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“Não desmereço pesquisas com foco só em gênero. Mas quando não se faz o recorte de raça, dá a entender que isso é algo menor”

Dani Rosolen - 13 mar 2020
Silvana Bahia lembra da importância de celebrarmos as mulheres incríveis que estão ao nosso lado (foto: Olabi/Valda Nogueira).
Dani Rosolen - 13 mar 2020
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Da área de Humanas, a jornalista Silvana Bahia, 34, não poderia imaginar, anos atrás, que iria estar tão conectada com o mundo da tecnologia.  E que muito além de servir para programar ou desenvolver aplicativos, esta seria uma ferramenta para o combate a desigualdades sociais.

Em 2013, ela realizou uma oficina, a Rodada Hacker, com metodologia voltada para mulheres. Em seguida, teve mentorias com Stefânia Paola e continuou a aprender sobre o assunto. O interesse cresceu e, em 2015, começou a atuar como comunicadora no Olabi, um espaço dedicado à apropriação e democratização de novas tecnologias, localizado no Rio de Janeiro.

Como trabalhava como uma espécie de porta-voz da organização, circulando por espaços e eventos sobre cultura maker, tecnologia e inovação social, notou que quase não havia a presença de mulheres e negras nesses lugares. “Percebi que precisava trazer pessoas diferentes para essa discussão. Foi aí que em março de 2017 nasceu o PretaLab, para entender onde estão as mulheres negras que fazem tecnologia”, diz a coordenadora da iniciativa e hoje diretora do Olabi.

Desde a sua criação, o PretaLab realizou uma série de consultorias, imersões, curadorias, cursos e pesquisas (a primeira delas pode ser conferida aqui). O levantamento mais recente, chamado “Quem Coda Brasil“, em parceria com a consultoria global de software ThoughtWorks, mostrou o cenário das equipes de tecnologia no Brasil. Das 693 pessoas entrevistadas, 21% responderam que em suas equipes não há nenhuma mulher e 32,7% disseram não trabalhar com nenhuma pessoa negra (há mais informações sobre a pesquisa na entrevista abaixo).

Junto ao universo corporativo, o primeiro projeto do PretaLab foi a realização do processo de seleção para a ThoughtWorks, no começo de 2018. Com o nome “Enegrecer a Tecnologia”, o objetivo era contratar pessoas negras desenvolvedoras de software em Salvador para os escritórios da empresa em Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife e São Paulo.

Em agosto do ano passado, o PretaLab lançou um plataforma online que reúne o perfil de mulheres do mercado de tecnologia para conectá-las entre si e com empresas e setores que dizem não encontrar profissionais qualificadas. A coordenadora conta que ainda será feito um balanço de impacto, mas já recebeu feedbacks.

“Há muitos relatos de pessoas que através da plataforma encontram jovens negras desenvolvedoras na sua cidade e que antes nem sabiam de sua existência. Ou que tem sido mais fácil achar palestrantes.”

Leia a seguir o bate-papo com Silvana sobre a importância de celebrar a memória das conquistas das mulheres negras para estimular as meninas de hoje a sonhar com um futuro melhor.

 

A tecnologia é um setor mais ou menos elitista do que os outros?
Com certeza é mais elitista. O PretaLab fez um levantamento recente chamado “Quem Coda o Brasil” (#QuemcodaBR), que investigou como as universidades estão inseridas dentro dos times de tecnologia das empresas. Foram quase 700 respostas e o perfil das pessoas que estão produzindo na área de tecnologia, vindas dos cursos de graduação, é composto por uma maioria masculina (68,3%), branca (58,3%), jovem (77%) e de classe média (60%).

Em muitos casos, a formação em tecnologia é autodidata (45%, segundo o próprio Quem Coda Brasil). Qual conjunto de fatores explica a dificuldade de inserção das mulheres nessa área?
A questão do ensino é o ponto central. Dentro da nossa cultura as mulheres não são ensinadas a montar e desmontar coisas.

Nem todo mundo tem que ser programadora, desenvolvedora ou engenheira, mas experimentar é fundamental. Isso vem mudando, mas no geral a gente não é estimulada a participar desse universo

A imagem do Lego é ótima para ilustrar este assunto, porque enquanto o menino constrói e monta, a menina brinca de casinha. Esse estímulo é fundamental para muitas coisas de nossa vida e pauta o que é um comportamento de menino e o que é de menina. Isso já é um motivo que faz com que tenham poucas mulheres no campo tecnológico.

Ainda falando em dados, segundo o IBGE, mesmo quando conseguem ingressar na faculdade, quase 80% das mulheres abandonam o curso de TI no primeiro ano. O que leva à interrupção dos estudos?

O que ouço sobre a evasão das mulheres na universidade tem a ver com o próprio ambiente que os cursos criam: um lugar extremamente machista, onde o tempo todo elas são desafiadas a provar que são boas o suficiente para estarem ali

E geralmente você ouve: “Sou só eu e mais quatro mulheres na minha sala. Ou, sou eu e mais cinco mulheres, mas sou a única negra”. Já é um desafio se formar na universidade, imagina em um ambiente que não é agradável para as mulheres no geral. Acho que isso é algo que motiva a evasão.

Pouco a pouco, a academia incorporou gênero, mas segue trabalhando com perspectivas eurocentradas. Por quê?
Eu também gostaria de saber. É a dificuldade de lidar com a questão racial no Brasil. Uma negação institucionalizada do racismo. Na maioria dos campos, existe uma política pensada para a questão de gênero, mas no nosso país é preciso lembrar que mulheres negras e mulheres brancas não partem do mesmo lugar.

Eu não desmereço pesquisas com foco apenas em gênero. Mas quando não se faz também o recorte de raça, dá a entender que isso é algo menor, o que não fortalece a criação de um diálogo. É uma estratégia política não discutir e não gerar dados sobre esse assunto.

Qual a importância das políticas públicas de inclusão na área da tecnologia?
É preciso olhar para esse compromisso que é o rompimento com as desigualdades sociais. Não tem como o país ser desenvolvido ou a ciência e a tecnologia se desenvolverem se não se estimula a pluralidade e a inserção da população negra dentro do sistema formal de ensino.

Quando se exclui os negros, se exclui também a tecnologia que essas pessoas produzem. É fundamental que a gente entenda que essas políticas de ações afirmativas e esses incentivos são importantes para todo mundo, porque o racismo não é um problema dos negros, é um problema social, de todo mundo. Não foi a gente que inventou isso.

Recentemente uma cientista negra brasileira ganhou destaque na mídia pelo sequenciamento do DNA do coronavírus. Diariamente mulheres negras conquistam grandes feitos e não são reconhecidas. A gente fica sabendo disso quando vira filme, como em “Estrelas Além do Tempo”.  O que fazer para esses casos não virarem exceção?
A gente sabe muito pouco dessas mulheres incríveis, cientistas que estão construindo coisas há muito tempo e têm a sua memória super invisibilizada. É preciso trabalhar para emergir essas memorias subterrâneas.

É essencial saber que assim como essas mulheres existem ou existiram, pode ter uma mulher incrível do nosso lado

E aí é estimular que as meninas e mulheres negras possam criar suas próprias ideias, experimentar… Quantas cientistas a gente não perde por falta de estímulo? Aqui eu falo de estímulo subjetivo, de acharem que porque vai engravidar não vai dar conta, de não confiarem na nossa capacidade; e de estímulo estrutural, uma bolsa de estudo, de um curso.

(Curtindo este artigo? Leia também: “Seria possível retratar as mulheres brasileiras reais?”, um Lifehackers de Joana Mendes)

Quais são suas referências de mulheres inspiradoras?
Muitas mulheres me inspiram, entre elas Adriana Barbosa, Suely Carneiro, Maria Rita Casagrande. Mas o que mais me inspira são casos como o que aconteceu recentemente, em que uma menina me escreveu dizendo que se formou em Direito, mas depois do PretaLab descobriu que podia fazer algo no campo da tecnologia e aí se inscreveu em uma pós-graduação em Direito Digital.

Isso é uma coisa que me inspira muito porque mostra que nosso trabalho está fazendo sentido para outras pessoas. Essas mulheres são referência para mim, uma semente do PretaLab.

Hoje há entendimento de que as tecnologias não são neutras, e poderiam expressar parcialidade e preconceito. Você concorda?
A tecnologia carrega o olhar e a cultura de quem cria. Alguns exemplos disso são os carros autônomos. Pesquisas recentes mostraram que eles têm 5% a mais de chance de atropelar uma pessoa negra. Outro caso: quando você digitava “gorila” no Google e apareciam na busca pessoas negras. Tecnologias como o sensor de movimento Kinect não reconhece a pele negra, já o reconhecimento facial é mais propenso a acusar negros.

Existem vários exemplos de como a tecnologia pode ser racista. Há um caso de uma câmera Nikon que só reconhecia a pessoa fotografada como estando de olhos fechados porque era asiática. O que que pode mudar isso: uma produção de tecnologia mais diversa, mais pessoas produzindo tecnologia.

Tem como citar uma tecnologia 100% negra?
Eu recomendo o trabalho do Hugo Lima, do Afro Engenharia. Ele é um cineasta que produz equipamentos de audiovisual de baixo custo, com cano, PVC, eletrônica aberta e impressão 3D.

Geralmente esse material é preto, mas quando ele pensou o Afro Engenharia, levou em consideração a realidade da pessoa negra que chega em um subúrbio carregando algo assim e corre o risco de ter o equipamento de trabalho confundido com uma arma de fogo. Por isso, pensou em produtos bem coloridos, que podem até se passar por brinquedos

É isso que muda quando uma tecnologia é desenvolvida por uma pessoa negra que traz a experiência dela no mundo, relacionada ao racismo e à violência, mas não só, para o processo de criação.

Como você vivencia o preconceito? Já sofreu muitos ataques por ser uma mulher negra?
Quando você tem uma consciência racial e faz o teste do pescoço [virar e ver quantas mulheres e quantos negros têm no mesmo ambiente que você ocupa], as coisas ficam muito mais visíveis. Eu passo por muitos preconceitos ainda porque não deixei de ser uma mulher negra.

Por mais que eu transite nas minhas bolhas de acesso, às vezes chego num lugar e tenho que me impor. As pessoas não esperam que seja eu, uma pessoa meio fora de um padrão desse universo, que esteja ali para falar aquelas coisas. Isso no campo profissional, mas no meu dia a dia o racismo acontece de mil formas. Desde chegar em um lugar e não me atenderem até entrar em um estabelecimento e ficarem me olhando, achando que vou roubar alguma coisa. Às vezes isso é tão sutil, que a gente pensa que está ficando doida.

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