“Para enfrentar o ‘coronelismo social’, percebi que precisava me empoderar antes de ajudar os outros”

Emanuelly Oliveira - 26 jan 2018Emanuelly Oliveira nasceu no sertão do Ceará e conta como enfrentou resistências para conseguir seguir com seu projeto social. Ela precisou encontrar a força que estava dentro dela.
Emanuelly Oliveira nasceu no sertão do Ceará e fala dos obstáculos que enfrentou para poder continuar com seu negócio social. Até encontrar a força que precisava dentro de si mesma.
Emanuelly Oliveira - 26 jan 2018
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por Emanuelly Oliveira

Sempre pensei que o caminho de empreender não seria fácil, mas a realidade é que ele é árduo ao extremo. Pelo menos, foi assim comigo. Fui testada até o limite, como se o universo quisesse realmente me fazer provar que era esse o meu caminho, que era mesmo essa a minha escolha.

Para começar a história, nasci no sertão do Ceará, em uma cidade chamada Quixadá. A cidade está inserida no polígono das secas, portanto, entra ano e sai ano, nós sofremos com a estiagem. Não é exatamente como se vê na TV. A terra é seca, sim, mas a singularidade do local não é mostrada na íntegra. Nós, seres humanos, estereotipamos tudo. Tudo mesmo.

No sertão há diversidade, há pessoas singulares, há vida

Nesse contexto, comecei a fazer trabalhos sociais ainda muito jovem. Quando iniciei meu primeiro projeto, visitando famílias do semiárido, ele consistia apenas o ato de ajudar mesmo: visitar, escutar, fazer campanhas de arrecadação de brinquedos e alimentos. Era bem filantrópico, mas eu já vislumbrava além. Eu notava, naquelas famílias, que só o trabalho que estávamos fazendo não mudava o mundo em si. Ajudava, mas não tinha um impacto duradouro. Percebi que a educação, os processos de aprendizagem, é que contribuíam de fato com a mudança de vida dessas pessoas. Eles traziam autonomia e — isso sim! — mudava o mundo.

Na minha cabeça infantil, eu já vislumbrava uma educação mais livre, mais “maker”, mais dinâmica, ativa, enfim, significativa. Eu não sabia nada a respeito disso tudo, mas já sonhava com algo assim. Dizia para minha mãe que queria conhecer o mundo fazendo trabalhos que contribuíssem para a vida das pessoas. Era um sonho meio que “mini-mochileira das galáxias”, mas que fazia total sentido na minha cabeça. Apesar de minha mãe achar loucura, irrealizável, ela nunca me disse que eu não poderia fazer o que acreditava.

Já adolescente, decidi que iria colocar aquela educação que eu idealizava em meus projetos e, além de ser uma fã alucinada dos Hanson e de Sandy & Jr, eu também era fã de Bill Drayton, o norte-americano fundador da Ashoka (organização social pioneira nos trabalhos com empreendedorismo social no mundo) que tocava meu coração. Adorava tudo aquilo e, por mais que eu não soubesse nada de prático a respeito, tudo fazia sentido na minha cabeça. Então, resolvi fazer o que sentia que era certo, necessário.

Criei um projeto de multiculturalismo na educação (eu chamava assim) para trabalhar geração de renda e ao mesmo tempo história de vida com um grupo de mulheres. Era uma cooperativa de bio-bijuterias, feitas com sementes do semiárido. As mulheres produziam as peças e ao mesmo tempo aprendiam sobre o bioma caatinga, sobre suas histórias de vida e recebiam noções de sustentabilidade para com o meio ambiente. Além disso, as peças eram vendidas e geravam renda para o projeto e para as mulheres.

Tudo muito básico e artesanal, mas deu certo e surgia assim o projeto Social Brasilis. À época, foi apoiado pela área de juventude da Ashoka Brasil, ingressei na rede deles, representei o Brasil em Boston no primeiro summit de Youth Venture da organização, fiz vários trabalhos de facilitação de projetos para jovens com empreendedorismo social e sim comecei a viajar o mundo e, não, não conheci o Bill.

Trabalhar com as mulheres do semiárido foi o pontapé inicial para aquela história de usar a educação como ferramenta para o empoderamento. Tornei-me ainda mais apaixonada por isso e por empreendedorismo de impacto social até entrar na universidade, me formar em Letras e, anos depois, já em minha sala de aula, em uma região periférica de Fortaleza, perceber que tudo estava muito parecido ainda com o cenário que eu via na infância.

Eu já era professora, formada, e continuava vendo jovens sendo perdidos para a violência urbana, violência doméstica, drogas, falta de referências positivas etc. Ali, em meio a esse caos social, tive a ideia de voltar a trabalhar as ferramentas do empreendedorismo social — agora, associada à tecnologia, para iniciar um processo educativo para o empoderamento. Nascia o Social Brasilis a versão 3.0 do meu antigo projeto, remodelado, digital, na vibe do momento, yeah! Porém, não foi bem nessa agitação que tudo começou.

O problema número 1 foi a falta de cultura local para o empreendedorismo, à época. Quando não se sabe bem o que é, não se dá importância àquilo. E eu ainda trazia a dinâmica dos negócios sociais! Se empreendedorismo já era algo novo, negócios de impacto eram uma novidade elevada ao cubo. Mas tinha mais.

Um certo “coronelismo social” passou a me perseguir. Já existiam pessoas fazendo trabalhos sociais e elas não queriam “mais uma” no páreo. Ainda mais uma mulher, jovem. Eu não era uma combinação muito bem vista.

Além de não fazerem parcerias, travavam lutas solitárias que não mudavam em nada a realidade social, só faziam alimentar seus egos. Ah, o ego palavrinha fácil no empreendedorismo. Tive que aprender a lidar com isso. A cada passo que eu avançava era um tal de “seu projeto não precisa disso”, “meu projeto é melhor do que o seu”, “não quero fazer isso porque já fiz”. Uma legião de experts de empreendedorismo que nunca sequer empreenderam.

Tornei-me alvo fácil de intimidações e elas inundavam minhas redes sociais. Fomos acusados de plágio, sendo que nunca havíamos publicado nada. Tive a impressão que alguém, que se dizia um grande acadêmico, insinuava que ele havia patenteado a palavra “empreendedorismo” e, depois, a palavra “jogo”. É absurdo, mas ele deixou no ar que eu corria o risco de ser processada.

Como falei acima, foram situações extremas. Denunciaram fotos em que nós mesmos, a equipe do projeto, aparecíamos. Tive um celular quebrado em mil pedaços quando ousei discordar de alguém e alertar sobre minhas opiniões e direitos. Tive, também, pessoas que se diziam próximas, tentando me fazer enxergar que tudo isso que estava acontecendo comigo por que eu era uma pessoa difícil de lidar, que ninguém queria ficar perto e que eu estava sozinha, literalmente sozinha.

Senti o peso da ansiedade, que se transformava em angústia, pânico, tive crises nervosas

Em nenhum momento senti o apoio desses “amigos”. Pelo contrário, ouvia comentários do tipo “ela está psicologicamente abalada, como vai conduzir um projeto?”.

Aí, percebi que precisava mudar.

Eu precisava me empoderar primeiro, para assim empoderar outras pessoas. Percebi que só vendo o brilho nos meus olhos as pessoas compreenderiam o propósito do meu negócio. E percebi que nada justificava atitudes agressivas ao meu redor.

Afastei-me de tudo que era tóxico e reiniciei o projeto do zero com uma “eu-quipe”. Passei a ser a responsável por tudo e, como não sabia nada sobre tecnologia (ou achava que não sabia), fui para os livros. À época, eu tinha uma carga horária puxada – 200 horas por mês em sala de aula e mais 100 horas em trabalhos de projetos da Unesco no Ceará. Mas se era isso que eu realmente queria, tinha que funcionar o esforço.

Estudei tudo sobre empreendedorismo, tecnologia, plataformas virtuais, didática, marketing. Busquei pessoas de referência no setor técnico do meu projeto – educação e tecnologia – me associei a eles e tentei aproveitar tudo o que sabiam. Estudei livros e teses de doutorado nas áreas referência. Apliquei para processos e busquei os primeiros parceiros para testar as primeiras metodologias desenvolvidas (meus ditos MVP’s). Fiz tudo isso após as 22h, todos os dias, quando chegava do trabalho e aos finais de semana.

Ergui minha voz. Agora eu sabia plenamente do que estava falando. Sabia o que estava propondo e o porquê

Junto desse processo, também descobri a parte chata de fazer o que se ama. No meu caso, o processamento e interpretação dos dados, os resultados do projeto em métricas, as estatísticas. É aquela coisa: você não gosta, mas precisa e essa é a vida, é uma questão de escolha e eu tinha feito a minha.

Nesse frenesi, reencontrei o Elvis Alves, em meados de 2016, que foi um jovem da rede Ashoka junto comigo. Ele era o publicitário que eu buscava, pois entendia de empreendedorismo social. Juntos, formamos a equipe do Social Brasilis para começar a rodar um projeto ousado: construir programas educacionais sob medida mediados por plataformas virtuais de aprendizagem.

Depois de tudo isso, pude entender que o empreendedorismo tem que vir de dentro das pessoas. É propósito, é acreditar no que se faz e só assim enfrentar todo o caminho, que é singular para cada pessoa.

O empreendedorismo é para todos, mas não é para qualquer um

É preciso ser resiliente e saber que entrar nisso com a finalidade de ser um milionário é uma grande ilusão, uma pedra no sapato.

Hoje, o Social Brasilis impacta diretamente mais de 500 pessoas, sendo que mais de 10 mil pessoas passaram por nós, indiretamente, em cinco programas educacionais e um corporativo desenvolvidos em um ano e meio de operação, através de parcerias chave e de duas pessoas que resolveram acreditar e começar um projeto com quase zero reais.

Isso prova que quem tem um porquê enfrenta qualquer coisa, como já dizia Viktor E. Frankl. E nós incorporamos isso, completamente, em nossa vida e em nossa rotina de empreender.

 

 

 

Emanuelly Oliveira, 30, é educadora, graduada em Letras pela UFC e pós-graduada em Gestão de Projetos. Desde os 10 está ligada a movimentos sociais, atuou na Ashoka, Unesco e Nuovi Orizzonti, entre outras e proferiu o TEDx “Em Rede Todos Podemos Ser Empreendedores”. É fundadora no Social Brasilis, que fomenta a educação empreendedora.

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