“Quando apertei o botão do térreo para ir embora, era como se apertasse o foda-se”

Lusa Silvestre - 23 mar 2018Lusa Silvestre levou a carreira de publicitário junto à de roteirista... Até que foi demitido e o plano B virou plano A.
Lusa Silvestre tocava a carreira de roteirista em paralelo à publicidade - até abraçar de verdade o trabalho com cinema
Lusa Silvestre - 23 mar 2018
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por Lusa Silvestre

Sempre gostei de escrever. Desde moleque. Acabei escolhendo a publicidade para isso, para escrever anúncios brilhantes e filmes inesquecíveis. E durante muito tempo deu certo. Mas, como eu sou bom de xaveco, logo me tornei um executivo de criação — mais do que redator. Passei a viajar bastante, participando de workshops, toureando cliente gringo, mandando email em inglês. Pagava as contas, mas não era o que eu queria quando entrei na faculdade de propaganda da USP, com pantufas de cânhamo nos pés.

Eu queria escrever, não viajar de executiva (embora fosse gostoso).

Para saciar meu espírito literato enrustido, fui escrever em revista. VIP, Playboy, Marie Claire e quetais. Era delicioso e eu não precisava abdicar da propaganda. Só que, depois de um tempo convivendo com jornalista, comecei a perceber que precisava de outra referência. Eu não queria ser o “publicitário que até escrevia bem”. Achava esse rótulo insuficiente. Sou metido desde pequeno; é uma das minhas maiores qualidades. Escrevi, então, um livro de contos gastronômicos. Mandei um dos contos para o Marcos Jorge, na época diretor de cinema publicitário. Esse conto virou o longa Estômago.

E o Estômago mudou minha vida.

Para começar, a gente enfileirou prêmios e prêmios em festivais, antes mesmo da estreia. Berlinale, Rotterdam, Londres, Mondevidéu, Biarritz, Valladolid, Rio — foram 52 prêmios. De repente, o que era um mero diletantismo ficou importante. Eu só queria um pôster na parede para mostrar para os meus filhos. Acabei tendo uma estante cheia de troféus.

Ficou evidente que eu teria que investir tempo nisso; eu tinha começado bem demais pra desencanar do cinema. Acontece que eu ainda trabalhava na propaganda. Todo dia, dez da manhã (às vezes depois, confesso), eu estava na agência, perfumado e com a careca lustrada. Recebendo briefing. Pressionado para criar coisas originais, no prazo. Vinham convites para escrever cinema que eu não podia aceitar, porque não havia tempo. Eu também queria estudar técnica de roteiro. Tinha escrito Estômago na raça; agora queria colocar teoria nesse caldo intuitivo.

E agora, São Kubrick? Como conciliar a propaganda com o cinema, duas atividades por si só exaustivas?

Mudei minha rotina. Ficava até meio dia fazendo reclame, descia pra almoçar na cafeteria da agência, e voltava correndo para a minha mesa. Escrevia para o cinema até as 14:30, todo dia. Enquanto o resto da criação ia trabalhar o bíceps na academia, eu ia trabalhar os meus filmes. Voava ao Rio para leituras dramáticas noturnas e voltava antes dos outros chegarem na agência, na manhã seguinte. Descobri que dava pra aguentar o tranco, desde que eu não bebesse nessa única noite carioca (foram noites difíceis). O viaduto que me levava ao aeroporto de Congonhas chamava Paulo Autran (ainda chama). Eu encarava como um portal: passava por ele e zuuum: saía da dimensão publicitária para entrar na cinematográfica. Era um biatlon que dava certo porque eu tinha o apoio do chefe e do dono da agência, o Washington Olivetto. Ele sempre gostou de ter roteiristas, pintores, músicos, trapezistas, atores — gente torta em geral — criando para ele. O W não é um mito à toa.

Eu me esfolava — mas estava fazendo coisas importantes. Aliás, ajudava muito ter esse norte na cabeça: quando você está indo para uma reunião noturna no Rio — e não para casa tomar vinho na banheira — é bom lembrar o motivo de tanto sacrifício.

No turno dobrado, fiz mais outro filme: E Aí, Comeu? Um longa que, hoje, seria apedrejado em praça pública, mas que em 2012 levou três milhões de pessoas ao cinema. Meu terceiro filme, uma franquia (Muita Calma Nessa Hora 2), vendeu quase dois milhões de ingressos. Eu estava bombando.

Aí, ganhar bem na publicidade passou a ser problema.

Largar tudo pelo cinema era impensável. Tenho filhos e cachorros. Dois de cada. Não dá para pagar as prestações do Vectra conversível com meu Kikito.

Fui empurrando essa rotina com a barriga, até algo acontecer.

E aconteceu: o mundo mudou.

Veio o Facebook, o Insta, o Netflix. Sumiram as revistas e a audiência das novelas despencou. O meu trabalho de redator publicitário passou a ser, basicamente, escrever posts. Não iam me pagar uma grana para eu ficar criando nessa nova economia. Quando veio uma campanha de Natal (notem bem: Natal!), e eu e meu dupla resolvemos a parada em um dia (um dia!), vi que a batata da propaganda estava assando. Pelo menos pra mim.

Enquanto um lado assava, o outro estava fervendo. Não faltavam incentivos e chances pra continuar fazendo mais longas. Comecei a aceitar os convites que antes recusava, mesmo ainda quebrando pedra na propaganda.

Cheguei a um ponto que, se não fosse mandando embora da agência, estava lascado

A agência perdeu uma conta. As nuvens pretejaram no horizonte. Chovia enxofre e zumbis pelancudos perambulavam pelo saguão. Na hora que me chamaram na sala de reunião no andar de cima, eu sabia o que ia acontecer.

Quando apertei o botão do térreo para ir embora, em seguida à demissão, era como se eu apertasse o foda-se.

Meu plano B virou plano A. Na mesma hora.

Hoje, trabalho só com cinema. Tenho bastante filme para escrever, passo o dia de bermuda (não lembro de ter usado calça comprida em 2018), já são dez longas nas costas — mas dependo de órgãos reguladores e alíneas nos contratos para viver. Não é uma maravilha, aviso aos interessados. Quase sempre atrasa o dimdim, então estou sendo obrigado a aprender finanças, a me organizar. É algo dificílimo para quem nasceu para as letras e não para cálculo de juros composto.

Continuo sendo publicitário. Nunca vou deixar de ser. Se precisar voltar para agência, volto pimpão. Publicitário fala mal da própria profissão o tempo todo, mas eu sou muito grato ao meu ofício. Ser redator de agência me fez um roteirista de cinema melhor. Não dou piti, sei lidar com prazo e, principalmente, tenho essa energia inesgotável para trabalhar feito um filho da puta. Tomara que continue dando certo.

 

 

Lusa Silvestre, 48, é formado em publicidade e atua como roteirista de cinema. Fez os filmes Estômago, E Aí, Comeu?, Muita Calma Nessa Hora 2Depois de Tudo, Mundo Cão, Um Namorado Para Minha Mulher, O Roubo da Taça, A Glória e a Graça, Amigas de Sorte e Pulo do Gato (estes dois últimos em pós produção).

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