“Eu não vivo do projeto, eu vivo para o projeto.” É assim que a fisioterapeuta Maria de las Gracias Franceschini, 55, descreve a sua ligação com o Fisioterapia Itinerante. O negócio consiste em um ônibus transformado em clínica de fisioterapia móvel, que há mais de oito anos percorre bairros da periferia de São Paulo atendendo pacientes de baixa renda. Cada sessão custa 18 reais, mas quem não pode pagar é atendido de graça.
Sem patrocínios ou ajuda governamental, Maria trabalha mais de doze horas por dia, atendendo no ônibus e nas casas daqueles que não podem se mover – a consulta em domicílio sai por 40 reais. Como o dinheiro desses atendimentos nem sempre é suficiente para cobrir os custos do projeto, Maria atende também em sua própria casa.
Já para bancar sua a vida pessoal, a fisioterapeuta conta com o apoio do marido, advogado, que também a ajudou com a parte legal do projeto. Assim, Maria pode se dar ao “luxo” de gastar todo o seu salário em equipamentos novos, manutenção do ônibus e cursos de especialização – sem repassar esses custos aos pacientes. “O ônibus não fica devendo nada para uma clínica convencional. Tem equipamento lá que muita clínica não tem”, conta, com orgulho. “Acabei de me endividar toda para comprar um aparelho novo, nem sei como vou fazer para pagá-lo.”
Maria não se cansa de tanta labuta. Ao contrário: diz que quanto mais trabalha, mais energia tem:
“O projeto é minha fonte de conhecimento, de riqueza. Aprendo todo dia. Há um desafio que me faz correr para os livros. Sem contar o que aprendo com o exemplo de vida dessas pessoas. É tanta riqueza de histórias. Uma fonte de energia sem fim”
Para serem atendidos, os pacientes precisam de um diagnóstico – que nem sempre bate com o que Maria observa pessoalmente – e um pedido médico. A fisioterapeuta relembra o caso de uma mulher que sentia muita dor e não melhorava, apesar das várias sessões de fisioterapia. Intrigada, Maria fez diversas pesquisas e percebeu que o caso era mais sério. Recomendou, então, que a paciente procurasse um médico particular para uma investigação mais aprofundada. Após uma consulta de 300 reais e diversos exames, constatou-se um câncer de bexiga.
TAPANDO OS BURACOS DA SAÚDE PÚBLICA
Em outra situação, Maria ajudou a identificar um mioma em uma paciente de 55 anos, que sentia muita dor nas costas e estava com a barriga inchada. Quando extraído em uma cirurgia agendada para só dali um ano e meio, o mioma pesava um quilo. “A gente vê cada absurdo, nossa saúde está muito defasada. Estamos nas mãos de ninguém. Tem médico no SUS (Sistema Único de Saúde) que nem te olha, só receita paracetamol (analgésico e antitérmico usado para tratar resfriados) independentemente do problema. É muito triste”, afirma.
Foram justamente as deficiências do sistema público de saúde que a motivaram a montar uma clínica voltada à população de baixa renda. Segundo ela, quase não há sessões de fisioterapia para quem depende do SUS. E, quando há, para ser atendido o paciente tem de esperar seis meses ou atravessar toda a cidade, o que acaba sendo custoso e cansativo, principalmente para quem já está com dores, dificuldade para se locomover e sem dinheiro. “No final, o paciente volta para casa ainda mais dolorido.”
Mais do que prestar um serviço de qualidade, a fisioterapeuta queria facilitar a vida dos pacientes indo até eles – por isso a clínica-ônibus é uma ideia que se encaixa tão bem. “Uma pessoa que teve um AVC ou um trauma não pode esperar, precisa de atendimento imediato para se reabilitar. Muitas vezes são pais e mães de família que precisam trabalhar, mas se encontram paralisados”, diz.
A criadora do Fisioterapia Itinerante relata que alguns de seus pacientes, no início do tratamento, não conseguiam andar ou até mesmo se mexer e, com a fisioterapia, voltaram a ter uma vida normal. “Uma pessoa com dor crônica vai se fechando, deixando de ter vida social e, com isso, cai em depressão. É um ciclo vicioso, que acaba desestruturando uma família inteira, sendo que muitas vezes seria muito fácil resolver o problema”, conta. Melhorar a qualidade de vida de quem está sofrendo é a maior fonte de satisfação de Maria.
UMA VOCAÇÃO QUE SE IMPÔS NATURALMENTE
Ajudar quem precisa é algo que Maria se lembra fazendo desde sempre. Nascida em Salvador, ela cresceu em contato com pessoas carentes e fazendo trabalho voluntário. Foi estudar serviço social, mas teve que parar a faculdade, pois não conseguia conciliar os estudos com o casamento e a criação dos filhos.
Mesmo nas viagens ao exterior, era aos mais pobres que Maria voltava seu olhar. Ela foi para países como Butão, Índia, China, Nepal e Tibete, onde a miséria está muito presente. “Sempre buscava entender como era o serviço de saúde para as populações pobres e como essas pessoas lidavam com as doenças”, conta. Durante as viagens, Maria aprendeu terapias manuais voltadas à saúde do corpo, como massagem ayurvédica e acupuntura. “Viajando por esses países, me tornei uma terapeuta holística”. No currículo, a fisioterapeuta ainda tem formação em RPG (Reeducação Postural Global), microfisioterapia e agora ela se prepara para iniciar uma especialização em osteopatia.
A ideia de criar o projeto Fisioterapia Itinerante surgiu antes mesmo de Maria iniciar os estudos de fisioterapia – o que só aconteceu depois que os filhos cresceram. “Fui para a faculdade apenas para buscar o conhecimento teórico e as bases para criar meu ônibus”, afirma a terapeuta. Com os filhos já adultos, adotou uma menina, Vitória, hoje com dez anos.
Durante a graduação, ela já tinha traçado todo o sonho do Fisioterapia Itinerante, mas falava pouco do projeto com os colegas e professores pois, como ela própria relembra:
“Ninguém acreditava em mim. Parei de falar do ônibus porque não queria mais ser alvo de chacota”
Para tornar seu projeto realidade, ela vendeu um carro e um terreno. Com o dinheiro – 150 mil reais – comprou e adaptou um ônibus e regularizou sua clínica móvel. Mal acabou a faculdade, o projeto Fisioterapia Itinerante já estava em movimento. “Quando fui para a rua, fui sozinha. Não tinha patrocínio e não queria apoio de político”, diz. A ideia inicial era prestar um serviço gratuito, com ajuda do governo municipal. “Procurei a prefeitura, a Secretaria de Saúde, mas ouvi que não havia verbas. Assim, os pacientes que pagam pelo projeto, mas eles pagam felizes.”
Com mais cinco fisioterapeutas, que trabalham de forma autônoma, o projeto já ultrapassou os 60 mil atendimentos. As profissionais estudaram com Maria, e ela os escolheu a dedo. “Durante a faculdade, eu ficava avaliando quem eu levaria para o projeto. Meu critério não foi nota, pois para um trabalho desses, um currículo não é tudo. É preciso vocação”, afirma. Diferentemente de Maria, suas colegas dependem da fisioterapia para viver e trabalham só no ônibus. “Elas colaboram com o diesel no final do mês”, conta, sobre a divisão das despesas da clínica móvel.
Atualmente, o projeto Fisioterapia Itinerante atende apenas na zona Sul da capital paulista. Dois dias por semana, o ônibus estaciona na porta de uma igreja no Grajaú, dois dias no Jardim Miriam, também na frente a uma igreja, e um dia em Interlagos, no estacionamento de um supermercado. Maria gostaria de estender o serviço a outras regiões da cidade. “Queria ter um segundo ônibus para deixar na zona Norte. Tem gente que me liga de lá, mas não posso ir, pois é muito longe. Eu perderia muito tempo no trânsito e deixaria de atender muitos pacientes”, diz.
Antes de sonhar com uma segunda clínica sobre rodas, Maria precisa garantir a continuidade da atual. “Fico preocupada porque daqui a pouco precisarei trocar de ônibus e não vou ter dinheiro. Conseguir patrocínio é muito difícil. Sinceramente não sei a quem recorrer, não tenho nem tempo para correr atrás disso, pois não posso parar de trabalhar”, diz.
No que depender de Maria, o projeto seguirá seu itinerário. “Todo final de ano, me esforço para reformar o ônibus. Fico devendo o ano inteiro, mas vou remendando o que dá. Enquanto eu puder trabalhar, pode ter certeza que darei meu sangue para o projeto”, garante. Esse ônibus não pode parar.