por Daniel Pires
Falar da gente é sempre complicado. É engraçado como o cérebro embanana quando você é confrontado a falar de si mesmo, da sua vida, escolhas, medos, carreira etc. E para mim, talvez, seja ainda mais complexo porque sou gago, e a gagueira é um distúrbio que afeta justamente o que nos distingue do resto dos animais do planeta: a capacidade de nos comunicar. Ou seja, não tenho como falar de mim sem, primeiramente, já deixar isso claro.
Nasci em 1984, na cidade de São Paulo e até os 10, 11 anos a gagueira não influenciou nas minhas relações. Todo mundo criança, ninguém liga, tá todo mundo brincando, aprendendo, todo mundo é inocente e ainda não fomos influenciados pela maneira como a sociedade impõe padrões “normais” para um vida “normal”.
A partir dos 12, quando os hormônios começaram a aflorar, os interesses começaram a surgir, a necessidade de fazer parte começou a aparecer e as coisas mudaram. Eu, apesar da “influência” (termo que vários profissionais ao longo da vida usavam para se referir a gagueira), não dava muita bola para o que os outros pensavam e consegui levar os anos de colégio numa boa, fazendo parte da turma de amigos “legais” da escola, sempre rodeado de pessoas que não se importavam e conviviam muito bem com isso.
O problema aparecia quando me via diante de uma situação onde a responsabilidade de conseguir alguma coisa era somente minha. Lidar com terceiros. E “problemas” que para a maioria das pessoas nunca nem passou pela cabeça, como a simples tarefa de pedir uma pizza.
Sim, com 16 anos, sozinho em casa, eu preferia dormir com fome do que ter o telefone desligado na cara por acharem que minha gagueira era trote
Foi aí que os questionamentos de como seria minha vida adulta começaram a me atormentar, diariamente, o tempo todo. Como eu me sairia em uma entrevista de emprego? Que tipo de profissão me permitiria ser bem sucedido sem ter que falar em público, tocar reuniões e fazer ligações? Como, em sã consciência, eu me sairia bem em uma dinâmica de grupo? Cara, isso na cabeça de um adolescente de 17 anos é perturbador.
Nesse meio tempo, em 2000, topei o investimento que meus pais propuseram e fui estudar em Chicago por um ano. Aterrorizado, entrei naquele avião com a certeza de que passaria o ano inteiro mudo. Você não imagina o tamanho da insegurança de tentar falar outra língua sendo gago, em uma cultura diferente, onde se é julgado dos pés à cabeça no primeiro minuto que se entra na sala de aula.
Mas foi ali, no meio desse pavor, que descobri algo que levo comigo até hoje: a capacidade de arriscar. E, veja bem, capacidade não é não ter medo. Medo a gente sempre tem. Se não tem medo, não é risco. Me joguei de cabeça e, adaptáveis que somos, me adaptei e fui me soltando. Logo no começo, foquei nas aulas de educação artística, pois ali conseguia me expressar sem ter que dizer nada. Eu falava através da pintura, da escultura, dos vídeos e das fotos. Descobri que minha profissão seria algo nessa área. E foi ali também que descobri outra paixão que 10 anos depois viria a se tornar praticamente minha vida: o hambúrguer.
Estados Unidos, hambúrgueres… né? Aprendi inglês, fiz amizades, tive outra família, namorei, enfim, vivi, e voltei para o Brasil em junho de 2001 focado em cursar a faculdade de Artes Visuais. Em 2006, me formei na Faap, com um trabalho de uma série de pinturas enormes que chamei ironicamente de “Fluente”, e saí de lá já trabalhando em uma produtora de vídeo como arte finalista. Foram nove anos ali, os quatro últimos como diretor de arte e arriscando de roteirista.
Mas nove anos é muita coisa e aquela vontade de correr riscos começou a bater na porta. Nesses nove anos eu praticamente casei e me separei, me mudei e passei a cozinhar por necessidade e isso se tornou um hobby. Passei a convidar amigos próximos para almoçar e jantar em casa como uma forma de juntar o pessoal no meio da rotina caótica que todo mundo vivia. Isso começou a fazer mais sentido pra mim do que passar 16 horas por dia trabalhando.
A questão do tempo começou a pesar: de que adianta se matar de trabalhar em algo que não é teu se, no fim do dia, você não tem tempo para nada?
Tempo passou a ser a coisa mais importante. E é. O teu também. Ele não volta.
Nesses jantares, eu exercitava meu cérebro a favor do meu tempo, me relacionando de verdade com as pessoas e, principalmente, me comunicando. Eu, Daniel pessoa, e não o Daniel profissional. E isso passou a fazer todo o sentido.
Passei a oficializar esses jantares usando o hambúrguer, que é de fácil aceitação, como pretexto para reunir pessoas dentro do meu apartamento para aprender, para conhecer, para expandir. Em um mês, com o boca a boca, eu recebia oito pessoas que não se conheciam toda segunda-feira. O desconforto que a gagueira prega era inevitável, mas logo isso virava assunto e pronto, eu estava literalmente em casa, fazendo novos amigos e conectando uma galera que talvez jamais se conheceria se não fosse ali.
Passei a vida usando atalhos para evitar me comunicar quando, na verdade, o que eu buscava era justamente o contrário
Minha vida mudou. Cinco meses depois, finalmente arrisquei. Larguei o emprego de nove anos para tocar essa maluquice de conexão de pessoas. O projeto que antes era um hobby tomou corpo, ganhou nome e virou o centro de tudo. Nasceu o Monday Night Burgers. Totalmente amador! Nunca estudei gastronomia e muito menos administração, mas meu tempo era mais importante do que isso tudo e o que fazer com ele virou minha vida.
A coisa cresceu, passei a fazer esses encontros em bares, restaurantes, hostels e até em Londres, onde entendi que essa vontade de conhecer pessoas e se conectar no offline não era uma característica somente dos brasileiros. A grana era infinitamente menor do que salário que eu tinha mas fixei uma meta: meu FGTS garantiria um ano para me bancar e eu teria esse tempo para fazer isso crescer.
Foi aí que me vi empreendendo, ainda que, até hoje, quando penso comigo mesmo ou quando me chamam de empreendedor, isso pareça um absurdo. Jamais o Daniel de 16 anos imaginaria que o de 33 teria seu próprio negócio. E foi aí também que os desafios foram aparecendo cada vez mais constantes e cada vez maiores. Agora, só dependia de mim. Me vi apresentando meu projeto para marcas gigantescas, em reuniões com nove pessoas em volta da mesa, ou seja, meu pior pesadelo agora era uma realidade e, bicho, como isso faz crescer!
A quantidade de portas fechadas já é enorme, sempre, e quando você acrescenta um distúrbio na comunicação nessa receita, imagina?
É sobre estar o tempo todo abraçado com o seu maior ponto fraco, e que você sabe que não tem “cura”, e mesmo assim seguir em frente
E, olha… dá! Foram 200 portas fechadas, mas as três abertas alavancaram o projeto, que hoje tem um ponto fixo, secreto, para não perder a característica inicial da coisa, que é o desejo de conhecer, de saber onde é. Hoje o Monday Night Burgers tem um clube, o Monday Night Club, com assinaturas mensais que dão direito a vouchers para serem usados ao longo do mês, com hambúrguer (que pode ser vegano ou vegetariano se a pessoa preferir), batata e uma bebida inclusos. Também não estou mais sozinho. Hoje somos três sócios e, como o modelo ainda é muito novo, estamos cheios de desafios pela frente.
Mas quer coisa melhor do que saber que vou usar meu tempo para solucioná-los e, de quebra, conhecendo centenas de pessoas toda semana que me acrescentam, me motivam e me ensinam? Isso não tem preço. It’s not about the burger.
Escolhi não falar sobre a dificuldade em empreender no Brasil porque isso não é novidade pra ninguém. É claro que é preciso investimento e muito, muito trabalho. Não precisa ser gago. Mas precisa de tempo.
E você, o que tem feito com o seu?
Daniel Pires, 33, é formado em Artes Visuais, trabalhou 9 anos como diretor de arte em uma produtora de vídeo. É idealizador e fundador do projeto Monday Night Burgers.