Na periferia de Salvador, um menino de 11 anos fez toda a família se comprometer a reciclar para que ele pudesse ganhar um curso de informática (e ganhou). Uma senhora do Capão Redondo, em São Paulo, levava seus recicláveis toda semana para acumular pontos e trocá-los por farinha e óleo; com os ingredientes, fazia os pães que vendia na porta de casa.
Publicitária e cientista social com pós em marketing, Claudia Pires, 46, carrega histórias como essas desde que fundou, em 2015, o programa de vantagens So+ma, unindo dois objetivos: incentivar a adoção do hábito de reciclar e gerar novas oportunidades para moradores de comunidades de baixa renda.
“Somos uma fintech em que a atitude é o meio de pagamento e dá acesso às pessoas a produtos, serviços e experiências”
O programa mantém cinco unidades de coleta, ou Casas So+ma: duas em São Paulo, duas em Salvador e uma em Curitiba. Ao entregar resíduos recicláveis, os participantes acumulam pontos que podem ser trocados por benefícios — desde itens de alimentação básica e descontos em serviços até cursos profissionalizantes gratuitos.
O MOMENTO DE EMPREENDER CHEGOU APÓS 20 ANOS DE CARREIRA
Em 2013, aos 40, Claudia deixou para trás uma carreira de duas décadas no mundo corporativo. “Se hoje consigo empreender, foi porque tive grandes escolas que me colocaram em contato com referências e aprendizados.”
Na Pepsico, última empresa em que atuou, ela foi gestora de marcas (Toddy, Toddynho, Gatorade e Lipton Ice Tea) e esteve à frente da estruturação da área de sustentabilidade no Brasil. Nesse período, viu crescer sua motivação de contribuir para que mais pessoas tivessem acesso a oportunidades:
“Nasci em uma família migrante portuguesa, de classe média baixa, mas tive condições de estudar em alguns dos melhores colégios e faculdades. Fiz pós em Berkeley, trabalhei em multinacionais… Sei que o simples fato de estar nesses ambientes me expôs a muito mais escolhas”
Antes de empreender, Claudia desenvolveu e atuou como consultora num projeto que envolvia reciclagem em comunidades de baixa renda. “Vi que consultoria era um formato interessante — mas não para mim. Gosto de planejar, mas também de colocar a mão na massa, tomar a iniciativa.”
A FASE DE TESTES NO CAPÃO REDONDO LEVOU CERCA DE DOIS ANOS
A So+ma contabiliza hoje 4 000 famílias atendidas, 116 mil reais economizados por elas ao utilizarem os benefícios e quase 300 toneladas de resíduos (como plástico, metal, vidro, alumínio e embalagens cartonadas) convertidos em pontos e encaminhados à reciclagem.
Uma fase de prototipagem de cerca de dois anos, no Capão Redondo, entre 2015 e 2016, foi essencial para aprender e ajustar o que era necessário:
“Antes de ir para o mercado, queria estar segura de que tínhamos um modelo escalável, correto e que entregava valor para todas as partes”
Se na primeira sede foram necessários quase dois anos para cadastrar 200 famílias, em Salvador, aonde chegou em 2019, a So+ma já tinha 700 famílias registradas em cinco meses.
A estratégia foi não ter medo de mudar. “Desde o início, já alteramos localização, benefícios, como a gente comunicava o valor do impacto, recompensas. A única coisa que não muda é o nosso objetivo de gerar oportunidades por meio do impacto socioambiental.”
A IMPORTÂNCIA DE RESSIGNIFICAR A RELAÇÃO COM OS RESÍDUOS
Os participantes do programa acompanham sua pontuação, as recompensas e o impacto ambiental de suas ações por meio de uma plataforma online. Claudia diz que essa divulgação é fundamental para que as pessoas enxerguem o valor de suas ações.
“Chega um momento em que os próprios participantes comentam como a rua está mais limpa, que o bueiro não entope como antes ou que eles não têm mais medo de deixar a criança brincar e [correr o risco de] encontrar caco de vidro no chão”
No começo, porém, a empreendedora diz que a adesão das famílias não crescia no ritmo esperado. E um desafio foi entender o porquê.
A resposta veio da observação das dinâmicas, emoções e vergonhas que, para Claudia, até hoje afastam a maioria das pessoas do hábito de reciclar.
“No imaginário social, o resíduo carrega significados negativos: lixo, sujeira, algo sem valor…”, diz a empreendedora. “A forma como falamos sobre o assunto tem sido fundamental para ressignificar essa relação e ajudá-las a superar esses bloqueios.”
“QUANTOS QUILOS DE ARROZ VALE UM CURSO DE IDIOMAS?”
Os alimentos permanecem como a principal recompensa buscada pelos participantes. A So+ma, porém, tenta reforçar o incentivo à troca dos pontos por cursos oferecidos por parceiros. É possível, por exemplo, trocar pontos por aulas de informática na Microlins, em Salvador, ou estudar inglês na 4you2, escola de idiomas presente na periferia de São Paulo.
Uma das soluções para incentivar o autoaperfeiçoamento dos participantes, diz Claudia, foi estabelecer que os pontos valem mais quando trocados por cursos em comparação com outros benefícios.
“Nosso olhar está voltado para quantos quilos de arroz ela poderia comprar depois de escolher uma formação. A decisão continua sendo dela, mas usamos esses pequenos ‘empurrões’ para torná-la mais fácil”
Segundo a empreendedora, histórias de transformação podem estimular a troca dos pontos por educação (em vez de comida). “A pessoa fica sabendo que um vizinho fez um curso, conseguiu melhorar algo em sua vida — e passa a querer isso também”.
O POTENCIAL TRANSFORMADOR DE SOMAR ESFORÇOS, PESSOAS E IDEIAS
Cooperativas de catadores parceiras, capacitadas pela So+ma, fazem a gestão dos locais de recebimento de resíduos e o atendimento aos participantes (e, em contrapartida, ficam com o material recolhido).
“Minha frase sempre foi ‘1+1 são 3’. Acredito que quando a minha ideia se soma com a sua, ela se torna algo infinitamente melhor. Tudo na So+ma é feito por meio da articulação de parceiros que, de fato, se somam”
Outras parcerias ajudam na oferta de recompensas. A Cruz Vermelha, por exemplo, oferece vagas nos cursos de cuidador de idosos e de babá, conectando a necessidade de formar profissionais nessas áreas à busca por esse tipo de profissionalização nas comunidades.
Após participar de uma aceleração da Brasil Lab, em 2016, a So+ma passou a incluir nessa equação o poder público. As prefeituras têm contribuído disponibilizando espaços para as Casas So+ma:
“Isso foi muito importante, porque precisamos estar em locais democráticos. Parcerias com o setor público são mais burocráticas, levam tempo, mas entendemos que nos permitem gerar um impacto muito maior.”
O APOIO DAS MARCAS É HOJE A ÚNICA FORMA DE RENTABILIZAÇÃO
No momento, as marcas são a única fonte de rentabilização. Basicamente, as empresas adquirem um projeto socioambiental, pagam por sua manutenção e recebem os dados para comprovar seu impacto.
Hoje há três clientes. A Heineken apoia duas Casas So+ma em Salvador e mais uma em São Paulo, a Cargill está associada à outra unidade paulistana, no bairro da Grajaú, e a SIG Combibloc responde pela Casa So+ma de Curitiba.
A empreendedora se esquiva de revelar números absolutos, mas diz que, em agosto de 2019, o faturamento já era o equivalente ao resultado do ano inteiro de 2018.
Nesse modelo, a capacidade de reter clientes, mostrando resultados e agregando valor, é fundamental. Claudia comemora que, até hoje, todas as marcas sempre optaram por renovar seus contratos com a So+ma.
“Isso é reflexo de uma compreensão cada vez maior das empresas sobre como, ao promover impacto social e gerar oportunidades, estão contribuindo para a economia da localidade e para a geração de novos consumidores, mais conscientes”
As marcas recebem um relatório mensal com informações como o número de famílias participantes, a economia gerada e o volume de resíduo coletado. “Mandamos também [no relatório] algumas dessas histórias simples e incríveis de transformação. É mais uma forma de materializar o que o programa faz.”
A SO+MA CHEGOU ÀS ESCOLAS DE SÃO PAULO E ÀS PRAIAS DO RIO
A So+ma tem dois pilotos em andamento. Um deles é destinado a escolas municipais de São Paulo — no momento, são dois colégios impactados, mas o objetivo é alcançar 50 escolas em 2020.
Professores ganharão pontos ao trabalhar, em sala, temas ligados à reciclagem e aos Objetivos do Milênio da ONU; estão sendo planejadas recompensas como distribuição de livros e transporte grátis para atividades externas (como visitas a museus).
A ideia ganhou impulso ao vencer o Acumen-Unilever Social Innovation Challenge on Plastics, que premiou soluções inovadoras envolvendo descarte de plástico e impacto social. A vitória valeu 25 mil dólares à iniciativa, além da mentoria de especialistas da Unilever.
“Trabalharemos atitudes cidadãs com foco no resíduo plástico, que ainda é muito pouco reciclado no país: apenas 3%”
Lançado em outubro, outro piloto visa reduzir o lixo na praia de Ipanema, no Rio; a So+ma já cadastrou 35 barraqueiros entre o posto 9 e o 10. “Queremos contribuir para retirar o plástico da areia e proporcionar melhores serviços e condições de trabalho para esses comerciantes.”
Desconstruir mitos e fórmulas prontas, falando a língua de quem vive na periferia: a Escola de desNegócio aposta nessa pegada para alavancar pequenos empreendedores de São Miguel Paulista, na zona leste de São Paulo.
Contra o negacionismo climático, é preciso ensinar as crianças desde cedo. Em um dos municípios menos populosos do Rio de Janeiro, a Recickla vem transformando hábitos (e trazendo dinheiro aos cofres públicos) por meio da educação ambiental.
O chef Edson Leite e a educadora Adélia Rodrigues tocam o Da Quebrada, um restaurante-escola na Vila Madalena que serve receitas veganas com orgânicos de pequenos produtores e capacita mulheres da periferia para trabalhar na gastronomia.