por Sergio Marchionne*
É óbvio hoje que estamos no limiar da maior revolução em termos de transporte individual desde que o automóvel substituiu a carruagem. Tendências disruptivas e orientadas pela tecnologia estão transformando a indústria automotiva. Mas há bem pouco consenso sobre como será o futuro do setor daqui a dez ou vinte anos como resultado dessas tendências. Infelizmente, não tenho uma bola de cristal e nenhuma verdade absoluta para compartilhar com você. O que posso fazer, no entanto, é compartilhar minhas ideias sobre os fatores que provavelmente moldarão os próximos anos. Com esses fatores em mente, podemos pensar como estamos abordando essa jornada.
Toda vez que participo de uma rodada de perguntas e respostas, seja para estudantes universitários, analistas, investidores ou para a imprensa, há duas perguntas que, com certeza, virão à tona. A primeira diz respeito às minhas perspectivas para os veículos elétricos, e a segunda se refere a veículos autônomos. Eles representam as mudanças tecnológicas mais significativas que provavelmente veremos no futuro próximo.
Reduzir a dependência do petróleo é um dos maiores desafios que a nossa sociedade – e o planeta como um todo – enfrentarão nos próximos anos. A proliferação de formas alternativas de propulsão é, em grande parte, resultado de uma consciência mundial emergente de que as emissões de carbono são um dos principais fatores que contribuem para a mudança climática. Como setor econômico, o transporte representa 14% de todas as emissões de gases de efeito estufa, principalmente por causa do uso predominante de combustíveis à base de petróleo, como gasolina e diesel. O setor automotivo é responsável por aproximadamente metade das emissões de CO2 desse setor, sendo o restante proveniente do transporte ferroviário, aéreo e marítimo.
Mesmo que o “transporte” por si não possa fornecer a solução, certamente podemos desempenhar um papel importante na redução dos gases de efeito estufa em geral. Contudo, precisamos ser claros: não existe uma única solução e nenhuma fórmula mágica para esse problema. Soluções rápidas e receitas mágicas que defendem oferecer uma solução permanente são pura ilusão. Já vimos isso uma década atrás, quando o hidrogênio estava sendo promovido como panaceia para os problemas ambientais.
Ficou claro que, além da duração e o custo das células de combustível, se o hidrogênio não fosse produzido por um processo limpo, a implantação em larga escala só teria deslocado o problema: embora isso nos desse automóveis bastante limpos, não deixaríamos de ter na nossa conta as enormes quantidades de energia e emissões poluentes vinculadas ao uso de combustíveis fósseis para a produção de hidrogênio em si. Assim sendo, o hidrogênio saiu de moda. Agora é a vez da eletricidade.
(Não estou excluindo o hidrogênio como uma solução potencial, mas exigiria uma abordagem realista e perspicaz).
Na FCA, trabalhamos e continuamos atuando em todas as diferentes formas de eletrificação de veículos: desde sistemas híbridos leves com tecnologia de 48 volts com sistema Start-Stop integrado, até sistemas híbridos completos que utilizam propulsão elétrica e a gasolina; sistemas híbridos plug-in e propulsão totalmente elétrica. Mas não podemos ignorar outros elementos importantes.
Consideremos a versão elétrica do Fiat 500, por exemplo. Cinco anos atrás, lançamos o 500 elétrico em mercados como a Califórnia, onde as leis estaduais impõem um volume mínimo de “veículos com emissão zero”. A verdade é que, para cada Fiat 500 elétrico que vendemos nos Estados Unidos, perdemos cerca de 20 mil dólares. Fazê-lo em larga escala seria, naturalmente, masoquismo econômico extremo.
Mas as limitações atuais para essa tecnologia não são apenas custos, autonomia da bateria, tempos de recarga ou uma rede de recarga subdesenvolvida. Há um aspecto muito mais importante: um aspecto bastante óbvio, mas quase nunca comentado.
Antes de afirmar que veículos elétricos são a resposta final, precisamos considerar o impacto ambiental de todo o ciclo de vida, do início ao fim, particularmente como a eletricidade é gerada. Cerca de dois terços da eletricidade mundial é produzida a partir de matéria-prima fóssil, sendo o carvão – que representa cerca de 40% – a pior opção, em termos de poluição. Ao longo dos últimos 20-25 anos, o percentual de eletricidade gerada por combustíveis fósseis aumentou efetivamente em quase 10 pontos percentuais.
A quantidade total de eletricidade produzida globalmente mais que dobrou nos últimos 15 anos, levando o uso de combustíveis fósseis, em termos de tonelagem, a níveis alarmantes. Mesmo que a eletrificação seja amplamente promovida – muitas vezes por motivos políticos – como a solução que salvará o planeta, a realidade é um pouco diferente.
Emissões de carbono vinculadas a carros elétricos em que a geração se baseia em carvão são, no melhor cenário, equivalentes às de veículos a gasolina.
Quatro anos atrás, pesquisas realizadas pela Norwegian University of Science and Technology concluíram que os veículos elétricos representam uma ameaça para o meio ambiente. Em termos de aquecimento global é quase o dobro daquele gerado por veículos tradicionais. Já temos as maiores concentrações de CO2 na atmosfera dos últimos 66 milhões de anos. Espera-se que até o ano 2100 estaremos próximos de 1.000 ppm. Esse nível de CO2 resultaria em um planeta livre de gelo, com uma elevação do nível do mar para mais de 40 metros. Um aumento em larga escala na produção de eletricidade só agravaria o problema, levando essas concentrações para além do ponto crítico.
Precisamos ser realistas.
Veículos elétricos podem parecer uma maravilha tecnológica, especialmente ao reduzir as emissões nos centros urbanos, mas essa tecnologia é uma espada de dois gumes. Forçar a introdução de veículos elétricos em nível global sem primeiramente resolver a questão de como produzir energia limpa representa uma grande ameaça à própria existência do planeta.
A introdução de veículos elétricos deve ser feita sem a imposição de exigências regulamentares e, enquanto isso, devemos continuar a aproveitar outras tecnologias disponíveis. Evidentemente, seria melhor se concentrar no aprimoramento de motores tradicionais e na expansão do uso de combustíveis alternativos, especificamente o gás natural que, em termos de extração e propriedades físicas, é atualmente o mais limpo e o mais eficiente.
* Sergio Marchionne é CEO da Fiat Chrysler Automobiles. Em 02 de outubro, foi reconhecido como Doutor em Engenharia Mecatrônica pela Università di Trento, Itália. A universidade lhe pediu um discurso a respeito do futuro da indústria automotiva e sobre como a tecnologia está mudando o setor. Em Trento está localizado um dos maiores centros de P&D do grupo no mundo, o Centro Ricerche FCA. Leia na quarta-feira, dia 24, a segunda parte do discurso de Marchionne durante o evento, a respeito de carros autônomos.
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