Hoje, ao olhar para um par de Havaianas, é incrível pensar que até os anos 1980, mais ou menos, muita gente torcia o nariz para aqueles chinelos “populares”, de borracha, por puro preconceito.
Em 2022, a marca que se transformou em ícone global da indústria da moda completa 60 anos, ostentando números impressionantes: 200 milhões de pares produzidos anualmente, mais de 150 mil pontos de venda no Brasil, exportações para mais de 80 países.
Fernanda Romano, CMO da Alpargatas (dona da Havaianas e também da Osklen), afirma que a sustentabilidade é hoje um dos pilares estratégicos da empresa, que vem apostando no fomento à economia circular.
“Nós já colocamos o suficiente sobre o planeta; se aprendêssemos a reciclar o plástico, o papel, o vidro e a borracha, seria muito bom. Por isso, estamos procurando uma forma de incorporar o produto pós-uso na fabricação de um produto novo. E não somos só nós. A indústria inteira está buscando fazer isso”
Por produto pós-uso, entenda-se, claro, o seu chinelo usado. Em 2021, a Havaianas deu início ao ReCiclo, um programa de logística reversa desenvolvido em parceria com a startup Trashin, especializada em gestão de resíduos.
O projeto espalha pontos de coleta em lojas da marca. Começou nas cinco unidades próprias, foi expandido para as franquias e já está em Portugal, Espanha, França, Itália e Grécia. Além de reduzir o impacto do descarte de Havaianas, o objetivo é desenvolver toda uma cadeia de produção que se beneficie desse negócio.
A seguir, Fernanda conta um pouco sobre os desafios dessa iniciativa — e sobre outras ações de sustentabilidade implementadas ou apoiadas por Havaianas.
Quando e como surgiu a ideia do ReCiclo? E em que momento este programa está?
A moda é a segunda indústria mais poluente do planeta. Então, como qualquer outra indústria de moda, a gente sentou e botou a bola no chão para ver qual o nosso impacto e como podemos nos responsabilizar pelo fim da cadeia.
O primeiro passo foi conversar com o usuário final para entender qual era a dor. E vimos que a dor era o descarte de Havaianas. Aí, desenhamos essa iniciativa, que é o ReCiclo. Colocamos urnas nas lojas, para onde as pessoas podem levar as Havaianas que não querem mais.
Esse produto recolhido tem dois destinos. Aquele que foi descartado mas ainda pode ser usado é higienizado e chega a pessoas que ainda vão usá-lo. Já o produto sem condição de uso é desmontado, moído e o material vira matéria-prima de produtos como piso de academia e playground
Tudo isso é feito em parceria com a Trashin, porque esse não é o nosso negócio. A gente tem fábrica para fazer produto novo, não temos linha de produto pós-uso. Então, fomos atrás de desenvolver essa cadeia.
Esse material pós-uso é vendido para as cooperativas?
Não. Mas a cadeia vai ficar saudável quando a gente puder vender. Por que somos tão bons, no planeta, em alumínio reciclável? Porque tem uma cadeia em que todo mundo ganha.
Seria viável reaproveitar esse material na linha de produção de Havaianas?
Nossa intenção é conseguir usar essa matéria-prima dentro de Havaianas. Mas temos o desafio de descontaminação, porque as Havaianas descartadas vêm com dois tipos de sujeira: aquela que a gente enxerga e a contaminação com micropartículas.
Então, na hora que você destrói e mói a sola de borracha, ela pode estar contaminada com algum metal pesado. E para usar na fabricação de um solado novo, precisamos ter certeza que não tem nada que possa contaminar a borracha virgem.
Mas e o resíduo gerado na linha de produção? Ele é reaproveitado?
Para ter mais eficiência, nós buscamos formas de incorporar cada vez mais resíduo que sobra do processo de fabricação dos nossos produtos.
Hoje, toda sola de Havaianas tem pelo menos 40% de resíduo de fabricação reincorporado na mistura. Diferente do pós-uso, esse é um resíduo sem contaminação. E o nosso time de design fica com o desafio de criar produtos que usem estes resíduos — e que sejam lindos e desejáveis
Por que isso é um desafio? Porque a cor que melhor incorpora resíduo é o preto. Quando você vai para o branco e o amarelo, por exemplo, é mais difícil, porque fica um monte de pedacinho multicolorido e aquilo “suja” a mistura [a cor não fica tão pura].
Estamos cada vez mais nos provocando a olhar para o que geramos com os nossos processos, reincorporar e transformar em novos produtos. Quanto mais formos capazes de reincorporar resíduo, mais cost effective será o nosso processo.
O mais importante, que toda empresa precisa entender, é que quanto mais sustentável ela for, mais economicamente viável ela está sendo. Porque quanto menos desperdício, mais eficiente é a operação.
É mais caro fazer um processo que usa matéria-prima reciclada?
Para mudar processos é preciso investir. E não é só dinheiro de máquina ou ingrediente novo. É [investimento em] ser humano, é o período de adaptação ao novo processo. Provavelmente alguma coisa vai dar errado — e quando dá, vira ineficiência, o que é caro. Mas, se lá na frente eu estiver mais eficiente, então não foi caro, foi um investimento que fiz no começo e vou recuperar.
Eu acho que não fica muito de pé essa história de que é caro ser sustentável. A sustentabilidade, quando é bem feita, pensada e entendida no longo prazo, buscando eficiência, é bom para o negócio.
Qual a porcentagem de resíduo que vocês utilizam? E o que acontece com aquilo que não aproveitam?
Ainda não estamos prontos para dar esse número porque estamos fazendo uma mega auditoria. Mas parte do que a gente não usa é vendido para quem faz pneus, manta para isolamento acústico, piso de academia, playground, defensa de porto.
Como é a recepção do consumidor ao produto feito com matéria-prima reciclada?
Conversando com as pessoas, a gente vê que na categoria calçado e vestuário isso ainda não é um fator de decisão. Porém, os mais jovens já são mais exigentes. Ainda não estamos lá, mas estamos quase lá. Não existe uma marca que vá sobreviver sem entender que está vindo essa demanda.
A Havaianas tem um setor de pesquisa?
Temos uma área que desenvolve materiais e outra que desenvolve a cadeia que fabrica esses materiais, até para estarmos pertos de quem faz pesquisa de tecidos, aviamentos etc. Assim, toda vez que tiver uma novidade, podemos testar e ver se funciona.
Para a percepção de conforto e o papel que o calçado tem na vida das pessoas, é preciso de features de tecido diferentes. Por exemplo: para uma alpargata ficar confortável, o tecido pode ser mais molinho, já para uma mule [calçado fechado na frente e aberto atrás], tem que ser um tecido mais firme, que abrace o peito do pé
É preciso que a indústria continue desenvolvendo para que a gente ache os materiais que atendam as propostas de valor do nosso produto.
Outro desafio importante que passa pela pesquisa é a pigmentação. Se a cor da moda é o neon, como achar uma pigmentação sustentável para colocar na camiseta que fique amarelo neon? Quanto mais distante do que se vê na natureza, mais difícil fica de achar ingredientes naturais.
O que a indústria química e de desenvolvimento de materiais vem fazendo é buscar maneiras de dar liberdade criativa e, ao mesmo tempo, entender o que acontece com aquele produto ou elemento, se é biodegradável ou não.
A verdade é que não tem standard [padrão]. O que tem é um monte de empresa bacana tomando decisões e tentando atender a demanda da população que já entendeu que, pelo menos por enquanto, só temos esta “espaçonave” [a Terra]. Todo mundo faz os seus compromissos e vai no limite do que tem de tecnologia disponível.
Quais são as metas de sustentabilidade de Havaianas?
Nós desenhamos uma agenda que vamos buscar até 2030 e apresentamos ao conselho de acionistas. Posso te dizer que estamos perseguindo melhorar a nossa pegada de carbono, nosso consumo de energia, diversidade e inclusão, tanto dentro quanto fora da empresa.
Ainda não tenho as metas quantificadas, porque estamos fazendo auditoria; como ainda não sei onde estou, não consigo dizer onde preciso chegar. Mas, do ponto de vista de governança, já temos uma Diretoria de Sustentabilidade e Reputação, instituída no ano passado.
Havaianas apoia dois projetos de conservação, um com o Instituto IPÊ e outro com a Conservação Internacional. Como se dá esse apoio?
Entrei na Alpargatas em janeiro de 2019. Descobrir o que a empresa faz com o IPÊ e Conservação Internacional foi uma das melhores surpresas que eu, pessoalmente, tive.
Todo ano, no portfólio, temos produtos IPÊ e produtos Conservation International. É como se tivéssemos uma licença deles. Aí, 7% do lucro dos produtos IPÊ vão para o Instituto e 7% dos produtos Conservação Internacional vão para a ONG.
E vocês têm ideia do impacto gerado por esse recurso?
Sim. E é bem interessante. Normalmente, essas ONGS e institutos criam projetos e vão atrás de recursos para viabilizá-los. Só que nem sempre o projeto acontece conforme foi desenhado e sobra pouco “dinheiro livre”.
Como a parceria funciona como se fosse uma licença, esse dinheiro dá a eles flexibilidade de usar conforme a necessidade. Em 16 anos com o Instituto IPÊ, Havaianas ajudou a plantar mais de 3,2 milhões de árvores na Mata Atlântica
No caso da Conservação Internacional, ajudamos a conservar 280 mil hectares de ecossistemas marinhos e costeiros em Abrolhos, que é o principal foco da grana que a gente gera para eles.
Você é otimista em relação ao futuro do planeta?
Prefiro ver o copo meio cheio. Temos que ter orgulho de algumas grandes empresas brasileiras que estão fazendo um trabalho bem legal, desde a Natura até os bancos se juntando pela Amazônia. Isso fomenta o desenvolvimento de conhecimento, o que é muito importante.
Ainda temos muito para aprender e melhorar, já tem gente pagando um preço alto pelo impacto do ser humano sobre o planeta. Mas somos uma espécie criativa, que evoluiu resolvendo problemas. E a solução não é colonizar a Lua ou Marte. A solução é consertar aqui.
O bagaço de malte e a borra do café são mais valiosos do que você imagina. A cientista de alimentos Natasha Pádua fundou com o marido a Upcycling Solutions, consultoria dedicada a descobrir como transformar resíduos em novos produtos.
O descarte incorreto de redes de pesca ameaça a vida marinha. Cofundada pela oceanógrafa Beatriz Mattiuzzo, a Marulho mobiliza redeiras e costureiras caiçaras para converter esse resíduo de nylon em sacolas, fruteiras e outros produtos.
Aos 16, Fernanda Stefani ficou impactada por uma reportagem sobre biopirataria. Hoje, ela lidera a 100% Amazonia, que transforma ativos produzidos por comunidades tradicionais em matéria-prima para as indústrias alimentícia e de cosméticos.