Hoje eu acordei como se estivesse em Paris. Ainda de olhos fechados, revia em looping a cena das pessoas correndo pela saída de emergência do Bataclan, pisando umas nas outras, gritando desesperadas, se pendurando pelas janelas. Escutava a voz do repórter do Le Monde que gritava do seu apartamento “o que está acontecendo?” para um jovem que arrastava o outro pela rua afora, sem abandonar o amigo machucado. Ouvia os tiros que ressoavam muito estranhamente pelas ruas do 11º distrito de Paris, onde eu já morei durante seis meses dos dois anos em que estive por lá fazendo um mestrado. Dois anos que representaram muito mais do que isso na minha vida.
Fiquei pensando que poderia ser eu na saída daquela balada. Uma amiga, que hoje mora em Pequim, mas que na época também estava lá, me disse: “É muito estranho pensar que todos esses lugares são locais onde de fato nós poderíamos estar, três anos atrás”. Hoje são quase 9 mil quilômetros me separando fisicamente da cidade onde me senti, durante dois anos, mais incrivelmente livre e segura do que jamais havia experimentado antes.
Poder andar nas calçadas da Rua Saint-Denis, bem no centro de Paris, às 4h da manhã sem olhar para os lados era um dos bens mais valiosos de morar ali
Lembro de comentar que fazia isso com uma amiga francesa, que me repreendeu, horrorizada, dizendo que aquele era um lugar meio perigoso. E lembro também de sorrir e pensar: o que eles sabem de perigo, esses parisienses mal-acostumados?
Eu já vi um show da banda Eagles of Death Metal – a que tocava no Bataclan na noite de ontem – quando fui ao festival Rock en Seine de 2012. Por vários motivos não me recordava direito, mas uma amiga que estava comigo me disse que eu adorei as músicas e achei o vocalista supersexy. Um dos seis ataques foi nas proximidades do Stade de France, onde por três vezes estive para assistir a shows. Embora meio fora da rota da maioria dos parisienses – chama-se assim não só quem nasce em Paris, mas quem mora lá, o que eu sempre achei de um grande acolhimento dos franceses sempre tão famosos por sua pouca receptividade – Saint-Denis, onde fica o estádio, fazia parte da minha rotina diária. Estudei dois anos na universidade de lá e peguei o metrô da famigerada (e detestada) linha 13 por mais dias do que não o fiz. O cenário todo dos acontecimentos de ontem, assumo, foi bem familiar para mim.
Ainda mais porque eu não trouxe da França apenas lembranças, mas também um companheiro de vida. Assisti de mãos atadas enquanto ele, assustado, pedia notícia de todos os seus amigos pelo Facebook. Ele estava preocupado porque o 11º distrito é um bairro boêmio, onde a maioria dos seus colegas músicos tocava em bares e se apresentava no meio da rua. Mas ficou surpreso quando o irmão contou que estava saindo da casa da avó na hora que ouviu os tiros – a avó que mora pertinho da Rua Charonne, epicentro de outro dos estopins de violência. Eles se abrigaram na casa de um amigo até se sentirem confiantes para pegar um Uber de volta para casa no meio da madrugada. Meu marido tinha o olhar tenso, mas o fato do primo dele, também francês, estar na nossa casa de visita confortou o seu coração mais do que eu poderia sonhar em fazer. Nestas horas, só conterrâneos entendem realmente o que o outro está passando.
Aliás, há tempos tenho falado para meu marido o quanto seria genial se nós voltássemos para a França. Ele sabe muito bem que só saí de lá porque não tinha mais visto que me permitisse permanecer. Mas ele diz temer a ascensão da extrema direita no país, diz que as coisas vão de mal a pior, as fronteiras cada vez mais fechadas e o cenário político cada vez mais perturbador. Sinto o mesmo receio no Brasil, mas ontem um medo inédito tomou conta de mim.
Dormi triste, acordei perdida. Para onde poderíamos ir, afinal?
Eu aconselhava as minhas amigas a não saírem de casa, uma delas queria ir ao supermercado da esquina, mas não tinha coragem. Todas temendo o day after dos atentados. Eu também. Uma insegurança sem precedentes.
Li esta matéria no Slate França que me tocou. O autor comenta do espírito libertário que invade os parisienses nas noites de sexta-feira, da forma como eles se permitem rir alto, beber nas ruas e dormir com quem quiserem — “se lâcher”, se liberar das próprias amarras que os apertam as costelas nos dias de semana. Repressões cotidianas normais, mas que encontram um escape nas noites ainda pouco frias de sexta. Mas ele contava que a ressaca de hoje era outra, era do pavor frente ao desconhecido, que paralisa, que inibe e que, mais importante do que todas essas coisas, tira a liberdade de quem sempre foi muito acostumado com ela.
Uma outra amiga, que está lá há nove anos, me explica seu sentimento: “Não é um medo de sair na rua e levar um tiro. O que me deixa assustada é pensar no que vai acontecer com a sociedade, como as pessoas vão reagir a tudo isso nos próximos dias e meses. Depois do Charlie Hebdo, ouvi muitos comentários reacionários de ambos os lados, meu medo é a xenofobia aumentar, o fundamentalismo de todo mundo aumentar, e a raiva e o ódio crescerem ao redor da gente.” É engraçado como duas pessoas que estão tão distantes – eu e ela — podem ter esta mesma sensação de tristeza profunda e desesperança. “Há um silêncio nas ruas, todo mundo se olha com cara de tristeza”, me disse outra amiga. Uma tristeza solidária.
Hoje, há quase 9 mil quilômetros de toda a solidariedade que, nesta manhã, fez transbordarem os centros de coleta de sangue depois que a Prefeitura de Paris lançou um chamado para preencher os bancos, eu acordei em Brasília me sentindo desamparada. Ao contrário dos meus amigos que vivem suas lutas diárias na Cidade Luz, com todas as dificuldades de viver em um local que passa por um ano tão pesado – e que certamente deixará cicatrizes profundas em suas histórias – eu sinto que minha tristeza não é igualmente validada. Que meus laços, mesmo existentes, não são mais tão fortes. Que eu não tenho tanto direito de me sentir mal com isso, afinal, estou a salvo – pelo menos de atentados terroristas, acho que sim – bem instalada do outro lado do mundo. E, por aqui, quando eu tiver coragem de sair nas ruas hoje, não vou encontrar esses mesmos olhares de tristeza solidária de que eu tanto precisava.
Hoje – mais do que nunca – eu queria estar em Paris. Não necessariamente para ser feliz, como é o habitual, mas para ter direto à minha liberdade de estar triste.
Queria mostrar aos parisienses de todos os cantos do mundo que estão ali, reunidos em estado de alerta máximo, que eu me importo. Que o furor da violência assusta o mundo inteiro
Que o pavor talvez ingênuo de uma terceira guerra mundial também nos assola por aqui. E que o estado de luto de três dias atinge igualmente expatriados, ex-parisienses, turistas e até mesmo gente que nunca pôs os pés em Paris. E que todos nós temos direito de nos incomodar, mandar boas energias e contribuir para acalmar os ânimos de quem viveu de perto uma onda de violência sem precedentes nos últimos séculos, deixando todos nós – e não só eles – boquiabertos mundo afora.
Hoje eu acordei em Brasília, mas já estava em Paris. Mais do que nunca, de coração mais conectado do que nunca, eu estou em Paris.
Renata Reps, 30, é jornalista. Brasiliense, foi repórter na Editora Abril, no Portal Terra e no Estadão e hoje colabora regularmente para o Projeto Draft. Fez pós-graduação em Jornalismo Literário em São Paulo e mestrado em Indústrias Criativas em Paris. Apaixonou-se por arte e foi assistente de comunicação da galeria Les Infirmières, situada no coração do Marais. Seu próximo destino ela ainda não sabe, mas tem uma certeza: um dia volta para Paris.
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