Assim como muitas mulheres negras, Geo Nunes, 34, passou a infância sem ter uma boneca com a qual realmente se identificasse.
Ela só foi questionar essa situação, contudo, quando adulta, ao comprar bonecas para crianças de um projeto social em Salvador.
“Como, numa cidade com mais 80% da população negra, quase não tem bonecas negras à venda?”
O incômodo foi tão grande que Geo foi atrás da sua antiga máquina de costura e de materiais para fazer por conta própria bonecas negras. Ela não imaginava, porém, que esse seria o começo da Amora Brinquedos, loja de materiais lúdicos voltados para uma educação antirracista.
Empreender nunca esteve nos planos de Geo. Nascida em Tucano, no interior da Bahia, ela foi para Salvador fazer faculdade de design de produtos e, após concluir o curso, trabalhou em agências de publicidade e design.
Ela não se sentia, contudo, realizada profissionalmente: “Não queria trabalhar só por dinheiro, queria produzir algo que tivesse uma função social, mas ainda não sabia com o quê”, diz.
Em outubro de 2015, ao perceber a falta de bonecas negras disponíveis no comércio, Geo encontrou o que viria a ser a resposta para seus questionamentos.
“Tinha bonecas brancas de diversos modelos — mas, pretas, só de um tipo. Achei um absurdo e, mesmo sem nunca ter projetado uma boneca, decidi que iria tentar mudar essa realidade”
Assim, ainda trabalhando como designer, Geo começou a desenvolver no seu tempo livre o que viria a ser a primeira boneca Amora.
“Pesquisei muito na internet sobre produção e costura para chegar a um modelo que me agradasse”, diz.
Como tratava-se de uma atividade voluntária e pontual, a empreendedora conta que o investimento inicial foi de menos de 100 reais, gastos com tecidos e linhas para as bonecas, que eram doadas para conhecidos e crianças que cruzavam o seu caminho.
O objetivo da Geo era fazer com que as crianças negras se sentissem pertencentes e representadas durante as brincadeiras e, consequentemente, na vida.
“Quero mostrar que todas as crianças podem ser o que quiserem, que não existe lugar pré-definido para elas, que elas podem criar a sua história com todas as possibilidades”
Em 2017, Geo ganhou um prêmio do Centro Empreendedores e Inovação da UNIFACS, universidade localizada em Salvador, e conquistou 6 mil reais para investir no projeto.
“Com esse valor, comprei uma máquina de costura e materiais novos, desenvolvi um site de vendas e decidi transformar o projeto em um negócio de impacto, com foco no lucro financeiro e social”, diz.
O prêmio incentivou Geo, também, a se demitir do emprego de designer e a trabalhar como empreendedora e em ONGs de negócios sociais.
Enquanto desenvolvia o modelo de negócio, Geo percebeu, durante uma doação de bonecas em uma praça, que algumas crianças negras reagiam com estranhamento ao receber as bonecas e que o negócio precisaria ir além das vendas desses produtos.
“O brinquedo sozinho, muitas vezes, não era suficiente para que a criança se identificasse com ele, precisa estar relacionado com uma educação que fale sobre diversidade, racismo, ancestralidade e história afro-brasileira”
Por isso, ela decidiu que a cada boneca vendida, outra seria doada para escolas públicas da região, para incentivar projetos de educação nesse tema.
A doação dessas bonecas acontece desde 2017, em eventos chamados “Eu brinco, Eu existo!” realizados pela Amora Brinquedos em parceria com escolas públicas de Salvador.
Nestes, junto com as doações, são realizadas conversas lúdico-pedagógicas sobre combate ao racismo, autoestima e respeito às diferenças. Ao todo, segundo Geo, já foram realizados 13 eventos, que impactaram cerca de 5 mil crianças.
Para participarem, as escolas devem se inscrever no site da Amora Brinquedos, na opção “Amora na Escola”.
Geo destaca que há dois critérios para a seleção das instituições: já trabalhar com uma educação antirracista de forma comprovada e atender crianças de 0 a 6 anos.
A empreendedora informa que, por falta de recursos suficientes, só é possível atender escolas do estado.
A pandemia foi um momento de grandes mudanças para a Amora Brinquedos. Com o aumento das vendas digitais decorrente do período, Geo decidiu abrir mão de outros trabalhos para se dedicar totalmente à empresa.
“Mais focada, decidi diversificar os produtos e, além de novos modelos de bonecas, investi na criação de uma linha escolar com estojos, mochilas, livros de colorir e giz de cera com tons que representam a pele negra”
Geo disponibilizou, também de forma gratuita, versões digitais de jogo da memória e quebra-cabeças (ainda estão disponíveis no site), onde há a representação de personagens negros.
Para acompanhar as mudanças, a empresária passou a exercer a gestão e planejamento operacional do negócio e decidiu ampliar a equipe. Hoje, a Amora Brinquedos, que tem sede em Salvador, conta com duas costureiras e uma Social Media, que cuida das redes sociais.
Os brinquedos são realizados por encomenda em fábricas nacionais parceiras e as bonecas são feitas de forma artesanal internamente.
“A nossa produção se assemelha ao estilo ‘slow fashion’, porque se preocupa mais com detalhes do que com a rapidez de desenvolvimento ou a quantidade dos itens”
A maior parte das vendas (80%) é realizada pelo site e o restante (20%) vem da revenda realizada por lojas colaborativas parceiras em Salvador. Hoje, as vendas online podem ser feitas em todo o Brasil. Com as mudanças desse período, o faturamento dobrou de 90 mil reais, em 2021, para 180 mil reais, em 2022.
Até o final do ano, a empreendedora pretende novamente aumentar em 100% o faturamento, além de chegar a mais escolas da região.
Também, recentemente, a Amora Brinquedos lançou uma linha de produtos voltados para recém nascidos, formada principalmente por cueiros, tecidos usados para envolver bebês, que são estampados com personagens negros.
Lorena Ifé, 34, é cliente e apoiadora da Amora Brinquedos há alguns anos. Ela acredita que se tivesse tido acesso a brinquedos que a estimulassem a amar suas características negras quando criança, poderia ter tomado algumas atitudes diferentes.
“Se eu tivesse tido essa experiência e aprendido a amar os meus cabelos, provavelmente, nunca os teria alisado”, diz Lorena.
Hoje, com o filho Miguel Ifé, de 7 anos, Lorena quer fazer diferente. Segundo ela, desde que ele nasceu, a família busca introduzir elementos lúdicos antirracistas, como livros e brinquedos, para compor a sua educação.
“Há dois anos, ele ganhou a sua primeira boneca negra, da Amora Brinquedos, e a conexão foi instantânea, ele amou. Acredito que esses materiais são muito importantes para o processo de construção de autoestima e identificação dele como uma criança negra”
Pedagoga e especialista em questões de gênero e raça, Viviana Santiago explica que o brincar vai além da fantasia e é um momento em que as crianças simulam e criam a sua existência no mundo.
Por isso, é importante que o universo lúdico infantil tenha características diversas que vão além do padrão “branco, de cabelo liso e magro”, para que os pequenos construam uma relação saudável consigo mesmos e uns com os outros.
Segundo a especialista, brinquedos antirracistas, como bonecas e bonecos negros, são importantes para o desenvolvimento de todas as crianças.
“Para a criança negra, é uma forma dela se sentir pertencente e habitando um mundo com diversas possibilidades; já para a criança branca, é uma maneira de reconhecer o diferente dela como também belo e digno de respeito e afeto”
De acordo com a especialista, é importante que esses brinquedos sejam apresentados às crianças o mais cedo possível.
“Quanto mais tempo elas passarem sem referências de brinquedos diversos, mais consolidado estará o padrão estético eurocêntrico nessa criança e, mesmo que ela se pareça com a boneca negra, ela terá mais dificuldade de se identificar com ela”, afirma.
É nesse momento, diz Viviana Santiago, que os pais ou professores entram em cena.
“Eles devem mediar o encontro dessas crianças com esses brinquedos exaltando as características negras como positivas, para que não haja estranhamento por parte da criança e seja criado um lugar que relaciona a negritude com beleza, cuidado, afeto e pertencimento.”
A Diáspora.Black nasceu com foco no turismo como ferramenta antirracista. A empresa sobreviveu à pandemia e às dívidas, diversificou o portfólio com treinamentos corporativos e fatura milhões sem perder de vista sua missão.
Como usar o mundo corporativo para reduzir a desigualdade racial? Por meio da tecnologia, a Diversidade.io conecta afroempreendedores a grandes empresas que desejam tornar sua cadeia de fornecedores mais inclusiva.
Jéssica Cardoso sofreu preconceito ao oferecer seu trabalho de intérprete de Libras como autônoma. Ela então decidiu criar uma rede de profissionais negras para tornar eventos e empresas mais acessíveis e lutar contra o racismo estrutural.