• LOGO_DRAFTERS_NEGATIVO
  • VBT_LOGO_NEGATIVO
  • Logo

Pessoas lavando a louça e contando as suas histórias de vida: a fórmula simples e potente do ter.a.pia, canal com milhões de seguidores

Dani Rosolen - 22 maio 2023
Lucas Galdino (à esquerda) e Alexandre Simone, criadores do Histórias de ter.a.pia (foto: Divulgação).
Dani Rosolen - 22 maio 2023
COMPARTILHAR

Quando ainda eram um casal, o radialista Alexandre Simone, 28, e o jornalista Lucas Galdino, 29, costumavam aproveitar o momento de lavar a louça para conversar sobre o dia de cada um. Desses papos, sempre surgiam reflexões profundas. 

Na época, em 2018, Lucas, que já tinha atuado em veículos jornalísticos com foco em educação e no Catraca Livre, estava recém-desempregado e com vontade de criar um projeto autoral para deixar “ecoar sua criatividade” e abordar pautas relevantes e de impacto social. 

Já Alexandre acumulava experiências gerenciando as redes sociais de grandes nomes da música, como Milton Nascimento, Liniker e Skank. Ele estava trabalhando em uma agência de comunicação, mas também embarcou na proposta. A ideia era convidar pessoas com trajetórias emocionantes para contar a própria história, em vídeo, e inspirar quem as assistisse.

Lucas lembra como chegaram ao formato:

“A gente tinha deixado uma louça suja na pia e brinquei falando que podíamos colocar o pessoal para lavar louça enquanto contava a história. Demos risada primeiro, ‘que ideia besta’, depois pensamos que podia ser um formato diferente, interessante, inédito. Então, veio o nome do projeto, uma brincadeira linguística”

Afinal, como diz Lucas: quem nunca ficou em casa lavando a louça ou conversando com alguém depois de uma festa, executando essa tarefa doméstica?

“A gente fica refletindo sobre a vida, divagando, a cabeça fica muito livre. Já existem estudos inclusive que dizem que é uma atividade terapêutica.”   

Foi assim, resumidamente, que a dupla deu início, a princípio como um hobby, ao Histórias de ter.a.pia: um canal no YouTube em que, uma vez por semana, pessoas contam sobre suas vidas lavando a louça. Segundo Alexandre: 

“É uma atividade que todo mundo faz e isso por si só já causa uma aproximação. Mas a história também está sempre no lugar de muita emoção, então quem vê ou escuta vai se envolvendo com o que é narrado, que tem sempre um recado para dar, de achar algum jeito de vivermos melhor em sociedade”

Hoje, o projeto, que virou um negócio multiplataforma da Creator Economy, já publicou mais de 200 histórias em vídeo, não só no YouTube, mas com recortes diferentes em suas redes sociais (Facebook, Instagram e TikTok). Ao todo, são 3,5 milhões de seguidores. 

Além disso, eles expandiram sua atuação para um podcast semanal, o Histórias para ouvir lavando louça, em que a proposta se inverte e são os ouvintes que aproveitam o momento de ensaboar os pratos para escutar uma boa história.

Mais recentemente, em fevereiro deste ano, a dupla também publicou o livro A história do outro muda a gente: Por que precisamos ouvir as pessoas?, lançado em março pela editora Nacional. Na obra, eles compartilham os aprendizados de cinco anos de trajetória escutando – de forma atenta e afetiva – o que os outros têm a dizer.

EM UM ANO DE ELEIÇÕES, ELES PERCEBERAM QUE PRECISAVAM ABRIR O DIÁLOGO COM PESSOAS DE FORA DA BOLHA    

O projeto nasceu em 2018 e teve também o objetivo de gerar diálogos em meio ao clima polarizado do período pré-eleitoral.

Naquele ano, Jair Bolsonaro foi eleito presidente do Brasil. Alexandre lembra:

“Sabíamos que o caminho era o diálogo, conversar com as pessoas para virar voto, mas como ir além da nossa bolha? Vimos que um bom jeito de falar sobre pautas relevantes era trazer histórias em primeira pessoa de gente que está à frente dessas bandeiras”

Esse trabalho de convencimento ganha potência se vier embalado por histórias em primeira pessoa, de gente que sente o preconceito na pele:

“Podíamos até fazer um post nas redes pedindo que se respeite mais a comunidade LGBT+, mas não teria o mesmo impacto de quando alguém conta sua história”, diz Alexandre. “Não dá para você dizer que é mentira aquela dor, o que a pessoa está sentindo.”

Para Lucas, os dois juntaram a fome com a vontade de comer. “A gente queria criar alguma coisa relevante, botamos isso em prática e veio esse momento político muito importante. Como nós dois somos muito engajados, vimos a potência que era ouvir as pessoas.”

OS PRIMEIROS VÍDEOS FORAM FEITOS COM AMIGOS E FAMILIARES E AJUDARAM A MOLDAR O PROCESSO DE GRAVAÇÃO

Desde o primeiro dia, a dupla vai até a casa dos convidados, entra na cozinha deles e é lá que acontece a gravação (no caso dos vídeos).

Alexandre explica:

“Não é uma entrevista ‘à la Jô Soares’. A gente subverte isso, vira algo muito simples, muito íntimo, particular, mas que gera uma identificação tão grande em quem assiste ou ouve o podcast que a conversa se torna até mais potente”

No começo, os criadores do ter.a.pia foram atrás de amigos e parentes para participar das gravações. Depois que o projeto cresceu, passou a receber contribuições organicamente e hoje conta com um banco com mais de 3 500 histórias. 

A câmera, eles já tinham. Para começar os trabalhos, investiram 2 mil reais em equipamentos de luz e microfone. O piloto foi feito com uma prima de Alexandre:

“Ela me contou sobre o nascimento da minha afilhada. Foi um dia caótico, porque caiu a fachada do hospital, foi um parto super difícil e perigoso. E o médico do plano de saúde ainda foi um escroto: disse que ‘se soubesse que ia ganhar só aquilo nem teria ido ao hospital’…”

O próprio Alexandre nem sabia de toda essa história envolvendo a prima. “Vimos que tínhamos o que aprender com quem está bem perto. Percebemos que faltam ferramentas para abrir diálogos mais profundos e entregues para histórias das outras pessoas, em que não ficamos falando sobre nós e, de fato, ouvimos os outros.”

O processo de gravação vai justamente nesta linha, segundo a dupla. Antes de abrir a câmera e tirar os equipamentos da mala, eles tentam deixar a pessoa à vontade. Lucas conta que os dois montam um roteiro a partir do briefing que recebem sobre a história, mas deixam os convidados livres para seguir outro caminho, se quiserem: 

“Vimos que esse ato de ouvir pode ser mais transformador do que imaginávamos. Não vamos engessados, inclusive essa é uma mentalidade de jornalista, de que precisa ter uma manchete, aí se engessa e não consegue extrair coisas potentes que as pessoas poderiam falar naturalmente”

Em outras palavras, eles aprenderam a deixar de lado muitas premissas absorvidas na faculdade de comunicação.

“Sabe aquilo de estar entrevistando a pessoa, ela para [de falar] e você já emenda uma nova pergunta para não ficar ‘buraco’? Então, a gente não faz isso”, diz Alexandre. “Às vezes tem até silêncio na gravação — e está tudo ok.”

ELES EVITAM HISTÓRIAS DE QUEM ESTÁ “NO OLHO DO FURACÃO”. E EXPLICAM O PORQUÊ DESSE CUIDADO

Se a história da prima de Alexandre serviu como piloto, a primeira que eles publicaram de fato foi a de uma amiga que tinha se assumido lésbica e, na faculdade, fez um grande amigo — que hoje é seu namorado. “Ela se redescobriu bissexual”, diz Alexandre. 

A captação dura cerca de uma hora. Depois, os vídeos são editados pela dupla (com uma duração que varia entre 7 e 12 minutos) e por fim publicados no YouTube (e em outras redes sociais, com cortes diferentes).

Na hora de selecionar as histórias (há um formulário no site para as pessoas enviarem seus relatos), eles seguem uma linha editorial baseada em três pilares:

“A história precisa ser emocionante, inspiradora e ter uma pauta social relevante para ser discutida e levar à comunidade que acompanha o projeto”, diz Lucas. “Normalmente as histórias têm todos esses quesitos misturados. Vamos vendo o que pode performar de maneira interessante e focando também no que a gente acha que deve ser contado.”

Outro fator importante é já ter transcorrido um tempo desde que a história aconteceu. Alexandre explica:

“Escolhemos histórias que não estão no olho do furacão, porque às vezes a pessoa manda algo com o qual ainda está tentando lidar e não tem a dimensão do impacto do que acontece depois.” 

A cautela se justifica. Muitas vezes uma pessoa pode se expor sem pensar direito nas consequências:

“Ela conta a história na maior intimidade e os acessos são enormes, então sempre perguntamos: ‘Você está preparado para viver isso? Pois é possível que vá chegar uma enxurrada de comentários’”, diz Alexandre. “Geralmente as pessoas recebem muito apoio e carinho — mas se essa história não está bem resolvida dentro delas, ainda não é hora de expor.”

A DUPLA JÁ DESISTIU DE SEGURAR O CHORO. E POR MAIS TRISTE QUE SEJA, CADA HISTÓRIA AJUDA A RENOVAR A ESPERANÇA

Baseados em São Paulo, Lucas e Alexandre recebem relatos de todo o Brasil. Eles fazem uma triagem para entender o que funciona como vídeo e o que cabe para o podcast do ter.apia.

De tempos em tempos, a dupla faz as malas e viaja por uma semana para captar uma série de histórias. Eles já foram para Rio de Janeiro e Salvador. Ainda neste ano, planejam uma incursão a Belo Horizonte e Natal. 

Mais do que administrar a seleção dos relatos e possíveis viagens, Alexandre e Lucas precisam se “organizar” emocionalmente para ouvir as histórias. É muito difícil não se envolver. Aliás, Alexandre diz que eles já desistiram de tentar segurar o choro: 

“Às vezes a nossa sensibilidade também ajuda a pessoa a ficar um pouco mais tranquila, a entender que está num lugar seguro… Com o tempo, fomos aprendendo esse lugar de se envolver — mas sabendo separar e entender que aquela história não é nossa”

Essa escuta emocionada também traz um lugar de conforto e esperança:

“Tem vezes que eu chego para a gravação muito pilhado com minhas histórias pessoais, meio que sem esperança, e saio pensando: nossa, tem um caminho…“, diz Alexandre. “Porque as histórias, por mais tristes que sejam, têm uma mensagem de esperança: de que dá para ser felizes nesta loucura que é viver.” 

QUANDO A FICHA CAIU, OS DOIS ENTENDERAM QUE O TER.A.PIA NÃO ERA SÓ UM HOBBY, ERA UM NEGÓCIO

Um ano depois do lançamento, o ter.a.pia foi selecionado para uma turma do Creator Boost, programa de aceleração para influenciadores digitais do YOUPIX“Ficamos uma semana imersos naquilo, aprendemos muito, entendemos o nosso lugar de criadores de conteúdo”, diz Lucas.

Mesmo assim, segundo Alexandre, ainda levou um tempo até eles compreenderem que não havia problema algum em ganhar dinheiro com o conteúdo produzido:

“A gente aprende que, quando se cria algo com propósito, isso não envolve dinheiro, senão muda o objetivo… E ao longo dessa imersão, fomos entendendo que ganhar dinheiro nos permitiria ir atrás de mais histórias e aumentar nosso público. Ou seja, ganhar dinheiro ajudava no propósito”

Porém, como fazer as empresas entenderem o que eles ofereciam ainda era uma questão?

“Não estávamos fazendo o que a maioria dos criadores de conteúdo faz, dando nossos rostos para contar histórias, porque o projeto é muito maior do que o Lucas e o Alexandre, é sobre outras pessoas, e era difícil fazer as empresas entenderem onde podiam entrar”, diz Lucas.

A primeira parceria comercial ocorreu no meio da pandemia: um post para a Drogasil em que a dupla falava sobre o congelamento do valor dos remédios. Eles fizeram outro post similar para uma marca de produtos de limpeza, mas aquele ainda não era formato em que queriam chegar. Os dois desejavam gerar valor com as histórias. 

Até que, em 2021, realizaram a primeira ação mais robusta para uma empresa, a 99app, que contratou a dupla para contar histórias dos motoristas. Lucas explica:

“Colocamos os motoristas para lavar a louça e falar sobre a trajetória deles. O primeiro vídeo que gravamos, com o Fanny, foi um sucesso, com mais de 1 milhão de visualizações”

Para Alexandre, um diferencial importante foi a aceitação da audiência dessa vertente comercial: “Achamos um jeito de resolver uma dor das marcas e do nosso público também abraçar isso de maneira muito bonita, não é forçado. Conseguimos trazer as marcas para a essência do nosso conteúdo sem fazer o público estranhar e pular a publicidade.”

O ter.a.pia já realizou campanhas para empresas da indústria farmacêutica, como Astrazeneca, Pfizer e Bayer. Segundo Lucas, uma dessas ações, para a Allergan, foi selecionada para concorrer a um prêmio de melhor web publicidade pelo Rio Web Fest, em 2022:

“Gravamos com uma paciente que passou por um processo de reabilitação do AVC e nesta época começou a se envolver com o esporte; hoje, ela é medalhista paraolímpica e uma das oito mulheres mais rápidas do mundo. No vídeo ela conta toda essa história”

Com a mesma pegada, a dupla gravou para a Astrazeneca o vídeo (veja aqui) em que um paciente com câncer de próstata fala sobre seu tratamento, os tabus envolvidos em relação ao exame de toque e a importância do cuidado com a saúde masculina. 

(Além das parcerias publicitárias, outra conquista, segundo eles, foi ter licenciado seu conteúdo para o canal de streaming da Tastemade TV.)

COMO AS HISTÓRIAS CONTADAS IMPACTAM A VIDA DE QUEM PARTICIPA DO TER.A.PIA

A comunidade que acompanha as plataformas do Histórias de ter.a.pia se manifesta por meio de postagens e mensagens diretas. Além desse carinho, Lucas fala sobre os casos concretos de impacto na vida dos convidados:

Ele cita três exemplos. Um deles é o de Ofélia, que durante a gravação contou que acabou se tornando psicóloga depois do suicídio dos dois filhos. 

“Do dia para noite, na semana em que publicamos a história dela, uma das mais curtidas e engajadas no Instagram, o perfil dela passou de 4 mil para quase 25 mil seguidores. Ela disse que mudamos a vida dela, não só porque foi acolhida, mas houve uma mudança financeira”

Alexandre conta o juramento feito por Ofélia:

“Ela fez uma promessa de que não deixaria mais que nenhuma criança morresse de depressão porque não teve acesso a um tratamento psicológico… Então, acho que agora, com a agenda cheia, querendo ou não, a Ofélia está cumprindo essa promessa.”

Outro caso é o do Alisson, ouvido pela dupla dois anos atrás, quando tinha 22. Na época, o rapaz cuidava da mãe, acamada por conta de cinco AVCs.

“Ele nos contou que fazia doces para vender numa padaria da cidade dele, em Itapetininga, e ter renda, porque a mãe perdeu o seguro saúde e o auxílio do governo. E aí perguntamos como aprendeu a cozinhar e ele falou que a mãe tinha um caderninho com as receitas e ensinou para ele”, diz Lucas. “Perguntamos também o sonho dele e o Alisson falou que era ter a própria padaria. O vídeo viralizou e, em parceria com o Razões para Acreditar, conseguimos fazer uma vaquinha e hoje ele tem seu próprio estabelecimento.” 

O exemplo mais recente de impacto real da divulgação na vida das pessoas é a história de dona Celeste. “Ela sofreu muito na vida porque era empregada doméstica, foi sequestrada, viveu um período da vida trabalhando num serviço análogo à escravidão”, conta Lucas.

“Também perguntamos qual era seu sonho e ela disse: ‘Assistir a um concerto’. E, em parceria com a Secretaria de Cultura e Economia Criativa de SP, conseguimos levar a dona Celeste para assistir à Orquestra Sinfônica na Sala São Paulo!”

Nada melhor do que ver o vídeo para entender a emoção de uma mulher que se libertou da escravidão e realizou o seu sonho.

DRAFT CARD

Draft Card Logo
  • Projeto: Histórias de ter.a.pia
  • O que faz: Compartilha histórias inspiradoras em diversos formatos
  • Sócio(s): Alexandre Simone e Lucas Galdino
  • Funcionários: 6 (terceirizados)
  • Início das atividades: 2018
  • Investimento inicial: R$ 2 mil
  • Contato: [email protected]
COMPARTILHAR

Confira Também: