Toda empresa fala que tem “foco no cliente”. A maioria dos executivos fala que sabe tudo sobre seus clientes. Na maioria das vezes não é verdade. Pouca gente se dispõe a expor o que de fato acontece no mundo corporativo.
Com base em experiências em mais de 100 organizações de diferentes setores, arrisco dizer que mesmo com todo o desenvolvimento de tecnologias e métodos de levantamento de dados, infelizmente os executivos estão cada vez mais distantes de seus clientes — e, muitas vezes, de suas equipes.
A pandemia só inflamou o problema. Aumentou tanto a distância física quanto a distância estrutural entre stakeholders. Não há mais o espaço para o acaso, a convivência pela convivência (sem objetivo específico, pauta ou hora marcada), os silêncios e oportunidades emergentes
Estamos menos nas ruas observando as pessoas. Ficamos cada vez mais entre iguais ou semelhantes. Isso sem contar as grandes diferenças de acesso à infraestrutura, tecnologia, espaço adequado, conteúdo e visão de mundo.
ONDE NASCE O PROBLEMA
Lidamos com uma questão estrutural de priorização e formação ideológica dos negócios. Para chegar onde chegamos, começamos lá atrás, quando a noção sobre os objetivos de se ter um negócio determinou seu foco.
Já vivi intensas discussões em turmas de MBA ou entre executivos sobre qual é o objetivo central de um negócio:
1) Gerar lucro e valor para os acionistas;
2) Gerar valor numa relação de troca com seus clientes e obter lucro como consequência.
A forma como você entende o mundo determina qual será a sua resposta. No entanto, não há possibilidade comercial se não há troca de valor entre agentes interessados independentes, sem oferecer algo que as pessoas desejam ou precisam.
Aqui, serei categórico: se desejo ter um negócio, preciso resolver um problema ou gerar valor para alguém; e a forma como faço isso precisa ser menos onerosa do que o custo de fazê-lo.
Parece óbvio, mas não é.
E OS ACIONISTAS?
A lógica foi ainda mais empenada pela presença dos acionistas. Há registro de operações de crédito para viabilização de projetos há mais de 5 000 mil anos, muito antes da cunhagem ou de estabelecimento de mercados.
Logo, a obtenção de crédito para viabilizar iniciativas sempre fez parte da vida humana em sociedade, mesmo que esse crédito fosse de honra ou qualquer outra ordem não financeira.
O problema é que nos últimos 200 anos, a presença de investidores, o mercado financeiro e a especulação criaram um monstro cujo objetivo é gerar mais dinheiro a partir do próprio dinheiro (ou do potencial futuro).
Essa alquimia desloca os interesses dos meios produtivos para estruturas mais complexas, seletas e especulativas (ou criativas).
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Portanto, quando investidores entram em um negócio, seja qual for, a relação de poder neste acordo altera a governança e muitas vezes desloca o foco do empreendedor de satisfazer seus clientes (prestando um bom serviço) para a necessidade de satisfazer a expectativa financeira de seus investidores — produzindo mais com menos, otimizando sua produção, entregando o mínimo esperado para passar na conta do cliente e conquistando volume e receita a qualquer preço (independentemente disso ser bom ou ruim para as pessoas).
O resultado dessa distorção é que a grande maioria das empresas de sucesso hoje trabalha não para seus clientes, mas para seus acionistas. Eles são os stakeholders prioritários e isso orienta toda a matriz de decisões e a cultura dessas organizações.
O problema é tão sistêmico que as empresas que fazem um pouquinho mais para tratar seus clientes e colaboradores de forma mais digna se destacam tanto na bolsa de valores quanto junto à opinião pública
Ao olharmos para como os valuations são feitos, fica evidente que o as métricas prioritárias que determinam o valor de uma startup, por exemplo, estão na capacidade de retornar o investimento de seus acionistas. Raramente são relacionadas à qualidade do serviço prestado aos clientes. O que interessa geralmente é o tamanho da base, ticket-médio, recompra e fidelização. Números — sem cara ou identidade.
Faça-se a seguinte pergunta: a sua empresa realmente faz tudo que poderia fazer para gerar mais valor e resolver o problema das pessoas? Entre o que é fundamental para um cliente e o que fundamental para o acionista, qual pesa mais?
Agora pense em todas as empresas que você conhece, que te atendem, tudo que você consome. Os serviços são prestados de acordo com o que é mais importante para você? Ou para a própria organização?
O AGENTE INVISÍVEL
Desumanizamos os negócios e criamos uma entidade invisível, impessoal, fantasmagórica e influente chamada mercado.
Não, eu não sou um comunista antimercado. O que quero destacar aqui é que o parâmetro de sucesso, fracasso, lucro, satisfação de clientes, práticas trabalhistas, tudo passou a ser influenciado ou determinado pelo que o “mercado” diz, faz, aponta, deseja.
O aspecto sinistro é que “mercado” é apenas uma forma de desresponsabilizar as pessoas por seus interesses e decisões, afinal, tanto os mercados, quanto as empresas são formados por pessoas. Por algum motivo, tornou-se fundamental despersonificar e esse processo permite amenizar e generalizar a culpa por decisões ruins.
Em casos não raros, o cliente é tratado como um problema para a organização. Um empecilho ou obstáculo entre o empreendedor/gestor e o lucro/resultado
Infelizmente, às vezes as empresas precisam “parar para lidar com esse inconveniente”, seus próprios clientes. Quantas vezes você já ouviu algo pejorativo sobre os clientes da sua empresa pelos corredores?
De alguma forma, o sucesso de uma empresa serve para afastá-la da realidade das pessoas.
Quanto mais um empreendimento cresce e dá certo, mais ele vai criando estruturas burocráticas internas, equipes, áreas e toda uma complexidade organizacional
Essa estrutura existe não mais para servir e atender, mas para: defender sua própria existência, em primeiro lugar; gerar retorno aos acionistas, em segundo; cuidar dos interesses de seus colaboradores (sobretudo no topo da pirâmide); e, se der tempo, fazer algo pelo cliente.
A razão de ser da empresa passa a ser cada vez mais autocentrada. Mas nada disso é novidade. Se olharmos para a expressão “subir na vida”, o que ela quer dizer? O topo, a torre, a cobertura — bem longe das pessoas, claro.
O AUTOENGANO
Mas será que as pessoas não percebem isso? Sim, percebem, mas o status quo tem formas inteligentes de lidar com suas distorções.
Um exemplo curioso se chama inteligência de mercado. A inteligência de mercado é a forma mais eficiente de desumanizar todas as atividades de uma organização em seu ecossistema, a fim de atribuir números e dados, para justificar e viabilizar decisões anti-humanas
Essa articulação se dá através de códigos sociais e culturais que reforçam o isomorfismo normativo da alta direção e faz com que a visão de mundo e as hipóteses de meia dúzia de homens brancos, de classe média alta, formados em escolas particulares façam inferências sobre sua base de clientes (termo anti-humano para cidadãos comuns) de dentro de uma sala com ar condicionado e máquina de café espresso.
Chegamos ao ponto em que executivos e empresas contratam pesquisas e ferramentas de big data para “conhecer seus clientes”, de preferência em um dashboard cheio de gráficos e números, mas sem o menor traço de seres humanos.
Em que ponto da rotina corporativa os líderes se tornaram tão ocupados com suas próprias burocracias, a ponto de terem que contratar uma empresa terceira para ir a campo, descobrir e contar para eles como são seus próprios clientes?
Se não é o cúmulo da ironia, é pelo menos uma piada sem graça.
SAINDO DA BOLHA
Sempre recomendo, em qualquer projeto, ir a campo conversar com as pessoas. Colocar o dedo no pulso dos seres humanos, olhar nos olhos, observar, viver as experiências tentando se colocar na perspectiva singular daqueles indivíduos, ouvindo suas histórias, motivações e desejos.
As melhores abordagens sobre inovação que conheço promovem esse tipo de contato. Em 100% das vezes, os executivos voltam impactados — alguns até transformados.
Toda vez que uma organização conta o quanto sabe sobre seus clientes e colaboradores apresentando o relatório de uma pesquisa quali/quanti, dá vontade de chorar. Não porque seja ruim e inútil, mas pela evidência do quanto mecanizamos as relações
Inútil mesmo são os famosos grupos focais, uma maneira de influenciar os humanos em condições controladas para responder a determinados vieses. Isso quando os resultados não são propositalmente empenados para atender ao que disse o contratante ou algum acionista poderoso.
Ou seja, a empresa contrata uma pesquisa para justificar o desejo de alguém com fatos e dados. Dúvida? É mais comum do que você imagina.
HUMANIZAR É PRECISO
Cada vez mais, criamos organizações para o mercado e não para humanos, mas como diz Richard Thaler, o mundo é feito por Sapiens e não pelo “Homo Economicus”, que vive de forma racional e sempre economicamente determinado pela lógica.
Enquanto isso, criamos uma camada de verniz no processo desumanizado: chamamos de propósito, employee branding, customer experience. Raramente o trabalho é feito de baixo para cima, através de uma perspectiva etnográfica das pessoas impactadas. Todos os termos são insuficientes para tratar o problema como ele é. Apenas analgésicos para tornar a rotina menos insuportável.
Só vejo alguma mudança possível quando a matriz de tomada de decisões do sistema é alterada. Enquanto uma organização lutar mais para atender aos interesses de seus acionistas e manter seu próprio status quo do que para gerar valor a seus clientes, veremos o looping se repetir
E não se engane, não estou falando sobre filantropia. Gerar mais valor para seus clientes e conhecê-los profundamente talvez seja a forma mais consistente, duradoura e sustentável de garantir a vida do seu negócio.
Quando foi a última vez que você foi a campo (mesmo que digitalmente) para bater um papo e entender as pessoas que usam, consomem ou precisam do seu produto/serviço?
Paulo Emediato é sócio do DesignThinkers Group Brasil, tem 15 anos de experiência em gestão, marketing, comunicação e inovação, e já desenvolveu projetos em mais de 100 organizações. Estudou no Programa de Inovação Transdisciplinar (2019), da Hebrew University of Jerusalem, de Israel, tem formação executiva pela Stanford School of Business, é especializado em gestão pela Fundação Dom Cabral e graduado em comunicação pela PUC-MG.
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