Não houve período de adaptação nem jornada dupla. Juntos há quase 30 anos (e há 20 vivendo em São Paulo), os cariocas Letícia e Peter Feddersen largaram seus empregos em 2017 para empreender na Soul Brasil, que fabrica geleias, vinagres e molhos de pimenta à base de frutas e ingredientes brasileiros.
Graduada em Relações Internacionais, Letícia, 48, sempre trabalhou com exportação, primeiro na Nestlé e na Catupiry e, durante oito anos, no projeto Brazilian Flavors, da ApexBrasil (Agência Brasileira de Promoção de Exportação e Investimentos). Ela diz que, nesse projeto, ajudando a promover empresas nacionais no mercado internacional, entendeu o quanto a gastronomia brasileira era desejada pelos estrangeiros.
“Percebi que havia um descompasso entre o que o mercado internacional queria e o que o Brasil tinha a oferecer. O público estrangeiro ama o ingrediente brasileiro, principalmente as frutas. Mas as empresas queriam vender geleia de morango para a França”
Essa constatação ficou guardada por um tempo, até que a ideia do negócio enfim saiu da gaveta. Hoje, a Soul Brasil tem 12 produtos no portfólio, incluindo geleias de açaí com cachaça e de goiaba com pimenta cumari, vinagre à base de manga-ubá e molho de pimenta murupi com acerola. Nos últimos 12 meses, a Soul Brasil faturou R$ 400 mil. No período, foram vendidas 4 500 geleias no mercado interno — e 6 mil para o exterior.
A CHEGADA DA FILHA IMPULSIONOU NO CASAL A VONTADE DE EMPREENDER
Formado em Administração com mestrado pela HEC Paris (a Escola de Altos Estudos Comerciais na capital francesa), Peter, 48, trabalhou durante 25 anos com investimento, com passagens por Bank of Boston, Citibank e HSBC. Apaixonado por gastronomia, deixou a carreira para embarcar no sonho da esposa e na expectativa de uma rotina mais leve e flexível.
O plano de empreender vinha sendo amadurecido pelo casal e ganhou impulso a partir de 2014. Depois de dois anos e meio na fila de adoção, eles receberam um telefonema da assistente social dizendo que havia chegado a vez deles. Mais dois dias se passaram e o casal foi buscar a filha, Rafaela, então com um mês de vida. A chegada da menina provocou uma revolução — profissional, inclusive — na vida dos pais. Peter lembra:
“Quando ela chegou, eu já tinha mais de 40 anos, trabalhava até 14 horas por dia e queria ter mais tempo. Era hora de repensar a vida”
Empreender dá um frio na barriga, lógico. Medo de não dar certo, de o produto não ser aceito, medo de ficar sem dinheiro… É preciso dosar ousadia e prudência. O casal conta que, até hoje, a cada dois meses, repassa um check-list para avaliar o andamento do negócio — e se dá para seguir em frente. “E cada vez que olhamos para trás, estamos em um ponto mais alto do que estávamos antes”, diz Peter.
PARA CRIAR AS RECEITAS, ELES TIVERAM APOIO DE UMA CHEF ESPECIALISTA
O ano de 2017 foi dedicado ao planejamento e desenvolvimento da marca; nessa fase, eles investiram R$ 200 mil de recursos próprios. Até então, só sabiam que queriam fazer um produto orgânico e à base de frutas brasileiras — algo como uma versão nacional dos vinagres bacanas que consumiam nos dois anos (de 2003 a 2005) em que moraram em Jouy-en-Josas, nos arredores de Paris, durante o mestrado de Peter.
Para ajudar no desenvolvimento dos produtos, o casal buscou ajuda de uma especialista. A chef Tanea Romão foi dona de uma pequena fábrica de chutneys e conservas em Gonçalves (que hoje tem outra proprietária), em Minas, e há uns bons 15 anos aplica sua criatividade nas gulodices do restaurante Kitanda Brasil — que surgiu em Gonçalves, depois migrou para Tiradentes e desde 2018 funciona em São Paulo, na Vila Romana.
Contratada como consultora, Tanea bolou umas 15 combinações de ingredientes, que serviram como ponto de partida. Letícia conta:
“Após esse período, iniciamos a curadoria dos ingredientes e o Peter, na nossa cozinha, deu sequência às receitas. Com a ajuda de amigos da área gastronômica, fazíamos testes ocultos e, com muitos ajustes, chegamos nas receitas atuais”
Outra fonte de consultoria foi o Instituto de Tecnologia de Alimentos (ITAL), que embasou os parâmetros de segurança alimentar. Encerrada a fase de testes caseiros, as receitas foram levadas para ajustes em escala numa fábrica com certificação orgânica (de produção própria e também para terceiros) em Conceição dos Ouros, no sul de Minas.
NA ESCOLHA DOS FORNECEDORES, O CASAL TENTA EVITAR O “ATRAVESSADOR”
Letícia e Peter afirmam que levam em conta a promoção de relações de trabalho justas e socialmente responsáveis na hora de escolher e se relacionar com fornecedores.
A pimenta fidalga era comprada de grandes distribuidores. Por intermédio da Cooperapas (cooperativa de produtores orgânicos do extremo sul de São Paulo), o casal conseguiu que um produtor local desenvolvesse a cultura em seu sítio. “Esse agricultor produziu para a gente, mas deu tão certo que ele vai começar a fornecer para outras pessoas”, diz Letícia.
A pimenta jiquitaia, por sua vez, é cultivada por índios Baniwa, do Alto Rio Negro — que ficam com 10% do lucro sobre as vendas do molho de pimenta com açaí. Este produto e a geleia de manga-ubá com cumaru (semente fornecida por outra tribo, do noroeste do Pará) têm o selo Origens Brasil, iniciativa da ONG Imaflora para gerar renda a povos da floresta e valorizar ingredientes brasileiros. Segundo Peter:
“A história econômica por trás disso é que eu compro um produto sem atravessadores e ajudo a melhorar a renda e a vida dos produtores. No exemplo do cumaru, a renda da pessoa que colhe foi multiplicada por doze”
Ao aderir ao selo, a empresa paga uma taxa e põe no rótulo um QR Code que permite ao consumidor acessar, em oito idiomas, informações sobre a história do ingrediente, quem produziu, que colheu…
A CERTIFICAÇÃO ORGÂNICA TRAZ ALGUNS DESAFIOS EXTRAS AO NEGÓCIO
A marca foi lançada oficialmente em junho de 2018 na Bio Brazil Fair, principal feira de produtos orgânicos e naturais do país. Trabalhar com orgânicos (desde o começo, a Soul Brasil tem certificação da Ecocert) traz desafios para o negócio.
A própria certificação é um deles. Para ter o selo de Orgânico do Brasil, é preciso que toda a cadeia – dos produtores à fábrica – seja certificada. Isso encarece o produto mas, na visão dos empreendedores, traz mais segurança a quem consome.
No Brasil, a legislação de orgânicos prevê que 5% dos ingredientes usados nos produtos finais não precisam ser certificados. A Soul Brasil trabalha com essa margem para usar alguns insumos para os quais ainda não encontrou fornecedores certificados (é o caso das pimentas).
Outra dificuldade é a restrição do portfólio, já que algumas frutas – como jabuticaba, abacaxi e pitanga, com as quais o casal gostaria de trabalhar – dificilmente são encontradas com certificação orgânica.
Para o mercado externo, aliás, a venda por enquanto é feita sem essa certificação — os Estados Unidos e a União Europeia têm suas próprias regras; segundo Peter, o processo de certificação está em andamento.
PARA EXPANDIR, O CASAL ESPERA CRESCER NO MERCADO EXTERNO
Os produtos estão à venda em sete estados (São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e os três da região Sul). Em média, as geleias custam R$ 25, os vinagres, R$ 30, e os molhos de pimenta, cerca de R$ 17.
O esforço tem sido em colocar a Soul Brasil em delicatessens, lojas de produtos orgânicos e lojas especializadas. Peter lembra de quando vendeu um lote para uma grande rede de supermercados do Sul — e os produtos encalharam nas gôndolas:
“Eu estava no início, queria faturar e vendi. Hoje, já temos mais cuidado com esse tipo de negociação.” O casal até trabalha com grandes redes, mas prefere começar com uma ou duas lojas, onde possam fazer um esforço de degustação. “Na prática, a correlação degustação com venda tende a 100%”.
Eles acreditam que a escalada tende a acontecer no mercado externo, principalmente na Europa, onde, segundo Peter, existe mais maturidade para entender o conceito. “Para o europeu, a questão social é muito mais importante, na média, do que para o americano”, diz Peter.
Hoje, a Amazon vende produtos da Soul Brasil para Alemanha, Espanha, Itália e Reino Unido. Uma delicatessen em Bruges, na Bélgica, também oferece os condimentos da marca. E, nos Estados Unidos, a venda online ocorre pelo site Culinary Culture Connections.
“A missão que desenhamos para a empresa em 2017 é ser a maior referência de temperos e condimentos brasileiros fora do Brasil em 20 anos. É factível, mas vai precisar de muito investimento e muito trabalho.”