“Por que não recuperar a imagem do Rio para que a cidade se torne um polo de programadores?”

Leonardo Neiva - 17 out 2019
Lindália Junqueira, CEO e cofundadora do Hacking.Rio.
Leonardo Neiva - 17 out 2019
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Mil hackers, programadores e desenvolvedores terão frenéticas 42 horas para desenvolver protótipos com soluções para problemas em educação, saúde, mobilidade e cultura, visando tornar as cidades mais modernas e inclusivas. Esse é o desafio proposto pelo Hacking.Rio, que se anuncia como o maior hackaton da América Latina e cuja segunda edição será realizada entre amanhã (18) e sábado, 19 de outubro, no Aqwa Corporate, espaço corporativo na zona portuária da capital fluminense.

“Queremos mostrar que esses novos programadores podem resolver problemas reais da sociedade, conectados com a transformação digital que está acontecendo nas empresas”, diz Lindália Junqueira, CEO e cofundadora do Hacking.Rio.

Paralelamente à maratona, o evento promoverá palestras e debates com gente como Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central; o ministro de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Marcos Pontes; e Travis Hunter, líder do MIT Reap (Programa de Aceleração de Empreendedorismo Regional do Instituto de Tecnologia de Massachusetts).

Consultora e coordenadora de cursos de inovação da Fundação Getulio Vargas (FGV), Lindália, 54, tem no currículo passagens pela Associação Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento das Empresas Inovadoras (Anpei), como diretora executiva, e pela Rede Globo, onde ficou sete anos e foi responsável pela área de inovação do Projac, o complexo de estúdios da emissora na zona Oeste da cidade.

Em entrevista, ela fala sobre sua trajetória, o Hacking.Rio e os desafios de se inovar no Brasil.

Qual é a proposta do Hacking.Rio?
O Hacking.Rio é mais do que um evento, é uma plataforma educacional. Hoje existem mais de 750 mil vagas em aberto nas empresas para áreas de tecnologia e marketing digital. A ideia é inspirar mais jovens que queiram aprender a programar. Queremos mostrar que esses novos programadores podem resolver problemas reais da sociedade, conectados com a transformação digital que acontece nas empresas.

Queremos jogar luz sobre a cidade do Rio, que ficou em primeiro lugar na categoria “Inovação” no Índice de Cidades Empreendedoras da Endeavor de 2017. Isso não é à toa. Os dois supercomputadores do Brasil estão aqui, o maior número de especialistas em inovação e agências de fomento estão aqui. Então, por que não recuperar a imagem do Rio para que a cidade se torne um polo de programadores, como é hoje Portugal? Seria um pensamento estratégico para o Rio e para o Brasil.

Como nasceu o evento?
A primeira edição foi criada “no susto”. O Hacking.Rio nasceu de um movimento chamado Juntos Pelo Rio, em que reunimos cem lideranças para trazer uma agenda positiva de projetos na cidade. Eram 15 clusters setoriais, cada um organizando um hackathon, mas ainda com pouca visibilidade para os projetos gerados.

Então, em março do ano passado, aniversário do Rio, decidimos reunir todos os setores para fazer um coletivo de hackathons.

Foi a coisa mais louca que eu já fiz. Tivemos não só que engajar toda a sociedade como convencer as empresas de que faríamos algo de um nível bacana. Acabou que nos tornamos o maior hackathon da América Latina

Juntamos 2 800 pessoas num final de semana [em julho de 2018], com 115 projetos gerados em 42 horas.

Como será a dinâmica do hackaton, e do evento como um todo?
O lançamento oficial das atividades será na sexta-feira [amanhã, 18/10], às 19h. O hackaton terá times de jovens hackers, divididos em 15 setores, que se propõem a resolver um problema real da sociedade, podendo gerar com isso uma nova empresa, ligada ao governo ou a alguma instituição.

Ao longo de 42 horas, cada cluster setorial terá vários desafios ligados aos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU. Os participantes têm até domingo de manhã para colocar na plataforma do evento o produto final desenvolvido. Depois, o produto será avaliado pelo júri técnico. Os melhores serão então enviados para uma banca, que vai selecionar o vencedor. O primeiro lugar ganha R$ 15 mil.

Em paralelo, teremos dois dias de palestras, o Rio Summit, para trazer o que já está dando certo nesse Brasilzão, indo desde tecnologia e inovação até economia, com o Armínio Fraga.

Queremos discutir os caminhos para seguir em frente. Os jovens empreendedores precisam ter essa esperança. Muitos já foram embora do Rio para outros estados, para Portugal… Mas essa “caravela” não vai caber inteira lá. Temos que ficar e construir aqui nosso ecossistema

Quais são as expectativas — e as novidades — para esta segunda edição?
No ano passado, foram 2 800 pessoas, este ano esperamos 3 500. Além disso, na última edição cobramos uma taxa simbólica de R$ 19 porque, geralmente, se o evento é gratuito no Brasil, de 100 pessoas que se inscrevem só 50 aparecem. Só que todas as comunidades de hackers quiseram me matar, dizendo que o evento tinha que ser gratuito. “Apanhamos” muito com isso. Este ano decidimos não cobrar. Em cinco dias, recebemos 1.659 inscrições. Não temos como incluir isso tudo de gente, então precisamos selecionar.

Neste ano, estamos trazendo pela primeira vez para o Hacking.Rio o Space Apps Challenge, hackathon da NASA que acontece em várias cidades simultâneas e chegou ao Rio pela primeira vez no ano passado. Convidamos para participar especialmente programadores formados por projetos dentro de comunidades. Imagina que legal se um desses times vencer e for visitar a NASA?

No ano passado, o foco estava muito no Rio. Este ano não é mais Rio, é Brasil, temos vários participantes de fora do estado. Daqui podemos gerar soluções para outros lugares, queremos que sejam desafios com impactos sociais que transformem vidas. As soluções têm que ser tecnológicas, mas não existe solução sem colaboração. Este ano a transformação digital deve ser baseada na transformação de pessoas, na educação digital.

O Brasil tem problemas que parecem insuperáveis. É possível, de verdade, transformar nossa realidade social com tecnologia e inovação?
Existem vários exemplos disso. Lá na Maré surgiu recentemente uma startup chamada Banco Digital Maré. O Alexander Albuquerque, que é um dos palestrantes do Hacking.Rio, percebeu que as pessoas tinham dificuldade para pagar as contas porque não existia banco na comunidade. Por isso ele fez uma plataforma blockchain que facilitava esse pagamento.

O Alexander percebeu que quase não existiam programadores de blockchain no Brasil. Então desenvolveu um programa de formação para que as pessoas da comunidade aprendessem a programar. Esse caso mostra que é possível alavancar uma comunidade não só com uma startup que resolve um problema, mas também formando novos líderes que passem a fazer parte da construção dessa história.

Conte um pouco da sua trajetória. Quando e por que você começou a empreender?
Sempre tive uma veia empreendedora. Meus pais são imigrantes portugueses que chegaram ao Brasil bastante pobres. Quando pequena, eu sonhava em ser astronauta e pianista, apesar de não termos condições de comprar um piano.

Com 10 anos, consegui entrar na Academia de Música Lorenzo Fernandez [na Lapa, região central do Rio de Janeiro] e aos 15 montei uma pequena empresa onde dava aulas de piano. Nunca me tornei astronauta, mas bem mais tarde entrei em um programa promovido pela NASA na Singularity University, na Califórnia.

Depois que cursei engenharia na faculdade, passei por diferentes empresas, como Shell, National Bank e J. Macedo, onde fui diretora de marketing. Em 1994, pedi demissão e fui ajudar meu marido na criação de uma cadeia de restaurantes chineses em shoppings. Oito anos depois, deixei meu marido tocando o negócio e voltei para o mercado como consultora.

Já assumi vários papéis ao longo da carreira. A cada cinco anos, mudo de ciclo e viro aprendiz. Hoje também invisto em startups e desenvolvo programas de inovação dentro de empresas.

Você também teve uma passagem pela Rede Globo. O que levou dessa experiência?
A Globo me convidou em 2006 para criar um movimento que melhorasse a qualidade de vida dos funcionários. No fundo, eles não queriam uma consultoria — e sim um milagre. Como reduzir as horas de trabalho sem mexer no tempo de montagem, produção e desmontagem? Acabei descobrindo que o que faz inovar é mudar a mente das pessoas, fazer elas acreditarem que é possível.

Na época eu tive a sorte de ninguém acreditar que daria certo. Como ninguém acreditava, me deixaram fazer, mas sem dinheiro, equipe, nada. Comecei com nove pessoas, que toparam ser voluntárias. Em um ano, a gente tinha 1 800 voluntários, desde assistente de iluminação até diretor artístico.

No tempo que fiquei lá, desenvolvemos 347 células de projetos, de soluções para resolver o uso excessivo de copos plásticos no Projac até uma tecnologia de cenários virtuais que interagiam com pessoas em tempo real. Também desenvolvemos uma metodologia que ajuda a formação de projetos inovadores transversais nas empresas.

O mais legal foi ver um assistente de iluminação falando: “cara, eu descobri que sou inovador”. Você não precisa ser gênio, um Einstein ou Steve Jobs, para inovar e fazer a diferença. A maior lição e prêmio que eu recebi foi ver esse programa despertar mais de 1 800 pessoas e transformar vidas

Como foi participar do programa na Singularity University?
Quando abriram o programa, em 2010, eu ainda era responsável pela área de inovação no Projac. Eles iam escolher um líder de cada país, e fui selecionada não porque tivesse um currículo maravilhoso, mas porque queriam lideranças com grande poder de influência.

Tive aula com o Daniel Barry, astronauta da NASA especialista em robótica. Era tudo muito intenso. Em quatro horas, ele tinha de ensinar tudo que podia de robótica e nas outras quatro a gente tinha de fazer um projeto — foram dez dias de imersão.

A tendência de todas as novas tecnologias é crescer em abrangência de acesso e velocidade. No programa, descobri que não é a tecnologia que faz a diferença, mas o que você faz com ela. Entendi também que não estamos numa era de crise, mas de oportunidades, porque hoje há um número infinito de possibilidades para resolver os problemas da humanidade.

Você  foi diretora-executiva da Anpei (Associação Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento das Empresas Inovadoras). O Brasil, porém, ainda é considerado um país muito difícil para se empreender e inovar. Quais são os maiores entraves?
O grau de burocracia para abrir e fechar uma empresa é muito grande. Quando se está começando, é preciso conhecer diversas áreas, como marketing, gestão, contabilidade, sendo que você não tem informações acessíveis. No Hacking.Rio, para fazer o contrato com qualquer empresa, temos que preencher milhões de formulários, reconhecer firma…

Esses são alguns entraves para se criar um ambiente de inovação e empreendedorismo mais ágil. Acabar com essa papelada nos ajudaria a entrar na competitividade global. Porque não adianta ser uma startup que resolve um problema local se você não pensar globalmente. Por exemplo, uma empresa de táxi local: o que impede que startups globais, como o Uber, entrem nesse mercado?

Percebi que a maioria dos inovadores não é tão inovadora assim. Para ser inovador, não pode “pedir licença” — tem que pedir desculpa. Precisa fazer e depois mostrar que aquilo deu certo. Se for passar por 200 mil comitês, depois de um ano aquele projeto não vai ser mais inovador

Na Anpei, tive dificuldade de obter informação sobre as empresas porque as pessoas têm medo de abrir esses dados. Mas não existe inovação sem colaboração. Se um setor precisa crescer, talvez seja necessário se juntar até com o concorrente. Hoje há muitas lideranças que querem inovar, mas sentem dificuldade de quebrar os modelos tradicionais de governança.

Falta colaboração entre os diferentes setores da sociedade?
As pessoas não falam a mesma linguagem. Para alavancar uma cidade inovadora, é preciso juntar governo, academia, investidor, empresário e empreendedor. Acionar uma “tecla SAP”, porque a linguagem da academia é uma e da empresa é outra, mas todos fazem parte de um mesmo ciclo.

A grande dificuldade do mundo é o “egossistema”, [precisamos] tirar o ego de lado e colocar essas pessoas para conversar e desenvolver um projeto juntos. Se o “bolo” cresce para todo mundo, melhora para você também.

Que dica você daria a um jovem que quer começar a empreender e inovar no Brasil?
Primeiro, procure comunidades de empreendedores e programadores, comece a aprender com quem faz. Aqui no Rio temos os Cariocas, uma comunidade de startups, em Minas tem o San Pedro Valley, no Pará o Açaí Valley. Segundo, busque uma dor real. Não adianta ter a ideia, só inova quem descobre uma solução para necessidades reais do mercado e da sociedade.

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