2020 foi o cenário arrombar a porta da frente e se aboletar no sofá da sala.
Lidar com a má notícia, depois que ela se consuma, é quase sempre mais fácil do que lidar com a expectativa da má notícia. Então a gente aprendeu a lidar com as perdas que a pandemia impôs. Não tínhamos alternativa. A realidade estava dada
Em alguns casos, paradoxalmente, essas perdas se transformaram em ganhos – aprendemos lições importantes. (Estamos aprendendo.) Talvez não percamos mais tanto tempo em deslocamentos desnecessários. Talvez repensemos um pouco o jeito como gastávamos nosso dinheiro. Ou os alimentos que escolhemos ingerir. Talvez façamos mais exercícios em casa. Talvez façamos questão de abraçar mais apertado e de olhar mais demorado no fundo do olho de quem amamos.
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Esse foi o ano em que reaprendemos a trabalhar. Em que trouxemos o trabalho para dentro de casa. E em que, em contrapartida, a vida doméstica, privada, invadiu fisicamente o mundo do trabalho.
A divisão entre vida profissional e vida pessoal, que já era tênue, desapareceu. (Ou, ao contrário, ficou ainda mais evidente. E necessária.)
Cabelo fora de corte, roupas mais confortáveis, ruídos domésticos, filhos, cachorros e gatos foram admitidos no cânone do trabalho.
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Esse também, para mim, no âmbito dos negócios, foi o ano da estratégia. De remapear cenários, olhar mais adiante e repensar possibilidades.
Ao mesmo tempo, esse foi o ano da tática. Da microgestão, de cuidar do curtíssimo prazo. Foi preciso segurar os custos sem esterilizar a terra. Buscar novas receitas sem calcinar o time. Implantar uma política de redução de danos e seguir caminhando, com direção e esperança.
De um lado, foi o ano de exercitar a paciência. Porque, segundo o filósofo Paulinho da Viola, é preciso fazer “como o velho marinheiro/que durante o nevoeiro/leva o barco devagar”.
Foi também o ano de aprender que há coisas incontroláveis diante das quais a única coisa que lhe resta fazer é se adaptar da melhor maneira possível. Respirar fundo e dar o tempo necessário a que elas cheguem, se instalem e cumpram seu ciclo
De outro lado, esse foi o ano de acelerar. De não se deixar paralisar, de sair do corner jabeando de volta. Tirei projetos da gaveta. Mais projetos do que talvez fosse razoável investir num ano de investimentos represados. Mas quem sabe a melhor hora de pedir a palavra não é justamente quando todos estão em silêncio?
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Esse também foi o ano de praticar a compaixão. De perceber que muitos ao redor estavam vivendo situações muito mais duras. E de compreender que eu talvez estivesse em uma posição privilegiada, em meio ao vendaval. E construir um olhar e gestos solidários a partir dessa percepção.
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Esse foi ainda o ano em que um bocado de reaprendizagens e ressignificações se impuseram. A mim, que às portas dos 50 julgava já ter todas as premissas bem fundadas no terreno da justeza e da correção. O mundo deu provas de renovação, de frescor, de dinamismo. E tem me convidado a recalibrar meu jeito de enxergar questões de gênero e de raça, por exemplo.
Logo eu que sempre fui um homem feminista. Logo eu que sempre me bati contra o racismo. Descobri, perplexo, e irritado comigo mesmo, o tanto de sexismo e de racismo estruturais que trago comigo, simplesmente por ter vivido num determinado ambiente e por pertencer a uma determinada geração.
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Esse, por fim, foi o ano em que percebemos com mais clareza aquilo que realmente importa. Aquilo que nos faz falta. As distâncias que machucam – e aquelas que vieram para bem. As pessoas que precisamos ter por perto – e aquelas que não. (Se você fez a sua parte em cada estágio desse longo período de quarentena, você sabe bem do que eu estou falando.)
Ganhou nitidez a diferença entre aquilo que é essencial (e que talvez estivéssemos negligenciando) e aquilo que é supérfluo (e que talvez estivéssemos tomando por indispensável).
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Chego ao fim de 2020 exausto. Mental e fisicamente. Como tantos. Como você, provavelmente. Ganhamos produtividade, nos tornamos mais eficientes – mas os limites da nossa saúde emocional e da nossa capacidade física continuam os mesmos.
Um amigo pontuou bem: antes, a gente fazia duas reuniões numa tarde, com tempo de descompressão entre elas (ainda que presos no trânsito), e esse era um turno muito bem aproveitado; hoje, você faz cinco reuniões nesse mesmo período, emendando uma na outra, sem tempo de ir ao banheiro nem de tomar um copo d’água. Sem poder trocar uma ideia no corredor com o colega.
E termina o dia tonto. Com uma sensação de insuficiência.
Ou vazio. Com uma sensação de falta de sentido.
Encerro o ano cansado de planejar e de executar. Cansado de sonhar e de realizar. Com saudade de poder pegar um avião, viajar, atravessar uma fronteira. Ou simplesmente de poder ir a um restaurante ou a um cinema. Com desejo de recuperar meu direito de ir e vir – nem que seja para decidir ficar dentro de casa
Sabendo que ainda teremos muitos dias de lockdown pela frente. Que teremos que curar o esgotamento do isolamento social com mais isolamento social. Que teremos férias frustradas – presos na sala/cela, sem possibilidade de trocar de ares ou de mudar de ambiente. (O que se há de fazer?)
Seja como for, é hora de descansar um pouco. A mente e o corpo. De fechar a agenda por alguns dias. E desconectar de verdade.
É o que lhe desejo. Um far niente tão dolce quanto lhe for possível. Dias dedicados ao hedonismo e à autoindulgência em seu confinamento.
Recarregue bem as baterias. Acredite: tem muita coisa bacana para a gente construir em 2021.
Adriano Silva é fundador da The Factory e Publisher do Projeto Draft, Founder do Draft Inc. e Chief Creative Officer (CCO) do Draft Canada. É autor de nove livros, entre eles a série O Executivo Sincero, Treze Meses Dentro da TV e A República dos Editores.
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