Perdi meu trabalho para a inteligência artificial no ano passado. Desde 2020 (além de colaborar com o Draft), eu trabalhava como produtora da versão em português de um canal de divulgação científica no YouTube.
Minha função era coordenar uma equipe de tradutores, locutores, editores e gerentes de redes sociais que, ao longo de três anos, consolidou um negócio lucrativo para a empresa.
Semanas antes da demissão, minha chefe e eu comemorávamos os bons números e fazíamos planos para expandir ainda mais o canal ao longo do ano. Então, de repente, a empresa anunciou que estava com o orçamento apertado e teria que cortar 80% dos funcionários. Curiosamente, a decisão coincidiu com o “boom” do ChatGPT
Eu não faria essa associação, não fosse o fato de que, poucos meses depois, os vídeos que antes produzíamos com tanto cuidado passaram a ser narrados por uma voz robótica e colecionavam erros. Do português a conceitos científicos mal traduzidos, o resultado ficou confuso. E a empresa, que alegava problemas financeiros, continua operando normalmente — inclusive, vi no LinkedIn que estão contratando.
Recentemente, o marido de uma amiga passou por situação semelhante. No caso dele, que trabalhava na área de tecnologia, a transição foi mais gradual. “Do ano passado para cá, as funções se acumularam e se extinguiram muito rápido”, ele me contou.
Até que, há poucos meses, a necessidade de humanos acabou completamente — cerca de 60 pessoas perderam o emprego.
“Quando o ChatGPT surgiu, me preocupei, porque o que eu fazia era fácil de programar,” confessou o meu conhecido. “A gente se sente mal, as coisas mudam de forma muito rápida, mas a vida precisa ser preparada desde o começo. Como pode uma pessoa estudar, se preparar para uma função, e depois perceber que todo esse tempo foi perdido porque foi substituída por IA?”
Eu compartilho desse sentimento. Ao mesmo tempo, vivo uma contradição: uso IA quase todos os dias no trabalho. Não consigo mais conceber transcrever uma entrevista sem a ajuda de um robô, e se estou insegura com uma entrevista, peço ao GPT para conferir se minhas perguntas estão coerentes
A mesma IA que tirou meu emprego agora torna meu trabalho mais ágil. E o mercado parece se alimentar dessa contradição.
Desde o lançamento do GPT, a inteligência artificial generativa mais popular, vimos cartas abertas contra os experimentos de IA assinadas por nomes tão diferentes entre si que vão do controverso bilionário Elon Musk ao historiador best-seller Yuval Noah Harari.
Enquanto empresários da tecnologia defendem que os seres humanos não serão substituídos, vemos pesquisas revelando que, ao contrário, essa substituição está acontecendo muito mais rápido do que imaginamos.
Quando pedi a uma IA generativa para continuar este texto, ela respondeu: “Entendo sua frustração com a forma como a inteligência artificial está transformando o mercado de trabalho. É natural se sentir ameaçado quando sua profissão e sua fonte de renda são afetadas por essas mudanças tecnológicas”.
Mas meu insight (humano) não é esse. Com base na minha experiência, na do meu conhecido e em pesquisas que indicam que 61% das grandes empresas norte-americanas pretendem automatizar tarefas humanas usando IA, acredito que pouco tem sido discutido sobre o papel das empresas nesse novo cenário
Enquanto, no âmbito público, as discussões têm cunho mais filosófico e envolvem tanto as possibilidades positivas da IA quanto os riscos que ela pode trazer para a humanidade, pouca atenção tem se dado ao papel das empresas na mitigação de um problema que já está em curso: a substituição de mão de obra humana por robôs.
São questionamentos que vão além de como reinserir os novos desempregados no mercado e envolvem aspectos que vão do processo de produção até questões éticas de governança.
Por exemplo, em empresas que proíbem o uso de inteligência artificial por questões de segurança, como lidar com funcionários que secretamente usam essas ferramentas? Não seria mais inteligente buscar formas de utilizá-las de maneira segura para reduzir a carga de trabalho dos funcionários?
Se isso acontecer, como convencer as empresas a adotarem jornadas menores, em vez de acumularem funções e, no fim, demitirem trabalhadores? Em casos de demissões provocadas por essa substituição, faria sentido exigir maior transparência?
Quando envolve a produção de algo que será consumido por humanos, seria adequado avisar que aquilo foi criado por robôs? E qual o nível de controle humano consideramos necessário manter em uma empresa?
Pouco antes da minha demissão, entrevistei a engenheira Martha Gabriel, que leciona sobre Inteligência Artificial na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), para uma reportagem sobre o assunto.
Na época, ela alertou que “abrimos uma caixa de Pandora, que nos deu um poder enorme” e que precisávamos, como sociedade, parar e refletir para não perder o controle.
Quase dois anos depois, vejo que estamos nos distanciando cada vez mais dessa reflexão. Do ponto de vista da produção, não estamos aproveitando de forma justa e inteligente o potencial da inteligência artificial
E, como sociedade, não estamos refletindo sobre o papel que esperamos que as empresas — e não os governos ou desenvolvedores de IA — desempenhem nesse cenário de transformação do mercado de trabalho.
Marília Marasciulo é jornalista formada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), pós-graduada em roteiro pela Universidade da Califórnia, Los Angeles (UCLA) e mestranda em Divulgação Científica na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Com passagem pela redação do Estadão, colabora com o Projeto Draft e tem reportagens publicadas em veículos como BBC Brasil e UOL.
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