Em outros tempos, Ricardo Lima, ou Riq Lima, 27, estaria neste exato momento em qualquer lugar do mundo, exceto São Paulo. O plano inclusive era esse até semana passada. Só que uma certa palavrinha chamada propósito mudou tudo há pouco mais de um ano. E cá está Riq, enfiado entre celulares e computadores, e bem longe da praia e do descanso de praxe nessa época do ano.
Pensa que ele está triste? Inconformado? Fulo da vida? Na verdade, ele dá risada da decisão de permanecer em São Paulo trabalhando sem parar nestas primeiras semanas de 2015. É que lhe sobram estímulos para estar no escritório em pleno verão.
O mais recente veio no finalzinho do ano passado: a startup Worldpackers, a qual é co-fundador e um dos três sócios, anunciou investimento que pode chegar a 2 milhões de reais até 2016. O recurso tem duas origens: o fundo de venture capital Indicator Capital, com atuação no mercado financeiro, e um grupo cinco investidores-anjo, entre eles Fábio Póvoa (cofundador da Movile).
Esse aporte promete bombar um negócio que avança em ritmo impressionante: segundo Riq, a média semanal de crescimento é de 10%.
Lançado em fevereiro de 2014, o Worldpackers é uma plataforma online que conecta viajante e hospedagem em um esquema em que se troca habilidades por estadia. Você conhece o mundo negociando sua força de trabalho e recebe um quarto ou uma cama e café da manhã.
Mas não é only work and no play. O viajante rala de 20 a 30 horas por semana, e pode indicar o que gostaria fazer. Um fotógrafo, por exemplo, pode oferecer os seus serviços com a câmera à mão. Mas há outro caminho: encarar trabalhinhos de staff, já que a Worldpackers tem mais de 700 hostels em sua rede, em mais de 90 países. Isso significa que o seu job pode ser de barman, guia turístico, recepcionista etc.
A proposta mistura pitadas de algumas das mais revolucionárias iniciativas no ramo do turismo: o Airbnb, de aluguel de quartos ou alojamentos a preços mais em conta, e o Couchsurfing, de oferta e troca de hospedagem gratuita.
O espírito do Worldpackers é de uma grande comunidade que desbrava experiências únicas mundão afora. Essa teia atualmente conta com mais de 25 mil usuários de 18 a 62 anos e de 100 nacionalidades diferentes – mas, sim, 80% dos viajantes são brasileiros.
E o propósito que levou Riq a abandonar o mar da Bahia, onde passou o reveillón, sem dar sequência ao roteiro previsto para esta temporada? “Se as pessoas viajassem mais, o mundo seria melhor”, diz ele. “Você aprende de dentro pra fora por meio das diferenças entre culturas, tradições e pessoas. Esse choque abre a tua mente”.
QUANDO UMA CULTURA VIRA UMA EMPRESA, E NÃO O CONTRÁRIO
Riq fala como quem acumula na bagagem toda essa transformação movida pelas andanças pelos cantos do planeta. “A gente não é uma empresa com uma cultura, a gente é uma cultura virando uma empresa. Essa é a diferença”, diz.
Sua primeira grande viagem ocorreu em um desses programas de intercâmbio de estudo de inglês e trabalho. Tinha 17 anos. Pegou uma grana emprestada de uma tia, e embarcou para quatro meses numa estação de ski no Utah. Trabalhou de ajudante, garçom, host de restaurante. Voltou com a língua afiada e 700 dólares no bolso para começar a quitar a dívida e encarar mais uma aventura – uma travessia de ônibus para a Argentina.
Escolheu cursar economia. Entrou na USP em 2005, e em 2007 era estagiário no banco Santander. Aí veio a segunda chance de viajar em 2008, um intercâmbio de seis meses via convênio universitário em Salamanca, na Espanha. Ele foi pedir demissão e saiu com uma licença. “Tomei a decisão de juntar o máximo de dinheiro possível para viajar”, lembra. A carreira de Riq decolava junto com a boa fase do mercado de ações com a abertura de capitais de várias empresas. Ele se especializou em análise de investimentos, ou equity research, e do Santander, em 2009, enveredou para o Itaú BBA, onde ficou até 2011.
O ambiente era desafiador, ele ganhava bem – chegou a sete dígitos por ano –, lidava com pessoas interessantes, viajava bastante, ficava em hotéis cinco estrelas. Passou um mês de bem bom e reuniões na Big Apple. Mas faltava o tal do propósito, o conforto interno. “Ficava meio vazio.”
Volta e meia, encontrava na hora do almoço um antigo companheiro da galera do surf, Eric Faria, auditor contábil da KPMG, hoje com 28 anos. Naquele momento, porém, as ondas eram outras, e eles mais conversavam sobre as insatisfações e vontades de revirar o mar do que qualquer outra coisa. Eric partiu em 2010 para os Estados Unidos. Em 2011, foi a vez de Riq:
“Tinha uma grana guardada e pensei: ‘a hora é agora’. Liguei para o meu chefe e disse que estava saindo. Nesse dia, lembro que desci a avenida Faria Lima pulando e gritando”
Primeira parada: África do Sul, sem celular e sem computador. Daí em diante, suas histórias parecem um grande livro de realizações de destinos e aventuras. Mergulhou com tubarão, acampou com elefante, cruzou o deserto do Saara em cima de um camelo. Visitou Marrocos, Índia, Cambódia, Coréia do Sul, Rússia, Tailândia, Emirados Árabes… Enamorou-se por uma alemã e morou em Colônia por três meses.
Aos poucos, Riq foi moldando um estilo de viajar que transformava cada centavo das suas economias em ouro e ainda lhe proporcionava experiências extremamente pessoais. Logo descobriu que não sentia falta das estadias cinco estrelas, que na verdade nem o deslumbraram, preferindo se hospedar em hostels, pousadas, guests houses, casas de amigos da estrada e até acampar.
Mas foi a França, mais precisamente em Anglet, pertinho do charmoso balneário na costa oeste, que lhe brindou com uma pincelada do futuro. Ele já estava ali há alguns dias pagando sua estadia, conhecia a galera, tinha feito amigos. Certo dia, perguntou para um hostel o que podia fazer em troca de espaço para a sua barraca.
Deu aula de inglês, de surf e levou os hóspedes para a farra (chama-se pub crawl a atividade boêmia). Ah, sim, e aprendeu francês. Ficou três meses nessa vida duríssima. “Vi que podia gastar menos e viver experiências maiores”, afirma. Outros segredinhos da trip de baixo custo? Mover-se fora da alta temporada e dos feriados, cozinhar quando der ou comer com os locais. Óbvio? Será?
No final de 2012, Riq voltou a São Paulo para rever a família no Natal. Panicou. “Não consegui ficar mais do que alguns dias. Não era a hora”, conta. O roteiro continuou rumo à Bolívia e depois pelas redondezas do Brasil: Chile (Atacama), Peru (Machu Picchu), e por aí vai. Escrevia em blogs de turismo, proferia palestras com a mensagem: “A vida é uma grande viagem”.
Então, Eric, o companheiro de prancha nos momentos de swell e de divagações reclamonas nos dias flat, o convocaria para uma nova viagem. Até ali, os dois trocavam mensagens esporádicas via redes sociais. Em 2013, Eric estava em uma segunda fase de sua longa temporada na Califórnia. Chegara aos Estados Unidos em 2010, para passar seis meses e aprender inglês durante um período de licença da KPMG.
Mas Eric acabaria largando o emprego no Brasil e tornando-se voluntário do USA Hostels, uma das maiores redes do gênero no mundo. Em agosto de 2012, com outros amigos, criou o embrião do Worldpackers: a International Travelers House Hostel, hoje uma pequena rede de unidades em San Diego, e com staff 100% de voluntários. Riq trabalhou na recepção e na limpeza, dava aulas de surf, encarava a função de pub crawl. Surfava, curtia e conversava com o amigo brazuca e sócio-gerente da hospedaria.
DA VAN NA CALIFÓRNIA PARA O ESCRITÓRIO EM PINHEIROS
“Todo mundo achava que a gente era milionário porque estávamos tanto tempo viajando fora do Brasil”, relembra Riq. A conclusão de que os dois haviam trilhado caminhos complementares e poderiam sintetizá-los em um negócio aconteceu em um bate-papo na recepção do hostel, em agosto de 2013.
Em pouquíssimo tempo, decidiram trocar o hostel por uma espécie de casa e escritório móvel. Compraram uma van, onde dormiam e circulavam. Quando precisavam fazer reuniões e usar a internet, estacionavam ao lado de cafés com wifi livre e mesas para os encontros de negócio.
Optaram por deixar a sedutora vizinhança com o Vale do Silício em novembro e dar a largada do novo business em sua terra natal.
“Queríamos mostrar que é possível fazer daqui um negócio global, referência, grande e inovador. Criar coisas novas, com propósito. Esse lance da nossa criatividade, do jeitinho brasileiro, é muito bom para uma startup”
Em fevereiro de 2014, o Worldpackers entrou no ar oferecendo estadia em 150 hosts em 30 países – e o servidor chegou a cair por causa do alto fluxo de acessos. Riq explica a voracidade do sucesso com números. Segundo ele, 25% dos custos fixos de um hostel são com o staff. Soma-se a isso a alta rotatividade, e a taxa de ocupação média da indústria, de 59%. Tudo isso pode melhorar com o Worldpackers.
Outra estratégia foram parcerias com o Catraca Livre e a rede hostels Hostelling International, em busca de visibilidade, credibilidade e ampliação de alcance. Os anos no mercado financeiro renderam um plano de negócios de crescimento agressivo, com o break even previsto para o final deste ano.
“Desde o começo, fomos muito pautados em métricas, números, crescimento. Segundo os investidores, o nosso plano de negócios é um dos mais robustos que eles já viram. Nossa missão é virar uma referência mundial em viagens de baixo custo com experiência.”
O resultado também veio via prêmios, certificados e outros tipos de reconhecimento do setor. Foram eleitos Startup de Potencial pelo Prêmio Estadão PME. Riq ainda esteve entre os 10 finalistas do Prêmio Jovens Mais Inspiradores do Brasil, da revista Veja.
O Worldpackers foi uma das 15 empresas a participar do Startup Farm, que tem a IBM como parceira. Receberam um treinamento intensivo de cinco semanas, e ainda ganharam o primeiro lugar no Demo Day, uma competição com pitch para investidores. E o melhor de tudo: encontraram o último sócio e co-founder que faltava para complementar a empresa, o engenheiro da computação João Machini, 26.
Hoje, a receita do Worldpackers vem de uma taxa de 50 dólares que o viajante paga para usar os serviços do site. Por enquanto, não é cobrado nada do host, mas a empresa já estuda formas de remuneração, além de aumento de faturamento em parcerias com empresas aérea, seguros de viagem, produtos para turismo, e marcas para essa nova etapa turbinada. Acabaram de inaugurar um novo escritório – o anterior era na casa de Riq –, e aumentar a equipe de 10 para 11 colaboradores, incluindo os sócios.
Também planejam a expansão da rota consolidando a figura dos country managers, que têm a missão de conectar mais gente em outros países – já existem alguns no México, Chile, Suécia, Austrália e Estados Unidos. E pretendem atacar outros tipos de acomodação, como guest houses e pousadas.
Para tocar isso tudo, a condição metereológica tem de estar no clima da frase do filósofo grego Aristóteles, que Riq não cansa de repetir: “Onde meus talentos e paixões encontram necessidades no mundo, lá está meu caminho, meu lugar”. No momento, o mar do Brasil está para o Worldpackers.
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