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“Precisamos olhar para a questão do lixo de maneira holística. Não adianta apenas um setor querer resolver”

Maisa Infante - 26 dez 2019
Guilherme Brammer Jr., fundador da Boomera e vencedor do Prêmio Empreendedor Social 2019 (foto: Renato Stockler).
Maisa Infante - 26 dez 2019
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No dia 5 de novembro de 2019, o engenheiro Guilherme Brammer Jr., 42, recebeu o Prêmio Empreendedor Social, realizado pela Folha de S.Paulo e pela Fundação Schwab desde 2005. Ele é o sócio fundador da Boomera, uma empresa de Economia Circular que transforma resíduos em matéria-prima e em produtos reciclados. Esse trabalho já desviou dos aterros sanitários 60 mil toneladas de plástico. 

A Boomera existe com este nome desde 2017, mas tem uma história mais longa. Guilherme começou o negócio em 2012 com o nome de WiseWaste (que foi tema de uma reportagem do Draft em 2014). Ele vinha de uma trajetória de 17 anos em grandes corporações como CSN, Dixie Toga, Celulose Irani e Vitopel e deixou o mundo corporativo para fazer algo que impactasse o planeta e as pessoas. Em 2017, a empresa mudou de nome e ganhou um sócio, Luiz Butti.

Hoje, a Boomera tem 150 funcionários e um faturamento que deve chegar a 100 milhões de reais em 2020. Além do Brasil, atua na Argentina, transformando embalagens flexíveis (suco, chocolate, rótulos etc.) em pallets plásticos, e está negociando com Chile, Colômbia e Guatemala. Há uma fábrica no Paraná e outra que deve ser inaugurada em janeiro, em Atibaia (SP). 

Leia também: Quando a atitude vira moeda: a So+ma Vantagens ataca o desafio de estimular a reciclagem na periferia com um programa de pontos

O impacto da Boomera não se restringe a desviar lixo dos aterros. Guilherme diz que a empresa também impacta a vida de catadores, as cooperativas e o desenvolvimento da ciência no Brasil. São 200 cooperativas que trabalham em parceria com a Boomera. Ao todo, segundo o empreendedor, 8 mil catadores (de 13 estados) tiveram um salto na renda de 400 reais para 1 500 reais por mês.

Em parceria com o Instituto Mauá de Tecnologia, em São Paulo, a empresa mantém um laboratório de pesquisa e inovação que ajuda a formar novos cientistas e a criar mercado para os produtos desenvolvidos lá dentro — um deles, uma tecnologia de reciclagem de fraldas descartáveis sujas, deve chegar em breve ao mercado. 

Entre exemplos de clientes e projetos da Boomera, a Adidas patrocinou a transformação do lixo retirado da Baía de Guanabara, no Rio, em cones usados em aulas de educação física; a rede Mundo Verde converteu seu estoque de canudos de plástico em copos duráveis, enquanto cápsulas de café Dolce Gusto foram transformadas em acessórios da marca. 

A seguir, confira os principais trechos da nossa conversa com Guilherme. 

 

Você começou a sua carreira em grandes empresas, incluindo uma mineradora, setor que não é lá muito sustentável. Já tinha consciência ambiental nessa época?
Minha consciência ambiental vem desde moleque. Nasci em São Paulo, mas até os 15 anos passei todas as minhas férias e finais de semana em um sítio do meu tio em São Roque. Então, tive muito contato com a natureza. Depois, meu tio vendeu esse sítio e há cinco anos eu o comprei de volta. E é para onde eu levo os meus dois filhos, de 7 e 3 anos, aos finais de semana.

E como foi, para quem já tinha consciência ambiental, trabalhar nestas empresas?
O que me incomodava não era a questão ambiental, mas a falta de conexão entre a missão proposta e o dia a dia do negócio. No dia a dia era evidente o olhar tradicional para lucro como meio e não como fim. E o que estava escrito na missão de se preocupar com as pessoas e com o meio ambiente era uma utopia. Não havia nenhum objetivo específico para alcançar aquilo.

Por isso você decidiu deixar o mundo corporativo e empreender na área social?
Percebi que eu estava no lugar errado. Eu era aquele chato do cafezinho, que reclamava de tudo. Eu me questionava muito sobre para onde as coisas iam, o que viravam, o que acontecia com elas.

 E como foi fazer a transição para o empreendedorismo social?
Teve uma questão familiar, que foi quando meu sogro teve câncer e trouxe uma consciência do finito que me fez pensar. Eu era o chato que não fazia o que gostava. O que poderia fazer para mudar isso? Comecei, então, a estudar empresas para trazer para o Brasil, mas não queria consultoria, queria colocar a mão na massa. E acabei indo para a linha de reciclagem. 

No primeiro momento, estava focado em pesquisa e desenvolvimento, transformando lixo em matéria-prima. Até que fui em uma cooperativa de catadores na Marginal Pinheiros, em São Paulo. 

Foi um soco no meu estômago. Era um ambiente insalubre, com pessoas remexendo o lixo para ter o ganha-pão no final do dia. Mas elas trabalhavam sorrindo e orgulhosas do que faziam

Estava claro que elas precisavam de uma visão de negócio. Foi aí que pensei em juntar pesquisa e desenvolvimento, que eu chamo de ciência com consciência. E nasceu a ideia do negócio.

E o que significou receber o Prêmio Empreendedor Social?
Fiquei surpreso e emocionado. O vídeo exibido no dia da entrega com depoimentos de pessoas que trabalham comigo e pessoas que foram impactadas pelo trabalho me fez pensar em como a gente consegue fomentar a ciência, impactar as universidades, as cooperativas, os catadores. Foi uma surpresa positiva para todo mundo da Boomera, não só para mim. 

 Como é a relação da Boomera com a universidade e a pesquisa científica?
Temos um laboratório de inovação dentro do Instituto Mauá de Tecnologia e lá os jovens cientistas nos ajudam a desenvolver as tecnologias. Tem muitos cientistas, novos ou experientes, sem projetos práticos para trabalhar, o que faz com que percam o interesse em nova ciência. Quando levamos um projeto prático, essa pesquisa acontece e ganhamos muita velocidade de desenvolvimento. A Boomera paga bolsa para estudantes e compartilha a propriedade intelectual com quem ajudou a desenvolver. 

E foi nesse laboratório que vocês desenvolveram o projeto de reciclagem de fraldas descartáveis sujas?
Foi. A fralda é um resíduo com muita mistura de materiais. Juntamente com um professor especializado em esterilização, começamos a estudar a possibilidade de reciclagem e conseguimos desenvolver uma tecnologia que transformou a fralda em um material que usamos para fazer cabides e lixeiras.

Esses produtos já estão no mercado?
Ainda não. É um processo um pouco demorado porque estamos lidando com dejetos humanos. Estamos finalizando os últimos ensaios e, dando certo, vamos oferecer para o mercado, que é bem diferente do laboratório. Queremos lançar isso como uma solução escalável. 

A Boomera trabalha com grandes empresas. Você acha que elas estão mudando a consciência ou estão apenas cumprindo a Política Nacional de Resíduos Sólidos?
As duas coisas. As políticas públicas pressionam a sociedade a repensar. A Economia Circular estava distante da visão estratégica das empresas porque o modelo de gestão de lixo no Brasil ainda é, majoritariamente, o de mandar tudo para o aterro. Em paralelo, existe um forte movimento global pelo impacto do lixo no mundo. 

Quando imagens de lixo boiando aparecem nas redes sociais, as empresas são muito impactadas — porque é a marca delas na embalagem que fica em evidência. E se elas não se mexerem, novos negócios mais sustentáveis levarão a participação de mercado

Isso está ajudando a transformar mais rapidamente a forma de fazer negócios. Se fosse só pela lei, com certeza a velocidade seria bem menor. 

Em que momento está a reciclagem no Brasil?
Há duas formas de olhar. Na visão geral, só 15% das cidades brasileiras têm coleta seletiva. É bem pouco. Mas se fizermos um recorte por tipo de material, temos bons números. 

Reciclamos quase 95% do alumínio e latas; as embalagens de defensivo agrícola são quase 100% recicladas; 85% do papelão ondulado que é colocado no mercado é reciclado. No caso das embalagens PET, reciclamos 55%. Só não reciclamos mais porque não tem coleta seletiva. 

Outros tipos de plástico também não são reciclados porque falta coleta. Mas existe uma demanda enorme por estes produtos. O grande problema não é técnico, é logístico.

E qual o papel da educação ambiental neste cenário?
Fundamental. O consumidor não sabe se o que ele está fazendo é certo ou errado porque não tem informação acessível. E se você não facilita a vida da pessoa, ela vai fazer do jeito que sempre fez. O que falta é olhar para a questão do lixo de maneira holística. 

Não adianta apenas um setor querer resolver. Tem que integrar educação, logística, novos materiais, novos produtos mais fáceis de recuperação, setor público e setor privado. Ainda temos um mercado que é cada um defendendo o seu

Muitas empresas, por exemplo, lançam garrafa PET colorida para se destacar, mas é um produto que tem um valor muito baixo na reciclagem. Vale menos da metade do que vale a embalagem transparente. 

Outra questão é a mistura de materiais no mesmo produto, o que dificulta a reciclagem porque é preciso uma fábrica só para separar os materiais. Essa falta de visão holística é o que prejudica mais. Precisamos de conversas setoriais integradas. 

De todos os projetos que a Boomera já desenvolveu, qual você mais gosta?
Gosto muito do projeto que transformou embalagem de suco em pó em instrumentos musicais [os 15 mil instrumentos foram doados a 100 escolas públicas, em 2014]. Conseguimos conectar arte, música e o desafio técnico para fazer os instrumentos e ainda deixamos um legado, que foi todo o conteúdo de aulas para crianças de 6 a 12 anos escrito pelo maestro João Carlos Martins.

A Boomera já tem uma fábrica no Paraná e vai inaugurar outra em São Paulo. Pode contar um pouco a respeito dessas unidades?
No Paraná, produzimos lonas recicladas e resinas. E o projeto em São Paulo é uma parceria com a Dow Química, que é uma grande fabricante de plástico que está preocupada com a Economia Circular e vai ter no portfólio uma linha de resinas feitas com material reciclado produzida nessa fábrica. 

Essa resina será feita a partir de resíduos pós-consumo complexos, que misturam muitos materiais. Estamos na fase de montagem e começamos a operar em janeiro. Teremos capacidade de produzir 15 mil toneladas, com capacidade de expansão.

Uma fábrica, mesmo que de reciclagem, não tem um impacto ambiental negativo?
Se analisarmos a cadeia, a reciclagem tem um impacto muito menor que a produção de uma resina virgem. Até porque a matéria já está aqui, é preciso apenas lavar e polimerizar para ter característica de virgem de novo. 

É uma cadeia mais curta e menos agressiva do que extrair o petróleo, transformar em nafta e polimerizar. A reciclagem também consome menos recursos. A nossa lavagem é feita com ciclo fechado, a água é tratada no local e a transformação mecânica tem baixo uso de energia. 

 Na matéria publicada pelo Draft em 2014 sobre a WiseWaste, você disse que um dia contaria para a sua filha, então com 2 anos, que estava tentando resolver um problema sério no Brasil e no mundo. Hoje ela tem 7 anos. Você fala com ela sobre esse assunto?
Falo bastante. Ela pergunta quem eu sou e digo que sou lixeiro. Um dia ela voltou da escola dizendo que as amigas tiraram sarro porque o pai dela é lixeiro. Perguntei se ela tinha vergonha do que eu faço e ela disse que não, porque estou limpando o planeta. 

 

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