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Quando a paixão vira negócio: como duas irmãs transformaram o talento e o amor pelo crochê em uma empresa com várias frentes

Karina Sérgio Gomes - 30 out 2023
Ana (de branco) e Anne Galante, fundadoras da Señorita Galante.
Karina Sérgio Gomes - 30 out 2023
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Durante seis meses, a estudante de moda Anne Galante, hoje com 38 anos, empenhou-se na produção do trabalho de conclusão de curso no Senac. Baseada na simbologia dos orixás, ela criou uma coleção com crochê e couro de tambaqui. 

“Meu orientador dizia que eu estava indo bem, e eu acreditava nas peças que produzi…”, diz. No dia da banca, porém, o avaliador convidado era o estilista Alexandre Herchcovitch, que criticou o projeto: “Não gostei. Essa história dos orixás, achei nada a ver”. Anne foi reprovada com a nota 4,5. 

Mesmo chateadíssima com a avaliação, ela não tinha outra opção senão fazer um novo projeto para conseguir o diploma e repetir todas as disciplinas do último ano. Dessa vez, mirando Herchcovitch na banca, desenvolveu uma linha que misturava fetiche e luxo com a arte manual do crochê — técnica que aprendeu aos 12 anos. 

Assim nasceu a marca Señorita Galante. “Usei a grafia de señorita em espanhol para trazer algo mais latino e caliente”, contou a estilista e empreendedora ao Draft. Durante a entrevista, aliás, Anne crochetava uma blusa: 

“O exercício de fazer crochê ou tricô é uma meditação ativa. Brinco que se me mandarem para uma ilha deserta, eu preciso só do meu estojo de agulhas”

Aprovada no segundo TCC, Anne levou ao mercado suas peças artesanais. Em 2023, a Señorita Galante completa 15 anos, atuando em diversas frentes: uma linha de fios para crochê; produção de artigos de decoração; cursos de crochê e tricô à distância; e o projeto social Laços Unidos Contra o Frio

Para tocar tudo isso, Anne tem a ajuda da irmã, Ana, diretora executiva da marca. “A gente é yin e yang. A Ana nasceu para ser chefe: ela me mantém com os pés no chão, desenvolvendo os processos de produção dos projetos e das peças, o que me dá tempo e liberdade para cuidar da parte criativa do negócio.”

NA ÉPOCA DA ESCOLA, PARA MULTIPLICAR O DINHEIRO DA MESADA, AS IRMÃS VENDIAM BIJUTERIAS AOS COLEGAS

O lado empreendedor das irmãs começou a ser desenvolvido na infância. “Nossa mesada não era nem metade do que nossas amigas de colégio recebiam”, diz Anne. 

Para multiplicar o dinheiro, as irmãs investiam parte da mesada em miçangas e bijuterias que compravam na Rua Vinte e Cinco de Março, famoso endereço de comércio popular em São Paulo. Em casa, confeccionavam suas peças e vendiam para colegas da escola.

“Meus pais sempre mostraram para a gente que não conseguiríamos nada de mão beijada. Se quiséssemos algo, teríamos que querer de verdade. Ah, você quer passar a tarde na piscina? Então, lava a louça”

Nos anos 1990, a família enfrentou uma crise financeira. As irmãs tiveram de trocar a escola particular pela pública e perderam uma série de regalias. “Eu virei uma patricinha revoltadinha”, diz Ana Galante, hoje com 39 anos.

Aos 14, a então adolescente foi trabalhar como vendedora de loja no Mercado Mundo Mix, evento que reúne stands de diversas marcas. Ana também trabalhou como modelo e na produção de eventos. Ela conta:

“Eu não queria continuar nessa vida. Então, resolvi que ia fazer um ano de cursinho para entrar em uma universidade pública, porque não havia dinheiro para pagar uma particular”

Após um ano de preparação, Ana passou no vestibular da primeira turma de graduação de Têxtil e Moda da USP-Leste. 

ANTES MESMO DE DESPONTAR COMO OPORTUNIDADE DE NEGÓCIO, O CROCHÊ AJUDAVA ANNE A MANTER O FOCO NAS AULAS

Anne, 15 meses mais velha do que a irmã, já estava fazendo faculdade de moda no Senac, cujas mensalidades eram pagas pela mãe de uma de suas melhores amigas. 

“Eu não tinha dinheiro para pagar”, diz. “Mas a tia Leda me ofereceu essa ajuda e eu a agarrei.”

Enquanto fazia faculdade, Anne trabalhava como vendedora em lojas e também como promoter de raves. 

“Era um estilo de música e público que combinavam comigo. E aproveitava para vender as peças que produzia de crochê”

Durante as aulas, Anne sempre estava tricotando ou crochetando. De personalidade mais dispersa, ela diz que as agulhas ajudam a reforçar sua concentração. Os próprios professores sentiam essa diferença e aconselhavam em aula: “Anne, cadê seu crochê? Pega ele porque você já está desviando a atenção…”.

Desde a adolescência, fosse no clube, na praia ou no ônibus, lá estava Anne com suas linhas e agulhas. Mas foi só na faculdade, quando aprendeu a modelar, que ela entendeu que o crochê poderia ser seu empreendimento no mundo da moda. 

“ALÔ, AQUI É A ‘ANDREIA’, GOSTARIA DE MARCAR UM HORÁRIO PARA MOSTRAR UMA COLEÇÃO”

Mesmo reprovada por Herchcovitch em seu primeiro TCC, Anne não desistiu de trabalhar com o estilista.

Para entrar no mundo da moda com sua confecção de crochê, Anne vendia suas peças como private label, ou seja, na forma de coleções exclusivas para estilistas colocarem suas marcas. 

Mas, para ser recebida pelos grandes nomes das marcas, ela precisava também parecer alguém “grande”. Assim, Anne lembra que chegava a fingir que era a sua própria secretária:

“Ligava para os escritórios se apresentando como ‘Andréia’, secretária de Anne Galante, da Señorita Galante”

Depois de muitas ligações e insistência, ela conseguia marcar os encontros. Anne produziu peças para marcas como Animale, NK Store e, claro, para Alexandre Herchcovitch.

Puff lounge otdoor.

Para dar conta da produção para as marcas, Anne comandava 150 crocheteiras espalhadas pela cidade de São Paulo. E quando uma das peças não era aprovada por uma das marcas que atendia, ela trazia a peça para a Señorita Galante. 

Nessas horas, contava com a ajuda da irmã, que estava trabalhando com produção executiva de diversas marcas no mercado de publicidade. Ana afirma:

“Eu conhecia as modelos, os fotógrafos, então tentava organizar um horário para fazer as fotos das peças da Señorita Galante para a Anne vender…”

EM BUSCA DE PROPÓSITO, ANA DECIDIU TRABALHAR COM A IRMÃ, MAS A MARCA ATRAVESSAVA UM MOMENTO FINANCEIRO COMPLICADO

Até então, as irmãs trabalhavam juntas apenas de forma esporádica. Em 2015, porém, a mais nova estava cansada do mercado publicitário. 

“Eu queria trabalhar para uma marca que tivesse um propósito que não fosse apenas vender produtos”, diz Ana. 

A solução estava dentro de casa. 

“A Señorita Galante trazia isso: consumo consciente, a valorização do fazer manual, a capacitação de artesãos… Por isso, decidi que queria trabalhar com a Anne”

Entretanto, ao conversar com a irmã sobre o caminho que a empresa estava seguindo, Ana percebeu que seria difícil largar de vez a produção executiva. 

Anne tinha uma dívida de 150 mil reais de um empréstimo no banco; e os clientes para quem havia vendido a coleção só pagavam pelo produto cerca de 90 dias depois da entrega.

A crocheteira, por sua vez, estava cansada de criar uma coleção diferente para as marcas a cada seis meses…. 

Juntas, somando os ganhos de seus rendimentos, Ana seguiu trabalhando com publicidade para ajudar a estruturar financeiramente a marca Señorita Galante. 

Em paralelo, elas começaram a desenhar um caminho para deixar aos poucos o private label – e investir na confecção própria.

COMO ANNE E ANA CONSEGUIRAM SUPERAR OS DESAFIOS DA INDÚSTRIA TÊXTIL E REPOSICIONAR O CROCHÊ NO MERCADO

A primeira mudança no modelo de negócio foi criar produtos atemporais para confeccionar as peças no tempo que consideravam ideal, sem a pressão de produzir duas coleções ao ano. 

A segunda ação foi trabalhar o conceito do “fazer manual” como um valor da marca e conscientizar os clientes. 

“Eu vivia ouvindo das marcas que deveríamos colocar uma máquina para confeccionar as peças”, diz Anne. “Mas este não era o propósito da Señorita Galante.”

A empreendedora lembra que tiveram de reposicionar o crochê no mercado:

“Quando falávamos que produzíamos peças em crochê, as pessoas torciam o nariz. Mas bastava eu dizer que produzia para Alexandre Herchcovitch e Fernanda Yamamoto, para ficarem interessadas”

No desenvolvimento de suas peças, as empreendedoras encontraram mais um desafio na indústria têxtil: produzir linhas ideais para suas peças. 

“Não dá para produzir biquínis com fio de algodão. A peça fica dura e começa a pesar”, diz Anne. “Eu precisava de um fio feito com o mesmo material de um fio de roupa de banho, que fosse leve, secasse rápido e tivesse um caimento perfeito como o de biquíni.”

A crocheteira bateu na porta de muitas confecções de fios até encontrar uma parceira disposta a produzir uma quantidade menor do que para a grande vendedora de fios. 

“É difícil para a indústria entender o ritmo e o consumo de um criador; mas conseguimos um parceiro no interior de São Paulo”, diz Anne. “Com nossos fios exclusivos, agregamos valor para a nossa confecção e passamos a ter um melhor controle de toda a nossa produção, porque produzimos a nossa matéria-prima.”

ELAS CRIARAM UMA ESCOLA ONLINE QUE JÁ ENSINOU 10 MIL PESSOAS E QUALIFICA AS ARTESÃS QUE TRABALHAM PARA A MARCA

Em 2018, as irmãs lançaram um novo braço de atuação, a Escola de Artes Manuais, uma plataforma de vídeos e cursos online para quem quer aprender a fazer crochê e também comercializá-lo. 

“Quando eu era adolescente e ia aos armarinhos aprender a fazer o que tinha em mente, eu sempre ouvia: ‘Isso não dá para fazer porque não tem receita’. Mas quem faz a receita? Como faço a receita?”, diz Anne.

Entre erros e acertos, Anne desenvolveu sua “receita”, uma técnica própria de crochê que, segundo ela, auxilia as pessoas a criarem e desenvolverem suas peças de forma mais rápida. 

“É como tocar um instrumento: com sete notas, você pode compor qualquer canção. No crochê, é a mesma coisa. Depois que você aprende os cinco pontos, você pode criar suas peças”

Ana, a irmã que mal sabia trabalhar com a agulha e a linha, depois de assistir a todos os vídeos (no trabalho de enviar ajustes para edição), se tornou na prática a primeira aluna da Escola de Artes Manuais – e já criou até uma bolsa de crochê. 

Cesta em crochê artesanal da marca.

“Só fui perceber que a Anne tinha uma técnica própria ao assistir às aulas. O crochê tem uma lógica; depois que se entende essa lógica, tudo fica mais fácil.”

Em cinco anos, a Escola, segundo as irmãs, já formou mais de 10 mil alunos. O curso online também ajudou as sócias a qualificar e padronizar o trabalho das artesãs que produzem peças para a marca. 

A PANDEMIA ACELEROU UMA MUDANÇA DE ESTRATÉGIA E A ADOÇÃO DE UM SISTEMA DE GESTÃO DE ESTOQUE À DISTÂNCIA

No curso online, Anne ensina a produzir peças de roupa. Mas as sócias perceberam que precisavam concentrar sua atividade em outro setor.

A pandemia de Covid-19, a partir de 2020, acabou impulsionando essa mudança de estratégia da Señorita Galante. Segundo Ana:

“Estávamos focando nossa produção cada vez mais em objetos de decoração. Fizemos uma parceria com a marca de móveis Prototype para confeccionar almofadas de sofá para eles. Mas o lockdown acelerou esse processo”

As sócias explicam que é mais fácil ter o controle na produção de uma almofada do que de um vestido em uma variedade de tamanhos, P, M e G. 

No momento em que toda a produção começou a ser feita à distância, trabalhar com itens mais fáceis de serem controlados facilitou a padronização dos processos. Ana afirma:

“Durante a pandemia, criamos um sistema de gestão de controle no qual consigo saber como está o nosso estoque de fios e qual artesão está precisando de mais fio”

A Señorita Galante segue usando esse sistema, mesmo com o fim da pandemia e do distanciamento social:

“Hoje, posso gerir tudo à distância, ganhando maior flexibilidade sem precisar estar 100% do tempo no ateliê conferindo se é necessário comprar mais matéria-prima.”

A SEÑORITA GALANTE MANTÉM UM PROJETO SOCIAL E AGORA MIRA INSERIR SUAS PEÇAS DE CROCHÊ EM MUSEUS E GALERIAS DE ARTE

Dez anos atrás, em 2013, ao ver uma notícia de pessoas em situação de vulnerabilidade social passando frio, Anne teve a ideia de lançar a campanha Laços Unidos Contra o Frio. 

Ela incentivou pessoas que soubessem fazer crochê a pegarem com ela linhas e fazerem pelo menos um quadradinho para juntarem com quadradinhos feitos por outras pessoas para confeccionar mantas para doação. 

Anne lembra o que passou por sua cabeça ao lançar a campanha: 

“Eu tenho uma confecção de peças de lã, não posso ver pessoas passando frio na rua sem fazer nada” 

Em uma década, já foram doadas mais de 6 mil mantas feitas à mão por voluntárias espalhadas pelo Brasil. Quem quiser colaborar pode entrar em contato com as sócias pelo site do projeto, pelo qual os interessados também aprendem a fazer um quadradinho de crochê.

Com a Senhorita Galante mais estruturada, Anne agora planeja elevar o crochê ao status de obra de arte. 

A estilista já realizou instalações para Microsoft e NuBank, confeccionando crochês em escalas gigantes. Ela diz que chegou a hora de dar o próximo passo. 

“Quero participar de residências artísticas e entrar com o meu trabalho em galerias e museus.”

DRAFT CARD

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  • Projeto: Señorita Galante
  • O que faz: Objetos de decoração, curso online de crochê e tricô, linha de fios para crochê e tricô, projeto social
  • Sócio(s): Anne e Ana Galante
  • Funcionários: 15
  • Sede: São Paulo
  • Início das atividades: 2008
  • Contato: [email protected]
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