Você já olhou para um relatório com cara de importante e se perguntou em qual língua desconhecida foi escrito? Já se sentiu um ser de outro planeta ao encarar a leitura de um artigo científico ou se questionou sobre o quanto o mundo se beneficiaria se informações valiosas fossem comunicadas de uma forma mais agregadora e menos… repelente?
A inquietação é real: se pessoas comuns esbarram em dificuldades para entender algo técnico demais, as que ocupam cargos de gestão em organizações estratégicas e com potencial para fazer algo concreto em cima dos dados científicos enfrentam o mesmo drama.
Se você acredita que conhecimento deve ser compartilhado, tendo como prioridade a fácil compreensão para assim impactar mais pessoas, a sociedade e os negócios, tem algo em comum com a jornalista limeirense Maria Paola de Salvo, 41. Ela é fundadora da EasyTelling, a primeira startup brasileira a transformar evidências científicas em produtos, programas e políticas públicas.
“Sempre tive a preocupação com a denúncia, com o informar para que as pessoas pudessem tomar uma decisão a partir daquela informação”
O negócio começou como uma consultoria e está se transformando em uma plataforma com foco em atender as dores das empresas e governos na tradução de artigos científicos. O MVP começará a rodar em abril e está sendo construído usando IA, com o investimento de 600 mil reais, aporte que a startup recebeu do fundo early stage Antler.
Paola, como prefere ser chamada, fez parte do primeiro programa de estágio da Editora Abril, em São Paulo, para onde se mudou aos 18 anos em função da graduação.
Trabalhando na Revista Quatro Rodas, encabeçou uma matéria ousada.
“Eu descobri que o Fox decepava os dedos das pessoas que tentavam rebater o banco, e a reportagem provocou um recall de 400 mil carros”, conta, sobre um dos trabalhos dos quais mais se orgulha. “Ali, entendi que comunicar poderia gerar mudanças diretas.”
A atuação de Paola como repórter e editora durou oito anos. Aos poucos, ela se sentiu incomodada com a dinâmica dos grandes veículos de mídia.
“Algumas coisas me incomodavam [na carreira no jornalismo], como influências políticas, econômicas. Isso me deprimia um pouco. Daí falei: bom, o que eu posso fazer pra continuar fazendo a comunicação que eu acredito ampliando o impacto disso?”
Foi fazendo seu mestrado em “Comunicação para o Desenvolvimento” na London School of Economics, em Londres, após deixar a redação, que ela teve pistas da resposta que viria a impulsionar o nascimento da EasyTelling.
Paola chegou a trabalhar durante o mestrado para uma ONG com comunicação de impacto. E, ao voltar para o Brasil, após os estudos, entendeu que era nessa área que desejava atuar.
Conseguiu um emprego como gerente e depois virou diretora na Global Health Strategies, consultoria que atendia a Fundação Bill & Melinda Gates, no Rio de Janeiro.
Nesse período, teve muito contato com pesquisas em saúde e gerenciou o programa Grand Challenges, da Fundação Bill & Melinda Gates, que investe em pesquisas para gerar impacto social. Metade dos recursos vinha da Fundação Gates e a outra metade, do Ministério da Saúde.
Foi aí que Paola teve uma surpresa. Começou a perceber que os resultados das pesquisas financiadas com dinheiro público não chegavam nos gestores do SUS e do próprio ministério porque em seus relatórios os pesquisadores não sabiam apontar quais produtos seus trabalhos poderiam gerar e o impacto deles na saúde.
Para ter a dimensão do que isso representa, segundo a empreendedora, 86% das pesquisas aplicadas em saúde morrem num papel que não será lido (em custos, isso representa um prejuízo de 200 bilhões de dólares).
“Teve, por exemplo, um pesquisador que descobriu que a medição de três substâncias ajuda a prever os riscos de um parto prematuro. Essa pesquisa poderia gerar um teste diagnóstico para vender em farmácias ”, diz. E prossegue:
“ Quantas mulheres poderiam se beneficiar por meio da ciência? Mas, no geral, os pesquisadores não sabem comunicar [suas descobertas]. Aí entra o olhar jornalístico, para traduzir uma coisa que é aparentemente complexa e mostrar qual é o impacto, qual é a pauta”
A partir desse insight, Paola começou a dar treinamentos para os cientistas aprimorarem seus documentos, aplicando a metodologia de tradução de conhecimento, Knowledge Translation, para que pudessem traduzir artigos científicos e torná-los acessíveis.
Segundo a empreendedora, a tradução de conhecimento é uma abordagem que surgiu no Canadá e — ao contrário da divulgação científica, que se comunica com um público mais geral — identifica e sensibiliza uma audiência-nicho específica que precisa daquela informação e pode transformá-la num resultado concreto e gerar impacto. Essa metodologia é dividida em 13 passos, que Paola, em sua jornada, adaptou para seis.
Diante dos resultados positivos desse trabalho, ela decidiu fundar sua própria empresa com foco em tradução de conhecimento.
Até conquistar o primeiro cliente, Paola recebeu vários “nãos” e também ouviu de conhecidos e desconhecidos que a ideia não teria aderência. No final de 2018, no entanto, a EasyTelling fechou contrato com a Fundação Lemann.
Paola, então, saiu da consultoria e passou a se dedicar exclusivamente ao empreendimento. Em busca de especialização para validar seu conhecimento empírico no tema, ela fez uma formação no Hospital Sick Kids, hospital universitário pediátrico da Universidade deToronto, no Canadá.
E aos poucos, viu chegar outros clientes, a maioria fundações e organizações que investem em pesquisa, como a própria Fundação Bill e Melinda Gates, a Fiocruz, o Newton Fund, a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Conselho Europeu para Pesquisas em Juventude, entre outros. Além de treinamentos para os cientistas, a empresa também oferecia serviços mais customizados, como o apoio na construção dos relatórios de evidências.
Para a OIT, por exemplo, ela ajudou a traduzir os relatórios do projeto Better Work, que verifica as condições de trabalho na indústria têxtil em oito países do mundo.
“Eles tinham relatórios muito longos e técnicos que não eram lidos pelos stakeholders que importam, no caso as fábricas e as marcas. Transformamos o material em relatórios e cards mais acessíveis e fáceis de entender”
Na Artemisia, como mentora, Paola ajudou startups mais técnicas a traduzir seus resultados nos pitches.
Em sua versão consultoria, a EasyTelling oferecia dois produtos: treinamento e transformação de papers em produtos de comunicação como fact sheets, vídeos e infográficos.
“Participamos também de um projeto do Ministério da Saúde, pois hoje eles têm mais de 6 mil pesquisas investidas, mas não conseguem trazer estes resultados de uma maneira clara para os gestores internos deles, médicos e outros agentes do SUS. Ajudamos a treinar 215 pessoas com a metodologia de tradução de conhecimento”
Como consultoria, a EasyTelling já atuou em diversas áreas, como saúde, agricultura e meio ambiente. Mas o método e a plataforma em desenvolvimento (logo mais chegaremos nesse ponto) podem ser utilizados por qualquer área do conhecimento.
Com a crise sanitária mundial e a busca por uma vacina, Paola conta que as pessoas passaram a ver a importância de se traduzir conhecimento, em especial o científico.
“Acho que a ciência nunca esteve tão em voga. Eu estava confinada em casa, mas trabalhando loucamente 14 horas por dia, porque tinha muita demanda, inclusive de projetos para a Covid-19”, diz.
Ela lembra que o Newton Fund e a Fiocruz encomendaram um site para informar os gestores sobre como lidar com a população em situação de vulnerabilidade naquele período.
A EasyTelling também fez muitos projetos voluntários nesta época, revisando materiais sobre o coronavírus focados na população das comunidades do Rio, por exemplo.
Ano passado, a EasyTelling participou de uma residência do Antler. Durante dez semanas, a ideia era fazer um matchmaking para encontrar sócios(as).
Apesar de não ter alcançado esse objetivo, a empreendedora pôde validar sua proposta com o setor privado.
“Na residência, vi que existia essa dor não só em empresas de P&D, mas várias empresas tentam buscar respostas na ciência para desenvolver ou aprimorar suas soluções e se deparam com problemas para encontrar informações. Ou porque não acham os papers ou porque quando acham, demoram muito para ler e buscar os dados que precisam”
Antes desse processo, ela já estava desenvolvendo um MVP para transformar a consultoria em uma plataforma onde os próprios pesquisadores pudessem realizar o processo de Knowledge Translation. Mas resolveu pausar temporariamente este plano para desenvolver uma plataforma com foco nas perguntas, desafios e problemas das empresas, ou seja, de quem está demandando as evidências.
No MVP, que deve começar a rodar no final de abril, Paola está usando IA para aproximar as pesquisas do mundo real.
“Várias empresas pequenas e startups não têm uma estrutura de P&D internamente e a gente funcionaria como um P&D as a Service para elas. E para empresas maiores, como copilot, para ajudar a agilizar esse processo de achar os papers com as melhores respostas e fazer essa tradução e extração das informações”
Na prática, a empresa terá um espaço na plataforma para inserir o desafio ou pergunta que quer responder por meio da ciência e a EasyTelling, a partir de vários filtros de IA, encontrará os melhores papers que respondam a essa questão em meio a uma base de 200 milhões de artigos científicos.
Esse processo será gratuito. A startup pretende cobrar pela extração das informações que realmente importam ou possíveis aplicações que respondam à dor do cliente. “A gente já tem várias interessadas em testar essa plataforma quando estiver pronta, como Procter & Gamble, Pfizer, algumas farmas e startups”, diz.
As empresas que já quiserem testar essa solução podem acessar o pré-MVP da plataforma (um questionário onde conseguem inserir suas perguntas de forma manual).
O desafio, agora, de acordo com Paola, é treinar a IA com prompts do seu método de tradução de conhecimento e refinar o modelo de linguagem para que fique mais específico na hora de ler os papers e fazer a extração de aplicações.
“A IA vai permitir que a gente ganhe escala. E quanto mais empresas envolvidas, mais pesquisadores teremos na nossa base e mais a gente vai chegar ao objetivo final, que é conseguir financiar boas pesquisas”
Remunerar quem produz essas pesquisas também é algo que está no radar, diz a empreendedora:
“No futuro, nossa ideia é monetizar os pesquisadores pelo conhecimento deles utilizado por empresas ou governos, mudando um pouquinho a forma de financiar pesquisas no mundo.”
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